16/03/2019

Se Deus é Onipotente e Onipresente, por que precisamos dos Espíritos para chegar até Ele?

Na tarefa de educador, ouvir perguntas é indispensável. Podemos preparar uma magnífica aula, mas ela depende de quem está junto, de quem tem sede de conhecimento, de quem tem curiosidade e a expressa. Ninguém dá aula para o vazio. Alunos que dormem em sala de aula estão alheios, falta-lhes curiosidade? Pela vida, certamente que não - quando podem, conversam pelos cotovelos! Têm as suas indagações internas, suas angústias, seus medos, sua necessidade de saber. Conseguir equilibrar aquilo que se quer dizer com aquilo que quem está presente quer e precisa ouvir é talvez a maior tarefa de qualquer educador. Abrir espaços para perguntas é uma atitude interna que demanda ter interesse pelo que o outro quer dizer e quer saber. Na verdadeira educação, os limites engessam, foram feitos para ser expandidos e movidos de lugar.

A pergunta que dá título a esta postagem foi feita por escrito durante um espaço-tempo de aprendizagem sobre Umbanda. É um desafio, responder a perguntas não programadas. Mas é justamente aí que novo conhecimento pode surgir, nutrindo a todos. Vale para qualquer aula, especialmente quando se entendem os espaços de aprendizagem como espaços de troca, de pesquisa, de dúvida e de busca de respostas.

Então vamos a ela: "Se Deus é Onipotente e Onipresente, por que precisamos dos Espíritos para chegar até Ele?". É uma incrível pergunta, do tipo que faz pensar, pedir auxílio por respostas que não sejam as prontas. O melhor de tudo é que elas, as respostas, vêm, intuições com cheiro de sálvia fresca, um adocicado de tabaco perfumado com alfazema e alecrim bem ao fundo. O Espírito de Vó Chica é um primor nessas horas.

Se Deus é Onipotente e Onipresente, significa que tudo pode e em todo lugar está. Inclusive dentro de nós, ao nosso redor, dentro dos nossos amigos, dos nossos inimigos, daqueles que gostamos mais e daqueles que detestamos. Se tudo pode, pode comunicar-se conosco, e pode também querer que nós nos esforcemos para nos comunicarmos com ele. Na sua infinita sabedoria, esse Deus (que podemos chamar de muitos nomes, de Consciência Cósmica, Fagulha Inicial e um enorme etcetera) está contido e contém ao mesmo tempo. Difícil abarcá-lo, difícil perceber a sua presença (que pressupomos), a sua atuação, o seu lugar. A trilha da evolução abre-se diante de nós em nossa condição terrestre cheia de limitações, e todos precisamos, aqui e ali, de auxílios para caminhar por ela,

Os Espíritos que se dispõem à tarefa de nos auxiliar são seres em evolução que, por livre e espontânea vontade ou aceitação, se oferecem para nos auxiliar nesse caminho. Não são propriamente intermediários desse Deus que tudo contém e em tudo está contido - ou o são também, visto que Deus os habita e é habitado por eles. A sua tarefa maior é oferecer-nos ajuda para nos encontrarmos dentro do burburinho que somos, o que equivale a encontrarmos dentro de nós o próprio Deus vivo. Com a sua ajuda, seus exemplos, seus conselhos, suas recomendações; com seus banhos de ervas, seus pedidos de acendimentos de velas, seus passos energéticos - o que os Espíritos fazem é nos ajudar a entrar em sintonia e equilíbrio conosco mesmos, para que possamos perceber e sentir a presença de Deus.

A tarefa é portanto nossa. Já se foi o tempo em que íamos à igreja porque a família inteira ia, em que rezávamos porque a tradição era assim e o movimento do todo nos auxiliava nesse direcionamento para o Divino. Hoje, as pessoas buscam uma relação com Deus porque querem, porque faz sentido, porque algo as impulsiona nessa direção. Depois desse desejo primeiro, impulsionador do querer, o que há pela frente é dedicação e trabalho. Deus está à nossa espera, mas dificilmente o rio muda seu curso para satisfazer a nossa pequena necessidade. Será mais fácil nos movimentarmos em sua direção para o encontrarmos e nos podermos banhar em suas águas serenas, conscientes do quanto somos nós os responsáveis pela nossa própria evolução. E aos Espíritos, seremos gratos, por se disporem a nos ajudar, generosos, humildes e retos.

13/03/2019

Quaresma e Umbanda

A noite no terreiro, quando a cidade dorme e silencia, é permeada pelas velas acesas no congá. Como presenças divinas que são, lembretes tremeluzentes da luz que existe dentro de nós, transmitem a calma e a paz necessária à reflexão profunda. Muletas?, questionam alguns. Vó Chica diz que não: velas são intenções firmadas, tornadas visíveis nesse mundo de matéria em que vivemos, iluminações de nós mesmos fora de nós. Por que negar sermos o que somos?

Neste tempo de Quaresma, o recolhimento do congá parece assumir outro aspecto. Vó Chica sorri quando penso essas coisas: ela sabe da minha formação católica, e não se incomoda nem um pouco com a maneira como transpira em mim o ser do espírito, livre de nomes que eu dê. E diz mais uma vez: para que negar ser o que se é? São Francisco, a seu lado, aspira o primeiro ar da manhã, e de repente os passarinhos cantam lá fora e me acordam de vez. Dia e noite, noite e dia, o mundo avança.

A Quaresma, sai ano entra ano, é questão que divide/incomoda/inquieta a religião umbandista: devem celebrar-se (ou não) os ritos cristãos dentro da Umbanda? Há templos que não atendem durante esse período, linhas de trabalho a quem algumas casas não abrem as portas de atuação, criam-se penitências de vários tipos - como religião congregadora, é natural que a diversidade impere, e assim como há casas que celebram a quaresma de forma bastante católica, também as há que se distanciam das práticas de outras religiões. Com o passar do tempo, essa flor que o Caboclo das Sete Encruzilhadas fez brotar na mesa farta e ampla das religiões do mundo, vai criando espaços próprios, livres e abertos à profissão da fé de cada um. É bom que estejamos atentos à nossa vontade de cartilhas e manuais, que nos apontam caminhos mas que correm o risco de nos aprisionar dentro deles e não conseguirmos mais ver a realidade. O cultivo da consciência, amparado pelo estudo e pelo conhecimento, é quem realmente nos liberta.

A Quaresma vive no ano litúrgico cristão como um tempo de busca da reconexão com o Cristo, de forma mais intensa do que durante o resto do ano, preparando a vivência pascal, da ressurreição e da materialização do Cristo Cósmico como regente da Humanidade. Esse tempo é celebrado em todo o planeta, porque é a todo o planeta que a essência divina do Cristo se liga, ainda que varie de nome.

Dentro dos preceitos católicos vivem várias práticas, mais ou menos antigas, que visam esse reconectar-se; a vivência das cinzas, por exemplo, como purificação, como percepção da transitoriedade, como aceitação da nossa condição humana terrena e finita. As cinzas relembram-nos que somos pó e ao pó voltaremos, e nos convidam a perceber se o que fazemos, pensamos, dizemos e sentimos entre um pó e outro vale a pena e nos aproxima ou não de quem somos em essência.

Há várias maneiras de fazer esse movimento, e a liturgia umbandista, que depende e varia de casa para casa, vale-se de muitas coisas. Seja neste tempo ou em outro, é preciso escolher momentos de recolhimento, de "olhar para dentro" para conferir o caminho trilhado. Por um lado, recolocar  no lugar correto o que tiver se desviado. Por outro, organizar as necessárias correções de rota, à luz dos aprendizados do tempo. A Quaresma presta-se a esse movimento.

Na sua pessoal preparação para a Páscoa, Jesus retirou-se durante quarenta dias para o deserto, sendo tentado diversas vezes por espíritos que se empenhavam em levá-lo para outro destino que não o seu. Podemos imaginá-lo olhando o seu destino, com a coragem que demanda, colocando as coisas em seu devido lugar, dentro e fora dele. As tentações fortalecem-no, como podem fortalecer-nos as nossas, se tivermos coragem suficiente para percebê-las como tais e fazer-lhes frente. Redobrar a vigilância? Fazer penitência? Individualmente, como cada um quiser. Do ponto de vista de uma comunidade de Umbanda, o que se redobra é a necessidade de acolher e ser acolhido, de escutar e ser escutado, de amparar e ser amparado. É nesse lugar, do Amor e do Afeto, que se firma e funda a fé, e é a ele que retornamos, em profunda reverência, gratidão e busca do exercício pessoal necessário. Por isso, hoje, em muitos terreiros,os trabalhos são mantidos, porque talvez seja este um momento de maior necessidade, e por isso mesmo demande mais ação, mais abertura de coração, mais mãos estendidas. Cuidados? Sim, com certeza - com o próprio pensamento, as próprias ações, com as vibrações com as quais nos permeamos, as companhias que escolhemos, as distrações que aceitamos, os caminhos que escolhemos para o nosso dia. Vó Chica, que definitivamente não se prende aos nomes que damos às coisas espirituais, me assegura que estes quarenta dias são um bom período para nos olharmos mais a fundo, mais no cerne, percebendo-nos como seres espirituais sujeitos à temporalidade do corpo físico, necessitados de um campo de disciplina que nos ajude a não perder tempo. Só isso já nos fortalece no cultivo da humildade. da aceitação e da entrega.

Imagem: https://steemit.com/life/@blessme/helping-hand

11/03/2019

O ronco e o raio


Vó Chica, quando olha para dentro dos olhos das pessoas, vê coisas que os nossos olhos comuns não veem. Às vezes, até, mudam a forma externa para que se pareça mais o que se vê com o que se é de verdade, sobretudo quando tentamos a todo custo esconder aquilo e quem somos. Outro dia, a conversa dela dizia mais ou menos assim.


"Filha, você precisa prestar mais atenção nas coisas à sua volta, e olhar para elas da maneira correta. Senão, você acaba não vendo nada por querer ver tudo de uma vez só. É sempre um passo de cada vez - um, e depois o outro. Não ajuda nada andar a dar pulos com os dois pés ao mesmo tempo. É como um rio, que começa é riozinho, e depois é que vai engrossando, engrossando, até chegar ao fim. E no meio desse tempo, o que é que ele faz? Ele corre, ele se deita sossegado parecendo que nem se mexe, ele salta por cima das rochas de nosso pai amado Xangô, ele lambe as beiradas das matas, vai se espreguiçar nas areias das curvas longas que faz, quando já cansou de ser rio e quer ser mar.

Pois então, olhar as coisas tal qual elas são. Igual esse céu aqui por cima de nós (e Vó Chica põe a sua mão calejada de anteparo nos olhos, e eu estranho, porque é de noite, estamos debaixo de teto, mas Chica vê tudo e longe, e eu vejo junto com ela esse telhado que e repente se transformou em amplidão de sidério). Esse céu, olha lá, filha. Tem vez que ronca e vez que relampeia, não é? E você escuta o que, filha? O ronco ou o raio? Se for querer escutar o raio e ver o ronco, não vai conseguir saber de coisa nenhuma.

Para cada coisa da vida é preciso o sentido correto. Se é de ver, é com os olhos. Se é de escutar, é com os ouvidos. E tá um mais certo do que o outro? É claro que não! Cada coisa se percebe com aquilo com que pode ser percebida. E a vida fica mais fácil quando a gente se humilda assim e se curva diante de Nosso Senhor Pai Oxalá, e pede a bênção e a inspiração pra fazer as coisas do jeito que ele mesminho pensou, antes de nós estarmos aqui. Se fez o raio pra ver, pra que é que nós vamos querer escutar? E pois ainda tem pessoa que quer ver, e se tumultua tudo, e à família também, porque quer que as coisas sejam do seu jeito, e não do jeito que são.

E eu falei em humildade, filha, porque não tem coisa melhor. Quem cultiva a humildade, colhe paciência e aceitação. E quem tem paciência e aceita as coisas sabe muito bem quando que é dia de gritar e quando que é dia de calar, e não fica gastando a vida à toa batendo cabeça nas portas que só vão abrir é mais de tarde, quando o sol se põe e a vigilância do povo adormece. Aí sim, filha: aí é hora de agarrar a maçaneta da porta e abrir igual vendaval.

O que eu mais quero, filha, é que você fique bem perto das coisas divinas, porque foram elas que me ensinaram a ser quem eu sou, que é o que eu já era antes de vir pra esse mundo e sair dele. É tudo mais simples do que você às vezes pensa, e o mais é a espera, que pode ser dolorosa, se for combatida, mas pode ser descanso, se for acolhida dentro dos braços como se fosse um recém-nascido, igual esses que a gente colhe assim que escorrega da Mãe."