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14/03/2015

15 de março de 1985

Ano passado, 2014, fiquei com uma estranha sensação durante as preparações para os eventos que marcaram o aniversário dos 50 anos do golpe militar. Causou-me estranheza comemorar (é isso que se faz em aniversários)  a ditadura. Não encontro palavra mais inadequada para juntar a ditadura. Como, comemorar o início de uma ditadura? Fiquei-me com um texto engasgado, que nunca saiu do rascunho.

Abre-se amanhã a possibilidade de comemorar o que realmente vale a pena, que são os 30 anos do fim da ditadura, e não o dia de seu começo. Estranho, no entanto, a falta de festa e de bandeiras preparando-se para invadir a rua nessa celebração da liberdade, numa reflexão coletiva visível que dê relevância ao que tem relevância, relembrando o que vale guardar na memória - entre as muitas coisas, aqueles que deram a sua vida e as suas ideias para estarmos onde estamos. Tomo café da manhã lendo o encarte infantil da Folha de São Paulo, que oferece uma linha do tempo com algumas fotos históricas e uns parcos comentários, vá lá. Incomodaria, talvez, lembrar que a atual presidente ergueu-se dramática e intensamente contra esse regime?

Seria até bem a propósito comemorar esta data nos tempos que correm, e onde vivemos momentos pra lá de obtusos, onde tomamos café lado a lado com aqueles que, por esquecimento ou ignorância histórica, pensam que seriam mais felizes sob ditadura. Talvez pensem que viveriam sobre ela, e estariam a salvo das suas arbitrariedades e atrocidades. Ledo engano. A maioria, em regimes totalitários, vive esmagada sob seus pés.

Aqueles com chances de benesses pessoais num regime ditatorial devem andar num certo silêncio, articulando-se na sombra. Vendo as movimentações nas ruas. Dizendo uma palavra aqui e outra ali. Aproveitando-se das sandices de ex-roqueiros e cia. Esse território sombrio em que agem, velado e vedado, arrepia. É preciso, mesmo, estar alerta. 

Trinta anos é uma porção de anos. Em Portugal, ao tempo das comemorações do trigésimo aniversário da Revolução dos Cravos, que por lá significou o fim de uma longa ditadura, houve também um ressurgimento daqueles que se lembravam, saudosistas e nostálgicos, sem os terem vivido, dos tempos áureos de Salazar. Estão todos lá, até hoje, porque é isso que o processo democrático garante, a voz de todos quando cada um sente necessário. Mas são minoria, porque em algum momento a memória reacende. Em algum momento as trevas voltam a apresentar-se como são. E talvez amanhã alguém retire, da prateleira de uma biblioteca qualquer, um exemplar de "Brasil: nunca mais". Folheando as suas páginas, deparando-se com os registros das torturas do regime, há de virar-se para o colega do lado e dizer: "Cara... isso, nunca mais!". E o amigo, erguendo os olhos do livro que ele mesmo escolheu, há de contar-lhe dessa mulher que um dia, lá longe na Espanha, disse "No pasarán". E eles não passarão.



26/04/2013

Liberdade

Era essa a sua escolha. Vago, vazio, ocioso e desocupado. A qualquer ameaça de transbordamento, embalava-se. Como uma caixa hermética. Não lhe interessava nenhuma ocupação de traçado compromisso, e por isso passeava entre aventuras, até o momento em que começasse a pensar que o "a" poderia transformar-se em "des". Não lhe ocorria que a palavra um dia prescindisse de prefixos, talvez porque entendesse que a sorte não é coisa que ande aos sorrisos pelas esquinas, e mesmo que o fizesse... Seus olhos embalavam-se tanto quanto, e nada via, assim todo embrulhado. Aos olhos, seguiam-se todos os sentidos. Apenas o maior de todos, a pele, lhe segredava outras coisas, mas ele estava tão bem treinado no olhar silencioso e vago e vazio, que a pele calava-se e sofria suas dores dentro dos poros.

Esses, às vezes, choravam. Ele diria aos amigos que no verão suava demais. Mas era choro incontido. Talvez ele sequer soubesse disso. Habituou-se a andar com uma toalha dentro do carro, e enxugava sobretudo a nuca. Depois, porque até a pele é daquelas coisas que perde a memória, as lágrimas paravam de suar e a vida parecia voltar ao normal. A tudo as pessoas se habituam. Essa coisa vaga e vazia e ociosa que ele chamava de normal.

Quando ela chegou, e a partir daí sempre que chegava, era a pele que dava o sinal. Não em forma de suor, porque não era choro, mas em forma de calor, porque era desejo. Os olhos não perceberam, estavam entretidos em outras coisas. O gosto ficou-se por ali mesmo: ainda não a havia provado. Mas de repente ela chegou, e chegou de fato, ela própria sem saber a que vinha e a que chegava. E com ela aquele calor que só parecia encontrar sossego e refresco na companhia.

Amoleceu. Abriu espaço, do tamanho possível. Todos os pequenos nadas deixando o que é vago com sabor de preenchido. Mesmo que ele não soubesse dizer, e nem se arriscasse a saber. O que era melhor, isso de tentar nem saber. Poderia acordar aquela necessidade aprendida de ser hermético.

Demorou muito. Mas a pele não tinha pressa, só a do desejo, e essa não é inimiga da perfeição. Abria as portas e ventilava a vida. Por tempo pouco, talvez, e durante um sempre misturado à sonoridade dos poucos instantes. Mas ainda assim era como correr em campo aberto, sob a luz do sol e com os braços desprotegidos de par em par. A pele permitia-se respirar, e penetrava a outra com ousadia e firmeza, como se nunca o medo houvesse feito casa por entre as suas cicatrizes. Então, e durante toda essa eternidade, a felicidade reinava plena, e ocupava.


Imagem: grafite no banheiro feminino do 1º andar da ECA/USP.




24/04/2012

25 de abril lat -21° 47' 40'' long -48° 10' 32''


Meia noite em Portugal.

Antecipo-me à madrugada porque, pela primeira vez em tantos anos, minha mãe não me acordará com o seu “25 de abril sempre!” às 4 da manhã de Lisboa. Por uma dessas muito raras coincidências, sempre pudemos, ela e eu, estender-nos um fio de telefone que nos fizesse lembrar-nos de que uma está e a outra também, e a liberdade sempre estará, todos os anos, desde 74 . Desta vez, porém, os fios de telefone não conseguirão encontrar-se, apesar de todas as tecnologias. E esta será uma madrugada mais longa, de repente, porque pensei nisso quando lá já é amanhã e aqui ainda é hoje.

Dentre tudo o que me habita e vive guardado atrás desse dia de primavera é provável que a maior memória sejam os versos que ouvia de pequenina, quando ainda não podiam ser cantados.  Versos de Manuel Alegre, entoados pela minha mãe, que gostava de ouvi-los na voz de Adriano Correia de Oliveira, faziam-me adormecer. Embalou-me muitas vezes com essas palavras, esse fado coimbrão revolucionário que às vezes aparece dentro dos meus ouvidos sem que eu tenha chamado por ele. Como se me dissesse, caso esqueça, quem sou e de onde venho. É bom, quando isso acontece, apesar do risco de surto melancólico...

Hoje de manhã, uma amiga querida mandou-me de presente um video de Mercedes Sosa cantando os versos do chileno Julio Numhauser, Todo Cambia. E este 25 de abril, tão diferente dos que madrugaram na minha vida nos últimos anos, muda tudo. Porque tudo mudou, desde a minha mãe que não telefonará até eu que preciso acostumar-me a estar mais sozinha do que gosto neste dia. Consola-me descobrir que até os Capitães de Abril, neste 2012, mudam, e se recusam a estar presentes na cerimônia oficial da Revolução, de tão longe veem que está Portugal daquilo que os moveu. E também ali não estará Mario Soares, e assim até a memória vai mudando num mundo que vai ficando de cores diferentes, e eu desisto de querer achar quais prefiro. Tantas voltas que o mundo dá, tantas que sequer as vemos. A algumas, só damos por elas quando nos ultrapassam e surpreendem lá na frente – aqui na frente. Quando tudo muda tanto que se torna irreconhecível, nós mesmos diante dos nossos espelhos – e, de repente, por causa de uma data, por causa dos cravos que aqui em casa já sorriem de dentro da jarra, tudo vibra e é pleno, justamente porque mudou, e porque tudo o que este dia nos diz é que as utopias podem ser realidades e tudo pode ser sempre diferente.

(-21° 47' 40'' long -48° 10' 32'': coordenadas de Araraquara/SP)





Trova do vento que passa
Manuel Alegre/Adriano Correia de Oliveira

Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.
o vento nada me diz.

Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.

28/09/2011

Audiovisuais


Há muitos anos atrás, minha mãe chegou a casa entusiasmada com um novo recurso educacional. Creio que estávamos no segundo semestre de 1974, quando todas as novidades possíveis, especialmente as ideológicas, inundavam as ruas do país em que se fez a revolução dos cravos. A cidade em que estávamos vira nascer o primeiro faiscar do movimento, e talvez por isso o ar se respirasse mais carregado de sonhos. Minha mãe, professora da escola técnica, tornara-se responsável pelo setor de audiovisuais, decisão que deve ter-lhe custado, interessada como era por tudo quanto era assunto, da escolha das cadeiras novas das salas de aula aos “contentores” do novo processo da recolha do lixo da escola. Mas a menina dos olhos eram os audiovisuais, e sob sua responsabilidade ficaram. Professora de línguas, recém chegada de uma temporada em Londres e recém apresentada ao psicólogo americano Carl Rogers, era tanto o seu entusiasmo que meu pai suspirava a cada vez que precisava escutar, mais uma vez, sobre as incríveis possibilidades que oferecem o mundo da imagem e do som, e tudo o que existia escondido e agora se havia descoberto, e Tóino, ouve o que te digo, vamos revolucionar o ensino de uma vez por todas!

Nesse dia de maior entusiasmo, o sorriso transbordava logo à entrada de casa, interferindo numa das minhas ocupações favoritas - ouvir no rádio um daqueles programas cuja fórmula simpática reside em poder telefonar pedindo uma música e ser atendido – seu nome era “Quando o telefone toca”, e era conduzido pelo António Sérgio (aposto que haverá quem se lembre!). O motivo de tamanho entusiasmo materno era o ter descoberto uma forma fantástica de avaliar seu próprio trabalho – filmar-se a si mesma (e aos alunos) em sala de aula, podendo conferir logo depois a sua atuação, corrigindo-a a partir daí. Implacavelmente.

Tanto meu pai quanto eu achamos interessante, muito bem, e fomos jantar. Em pouco tempo chegariam os alunos particulares de alemão, minha mãe lá iria para a pequena sala onde dava essas aulas, e de manhã cedo sairíamos todos, cada qual para sua escola. Uma vida corrida, a da minha mãe, que ainda queria conferir-se a si mesma, não sei bem em que momento do dia.

Ficou-me isso na memória – assim como o dia em que descobriu que eu fumava e automaticamente, e até hoje, deixou de fumar. Alguns aprendizados fazem-se assim: cortam os males pela raiz (embora eu tenha continuado fumante por uns bons anos) e ficam para sempre impressos a fogo na memória. Não nos largam jamais e tornam-se inspirações do nosso cotidiano.

Lembrei-me disso hoje porque descobri por acaso uma palestra que dei há uns meses, gravada. Não a tinha visto, nem achei que aquele senhor atrás daquela câmera pudesse mais tarde transformar-se de fato em mim mesma diante de mim, presa num passado que provavelmente gostaria de mudar. Pus-me a assisti-la, torcendo-me a cada novo minuto, dos longos 47 que a compõem, incomodada com aquele trejeito, com a palavra mal usada, o exemplo desnecessário, o detalhe um tanto impertinente, a insistência estúpida no que já se explicou à exaustão... Nem consigo terminar de ver de uma só vez, é aflição demais. Gostaria de poder telefonar a minha mãe e perguntar-lhe como sobrevivia a ver a quantidade de bobagens que fazemos – a menos que seja eu apenas a fazê-las, mas como minha dosagem de auto-estima está hoje nos seus limites normais, não me parece que seja façanha de minha exclusividade. Se por acaso meu pai pudesse atender o telefone, haveria certamente de rir-se e abanar a cabeça de um jeito peculiar só seu, um “tal mãe, tal filha” mudo que eu veria sem olhos deste lado do Atlântico. Não posso telefonar a um, porque não deixou o número quanto partiu para a próxima vida, e não posso telefonar a outro, porque a estas horas dorme a sono solto. Restam-me o papel, a caneta e esta janela em que se transformou a internet de cada dia. Como os audiovisuais revolucionários da minha mãe, assustam-nos tantos novos recursos, os facebooks que podem devassar-nos a vida sem que queiramos que o façam;  usamo-los canhestramente algumas vezes, com sabedoria outras, numa tentativa de dominar os dragões do mundo. Como se uma nossa porção micaélica nos fosse enviada do passado para alcançarmos o futuro.

25/04/2011

O 25 de abril de Eric Blaich

Diz-me a minha tia Luisa que é sinal de velhice, isto de andar a contar histórias de quando se era pequeno, mas invariavelmente, assim que o calendário se aproxima do dia 25 de abril, acontece-me. Pior do que tudo, ganho neste dia uma capacidade de perceber ligações entre tudo e todos, e aquelas que não existiam, só porque hoje é 25 de abril, passam a existir. Entre tudo o que vivi, o que li, o que ouvi e o que senti, não tenho como separar fatos de desejos, estes de vontades, e ainda estas daquilo que podia ser mas talvez não tenha sido, sem que isso chegue realmente a importar alguma coisa. Portanto, assim que me deparo com este dia no rol dos de todos os anos, fico assim – nem um dia se passou, e todos os que vivem ao meu redor são catapultados para dentro de um enorme vaso de cravos.

Este ano em particular, decidi resgatar as fotografias das Caldas da Rainha, cidade que me acolheu no dia em que nasci. Nem preciso delas, mas é bom conferir. Fecho os olhos e vejo o prédio da biblioteca no Parque. O lago esverdeado e os cisnes nadando em suas águas tensamente paradas. Os meus dedos escorregando para dentro da água tépida e escura do começo do verão. Os imensos plátanos a abafar nas suas folhas o calor das horas quentes. O meu pai a jogar tênis. As minhas tias a prepararem uma festa na garagem da casa da minha avó, grandes flores de papel colorido e umas almofadas que ficaram no pensamento sem eu saber-lhe o porquê. Eu a tentar dar a volta por cima ao balanço enorme do pequeno parque que parecia tão grande, sem saber que existiria anos depois um Cirque Du Soleil que teria feito suspirar cada uma das minhas terminações nervosas. Algo disto as fotografias captaram, mas para o resto só tenho a minha memória de confiabilidade peculiar.

As Caldas são revolucionárias: a 16 de março do mesmo ano que marcaria a Revolução dos Cravos levantava-se o quartel da minha cidade. A Intentona das Caldas levou o Regimento de Infantaria que lá estava sediado em direção a Lisboa, disposto que estava a derrubar o Estado Novo já tão velho. Sem companhias, foi sustado às portas da capital portuguesa. Mas assim ficou: o primeiro movimento em direção à liberdade. Canhestro, talvez. Apressado e com uma noção péssima de timing – pode ser. Mas é dessa matéria que os sonhos são alimentados. Dos doidos que correm à frente para mostrarem aos outros que o caminho é possível.

Fui acordada na madrugada do dia 25 de abril de 1974, pouco depois das 4 da manhã, por uma mãe de olhos brilhantes e gravidez anunciada. “Somos livres”, dizia-me ela sabendo que eu a entendia. Não só o somos como o podemos dizer, e viver, e dar, e viver mais uma vez e assim seria até o mundo acabar. Podemos ir pelas estradas, já manhã clara, em direção ao mar e na companhia da Alice, que insistia em erguer um punho fora da janela e cantar e gritar às árvores que passavam que sim! somos livres! Indivizível, indiluível, intraduzível, inesquecível.

Com os nove anos de idade que tinha, descobri-me dois dias depois sentada no muro que rodeava a escola primária em que estudava, ocupada a ensinar aos meus colegas, cujas mães não faziam o que a minha fazia, a “Grândola Vila Morena” e o “No pasarán”, repreendida em pouco tempo pela minha professora, apavorada com o que o comunismo faria a todas aquelas apetecíveis criancinhas.

Ao longo dos meses que se seguiram, viagens ao Alentejo, a descoberta de um país na festa de encontrar-se com pernas, braços e sobretudo vozes, procurando aprender a andar e a saber como desfazer-se de anos de tristeza e devastação. Exatamente por isso, encantador, esse país. Um ano depois, na Espanha ainda franquista, meu pai seria (perigosamente) intimado a explicar o slogan que criara para oferecer o destino turístico ao país vizinho: “Portugal, tan nuevo y tan cerca”.

Devo a minha mãe, e a meu pai de outras formas, uma maneira de olhar as pessoas que se movimenta no espaço e no tempo, e lhes acolhe os erros, as fraquezas, os deslizes, as traições. Aceito-as com dificuldade, sim – mas os meus olhos olham a maneira como estão, certos de que aquilo que são muda - esconde-se, foge, amesquinha-se, endurece-se, cria limos e crostas e, de repente, descobre uma função auto-limpante e voilá: shinning as new! Inevitavelmente, olhando de longe, a vida é uma escada que sobe –tinha toda a razão a minha avó quando me dizia isso, mesmo nos momentos mais duros que lhe apresentei na ingenuidade tola da juventude. A vida é uma escada que sobe – e por isso, deduzi sozinha anos depois, mais vale aproveitar cada degrau, porque nada permite que desçamos.

Os que se vão, especialmente os que viveram muito, dizem-me a mesma coisa. Que a vida vale a pena, mas se, e apenas se, a nossa alma não ficar pequena. (Pessoa tinha razão, toda ela, só é preciso lê-lo nas duas direções e considerar também os momentos pequenos das almas, aqueles em que, por dedução, muito pouco vale a pena.)

Tudo vale a pena, se a nossa alma não se amesquinhar diante das possibilidades do mundo. Se a nossa alma permanecer inteira e íntegra e grande e sempre e a todo momento preenchida por ver o outro parte de si própria. Se a nossa alma puder ver em cada ser o pulsar da vida toda - até nas coisas mais duras, nas mais concretas e nas mais lentamente transformadas. Como as pedras que um senhor, nesta Demétria tão afastada daqueles tempos e daquele país, agrupou e espalhou ao seu redor antes de se despedir do mundo. Eric Blaich viaja nesta madrugada pelos espaços siderais, acompanhado por toda a silenciosa humanidade que conferiu ao âmago dos seres com os quais conviveu. Os seres-pedras e os seres-tintas voam a seu lado, sorriem à sua passagem, alcançam-lhe a visão do que semeou, plantou e colheu na sua longa vida. Assim como ecoa no espaço que me separa das Caldas uma revolução que me garante a certeza da liberdade do mundo, ecoam no espaço, brilhantes como límpidos cristais, as dádivas que Blaich espalhou pelos amplos caminhos da sua vida. Feliz viagem, Blaich.

Ana Vieira

(Em cima: Biblioteca do Parque D. Carlos I, nas Caldas da Rainha
Abaixo: "Rio Enz", de Eric Otto Blaich)

02/01/2011

Nefelomantes

A nefelomancia é uma das minhas descobertas dos últimos tempos. Nefelo refere-se a nuvens – e por isso esses dias em que você, como eu, anda nas nuvens e nada parece ter a capacidade de rebocá-lo de volta ao planeta terra, são, veja bem como parece a coisa mudar de figura, seus dias de "nefelibata". O sufixo mancia é aquilo que habitualmente usamos quando queremos nos referir à arte (ou artifício, aí depende de você mesmo e da sua capacidade de abstração) da predição do futuro.

Portanto, e juntando as coisas: nefelomancia é a arte de predizer o futuro através das nuvens. Equipara-se, convenhamos, às predições gregas a partir dos voos dos pássaros. Predizer o futuro é antigo na história da humanidade, e entre nós há aqueles que creem e aqueles que não. O que, imagino, não queira dizer que alguém não possa se interessar. Aliás, não consigo imaginar que alguém possa não se interessar por algo que interesse a seu semelhante. Concordando ou não ou antes pelo contrário.

O fato é que, assim que vi a tal suculenta palavra, quando à caça de outras no dicionário, perdi o rumo do que fazia e dispus-me imediatamente a escrever este texto, que no entanto levou semanas para chegar neste estado em que o apresento, por motivos que só hoje, e por causa de uma porção de nuvens, descobri quais eram.

É normal que se escreva quando se tem algo a dizer. Ainda assim, há muitos e muitos textos que começo sem saber nem o porquê nem o onde irão parar, tendo apenas a certeza de que devo ter alguma coisa a dizer. De repente, dias ou meses depois, acontece aquilo que aglutina o passado e o presente e me catapulta para o futuro, aliviando-me a vida. Hoje foram as nuvens, pairando sobre nós desde que o sol nasceu até que se pôs, e ainda depois.

O dia começou com chuva no planalto central – miudinha, fininha e persistente, tanto quanto as pedras dos prédios em volta, solenes e resistentes. Os pássaros da cidade prendem-se aos tetos, indecidem-se entre voar e apenas estar, talvez por não saber ainda qual a direção, neste dia em que parece estar-se suspenso esperando o futuro realizar-se diante dos olhos.



Ao contrário dos pássaros, as pessoas aventuram-se fora dos ninhos, enfrentam o vento, o risco de se molhar até os ossos, sorrisos abertos no rosto do sábado feriado nacional. As bandeiras tremulam nos postes todos que nos cercam, numa estoicidade que parece não se importar com a chuva que as ameaça. As nuvens, lá de cima, atentam sem vento, e os homens aqui em baixo procuram abrigo para quando a chuva cair. Marquises, tendas, árvores, sacadas de prédios - tudo é a mesma coisa. 


Ouço que talvez não seja um bom auspício, toda esta chuva, que se aproxima de longe e se vê caindo na Torre, na Rodoviária, na Catedral... Acompanho-lhe a conquista do espaço urbano, metro a metro de chão molhado percorrido por centenas de pés em havaianas previdentes.  Lembro-me das águas que lavam escadarias, de outras que fecundam campos de arrozais mundo afora, lembro-me que entramos no ano chinês do Coelho e quando olho para o céu, em busca de uma resposta, as nuvens dizem que sim e descarregam em cima de mim o meu quinhão de água. Não pode ser um mau auspício, concluo.
                            
Lá adiante, perco-me de novo nas cinzas das nuvens – a chuva parou mas a sua ameaça persiste e alguns, aqui e ali, permanecem solitários em meio à multidão, atentos às nuvens. O contraste dos vermelhos, dos amarelos e dos azuis que circulam pelo verde da grama não chama tanto a minha atenção – prendo-me às nuvens e ao seu peso, circulo por entre elas e estou tão só quanto os que se sentem sós.



Entre eles, há os que elevam suas mãos, calejadas e destruídas pela artrose que nem ainda chegou. Saúdam e erguem-se num “ergo sum” solitário silencioso antigo. Estamos todos juntos, e ainda assim pouco sabemos uns dos outros. Mas o andar lado a lado, e sem saber juntar as calosidades das nossas mãos numa roda única, torna o passo menos pesado e as nuvens menos densas. Ainda que não nos vejam, nem nos olhem, as nossas mãos estão levantadas e existem.



As nuvens prateadas acompanham o fim do dia. Mantêm o tom grave, dizem-nos da vigilância e da falta de cor que dá colorido ao outro. No seu cinza melancólico permitem a vida das cores estridentes que despertam a multidão em coro. O grito unânime acolhe generoso quem chega enquanto se despede, já saudoso de quem ainda nem foi. Muitas formas diferentes de ser gente, muitos olhares e peles de tons distintos, uns marcados por fora, outros por dentro, tantos olhos sublimados não só de esperança mas de confiança na mudança que já começou. 



Os guarda chuvas que nos isolam das nuvens garantem a privacidade do agradecimento reconhecido, que dispensa outras palavras porque não há como explicar: “Valeu, Lula” de um lado; “Bem vinda, Dilma”, de outro.


Quase anoitecendo, as aves decidem-se: melhor voar como as cores da bandeira que não desistem, e recolher os fios que se soltem, reconstruir-se em quantos ninhos se façam necessários, e quem sabe estar aqui, de novo, dentro de alguns anos, com nuvens que do céu nos orientem em direção a nós mesmos futuros.



Ana Vieira, de Brasília, 1.1.11