26/07/2009

Abdib

Provavelmente acontece com todo mundo. Às vezes meu skype quer apresentar-me a criaturas que me acenam sabe-se lá de onde com um pouco sedutor “Oi, adicione-me à sua lista de contatos!”. Normalmente ignoro-as a todas sem peso nenhum de consciência.

Uns dias atrás, no entanto, alguém de nome Abdib acenou-me com um “Sou marroquino, tenho oito camelos e gostaria de conversar com você”. Além de gostar bastante de Marrocos, dar de cara com alguém que quer conversar e que tem oito camelos (sobretudo os camelos) não foi assim um lugar comum, e deu-me vontade de saber quem era afinal esse sujeito.

Abdib realmente tem oito camelos, sua fonte de subsistência, e logo me alertou sobre a conversa dele ser séria e ter a única intenção de conhecer alguém que vivesse no Brasil. Disse-me morar a oeste do monte Atlas, e que a sua ocupação profissional é a de guiar turistas que querem aventurar-se pelo deserto, fazendo pequenos ou grandes passeios em camelo pelas areias saharianas. “Hum...”, pensei eu, “muito menos exótico do que esperava.” Mas, há anos de olho em Timbuktu, ao sul do Atlas e já em terras malinesas, logo me animo, ao olhar para o mapa da África que tenho atrás do computador: “Abdib, quanto se demora, de camelo, de onde você vive até Timbuktu?”. Ele ri-se, com o mesmo rsrsrs que nós usamos por aqui, viva a globalização linguística!, e diz-me que “muito tempo, mais de 45 dias, será melhor você ir de avião de Bamako até lá”. Pena, penso eu, de camelo seria com certeza mais divertido, mas realmente 45 imensos dias é tempo que eu definitivamente não consigo ver à minha disposição exploradora tão cedo.

Timbuktu faz parte do universo imaginário de qualquer pessoa que tenha pensado seriamente na vida dos povos do deserto. Ponto final da rota dos mercadores que viajavam desde o Nilo (pegue seu mapa múndi, a distância é impressionante e inóspita!), fervilhou de gente de grande parte do mundo não europeu durante séculos e séculos, basicamente até à chegada daquele. O sal e o ouro eram as grandes e mais bem sucedidas trocas, e a sua proximidade com o rio Níger deve também ter tido a sua influência para a sua fama. Quando eu era pequena, uma das minhas brincadeiras favoritas era desaparecer numa hipotética viagem de trem para Timbuktu, onde me esperava uma grande missão evangelizadora, para a qual eu trabalharia e na qual eu adquiriria a mesma doença que a minha tia Teresa, paludismo, só que numa mutação muito mais séria e letal, é claro. (Paludismo, descobri anos mais tarde, vem a ser o mesmo que malária, mas a doença da minha tia parecia-se mais com a sonoridade do primeiro.) De lá tão longe, voltava horas depois cansada e ansiosa por um banho, para tirar de cima toda a areia impregnada durante anos sob o sol escaldante do deserto e escapar ao frio congelante da noite. Minha avó devia rir, mas ajudava-me a manter a grande aventura até à hora do jantar, quando lamentava que só houvesse uma canja, um pouco de pão, e que o carneiro (iguaria que um dia ainda comerei deliciada em Timbuktu) tivesse acabado com os últimos viajantes que ela tinha abrigado. Eu sempre agradecia, humildemente, como devem fazer todos os viajantes que sejam acolhidos por uma tenda itinerante no meio do Sahara.

(Anos depois, quando me descobri às voltas com um mestrado que insistiu em se deter muito perto do mesmo Sahara, mas agora em Cabo Verde, passei meses sentindo o Sahel soprar inclemente desde o deserto, atravessando as águas atlânticas para atormentar essas ilhas com o seu calor sufocante. Sem nunca ter posto os pés no arquipélago, de tanto que o sonhei em forma tipográfica, consigo sentir-lhe a angústia dos meses de seca e a imensidão dos sonhos perdidos no mar aberto. Jorge Barbosa, o poeta, é um infatigável ajudante para quem, como nós comuns mortais, não pode viajar sempre que quer.)

Hoje, imagino eu, Timbuktu deve viver atrelada às lembranças de um passado glorioso, perdida em si mesma e com poucas chances de se libertar ou reabilitar. Lisboa dá-me um pouco a mesma sensação, com o seu apogeu quinhentista ainda vivo nas paredes reconstruídas de um Terreiro do Paço ou uma Casa dos Bicos. Minha arquitetura interna alerta-me – ao seguir por esta trilha, em breve sucumbirei à melancolia que o dia de chuva de hoje prenuncia desde que amanheceu. As cidades que me habitam, como um Ítalo Calvino que me assumisse, pedem que feche essa porta, para que não transbordem. É melhor saber um pouco mais do meu marroquino.

Abdib mora num oásis (não consegui guardar-lhe o nome), e diz-me ser um tuaregue; por isso ainda hoje sente dificuldade em permanecer no mesmo lugar durante muito tempo. Seus filhos vão à escola, aprendem o Alcorão, e assim é preciso fixar-se em um lugar. Diz também que, graças ao misericordioso Alá, há bastante turismo na sua região, franceses e belgas, como sempre, mas também muitos japoneses, e por eles pode sair durante uma ou duas semanas com seus camelos, levando-os até à fronteira com a Argélia. Conta que, nesses dias, e assim que os estrangeiros param de falar e escutam o silêncio do deserto que se impõe imenso, ele se sente finalmente em paz, como nunca consegue sentir-se quando está no seu oásis, mesmo rodeado pelas pessoas a quem ele mais ama.

Termino a conversa com Abdib prometendo-lhe que sim, que assim que me decida à viagem sonhada ao Mali, hei de mandar-lhe um e-mail, para que quem sabe possamos nos conhecer também pessoalmente – a sua família e a minha, porque Abdib, além dos oito camelos, tem três mulheres e 15 filhos. Imagino que tanto ele quanto eu saibamos que esse e-mail dificilmente será escrito, e não porque eu não tenha intenção de voar até o Mali. Esses encontros que delimitam a solidão de cada um não podem refazer-se, sob risco de se perderem as verdades que só o são enquanto não nos aproximamos demais, enquanto podemos manter o anonimato dos nossos desejos. Seu oásis, seus camelos e as imagens desérticas que as suas palavras fizeram crescer em mim precisam delimitar-me por dentro; a sua confrontação palpável com a realidade dar-me-ia a exata medida do quanto não tenho mais nenhum braço de avó que compreenda, como o poeta, “que o sonho comanda a vida”.

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