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09/11/2013

O chão que renasce

Faça como eu fiz: olhe rapidamente para essa foto, e feche os olhos. Não se preocupe em entender do que se trata, apenas abra-se para olhar. Não é preciso ver. Deixe essa ocupação para mais tarde, quando puder construir o tempo e o espaço do olhar atento, dedicado e amoroso. Quando quiser construir esse espaço de encontro. E se quiser, claro.

Eu quis. Vi a foto pela primeira vez ontem à noite. Por entre conversas, música, mil e um estímulos querendo arrancar-me a alma de dentro. Ela até parece que vai, mas não vai: a minha alma anda avessa à exposição das suas dobras. Deve ser para que não se transformem em vincos, essas espécies sutis de mortalhas.

Assim, à primeira vista, foi só luz o que vi na imagem. Sem saber por que, pedi-a a meu amigo, mais intuindo do que vendo de fato alguma coisa. A foto veio, rápida e ligeira nesse pé de vento que é a tecnologia. Ali mesmo, na mesa do bar, a imagem pula de um celular ao outro. Deixo-a em paz, quieta.

Horas depois, sem conseguir dormir, tenho vagar para dedicar-me a ela. Olho-a com tempo, senhor de todos os processos, e surpreende-me que essa luz que vi esteja dentro dos espaços das folhas mortas. Parecem luminosas, as folhas, mas estão mortas. O vivo do verde à sua volta é quase ofuscado por essa luz que não é da matéria, mas do espaço ao seu redor, e atinge a superfície para fazê-la rebrilhar. É só superfície. Assim que o sol mudar seu ângulo, a luz desaparecerá. Não há existência dentro da folha, a não ser aquela de que se nutrirão outros, aqueles que se alimentam da putrefação do que morre. O que está vivo é o tapete verde que as folhas querem esconder. A vida das folhas mortas é uma vida em reflexo.

O dono da foto ofereceu-me, além da foto, a sua legenda: "o chão que renasce". E eu aqui, horas depois de ter visto a luz não só na foto, mas também nas retinas alheias, confirmo uma sequência inteira de impressões noturnas. Poderia ter dado o título de "gratidão" a este texto.

Esse chão que renasce, e que ganho de presente em imagem e palavra, nutre-se de momentos muito particulares. Momentos que surgem por detrás das paredes do tempo, espaços no avesso do espaço. É preciso inventá-los, a esses momentos. E é preciso inventá-los a várias mãos. Duas não conseguem. Podem acontecer em qualquer lugar, mas ontem foi aqui, nesta cidade que me acolhe assim que a vejo e me diz "afaste-se" no momento em que tento aproximar-me.

Chamou-se dançar, este chão renascido de ontem. Foi simples, até. Inventou-se um tempo e um espaço para o encontro. Não foi preciso inventar a vontade, mas inventou-se o movimento de ir na direção da música. E o resto inventou-se sozinho. Inventou-se o que era preciso para que a alma alcançasse os lugares que a fazem sentir-se viva, e dançasse em toda a sua extensão, e recebesse sem pedir o amparo que precisava. Uma brecha na insanidade. Um mergulho dentro da delicadeza da entrega pura. Tudo o que a minha alma, o meu coração e o meu corpo necessitam. Ainda que seja leve e breve como a passagem da brisa. Ainda que seja inventado. Ainda que seja de noite. Ainda que as folhas estejam mortas.

25/06/2010

Aos homens que se escrevem com maiúscula

Saramago não me dá trégua: passei a semana a lê-lo, creio até que se me cola aos dedos, seres autônomos que agora querem brincar de evitar as pontuações padrão. Resisto-lhe um pouco, agarro-me às minhas próprias sombras porque os dias e a escuridão também não me dão trégua, e logo ele volta, com mais um pequeno segredo a que eu não tinha prestado atenção na primeira visita. Com isso, continuo rodeada dos seus livros, aquilo que lhe sobrevive na ausência, como ele quis. Lamento os que não comprei em inúmeras ocasiões e fico feliz porque a ele sim, ao fim e ao cabo, pedi um autógrafo. Olho-o longamente, a esse desenho que forma o seu nome, e dá-me assim uma certeza de coisa toda inteira na página em branco deste livro. Simples e austero, como seu autor. A tinta forte, sem espaço aberto a dúvidas. E embaixo o ano, porque o tempo é o amigo das coisas que se querem lembradas.


Talvez o que não me deixe afastar-me da sua memória seja o tê-lo descoberto, ao longo desta semana, no tamanho da sua integridade pura, da sua absoluta desesperança sem fé em nada a não ser na força do trabalho das suas próprias mãos. Reconheço-lhe traços que se vislumbram na sua carta natal, mas imagino que ele, lá de onde está, se ria ao ver-me por dentro a pensar semelhante disparate. Não creio que ele olhasse para as estrelas dessa maneira. E ele olhava-as. Longamente.


E provavelmente não exista nada de riso em seu rosto ao ver-me pensar ou fazer seja o que for, porque se tudo tiver dado certo e ele tiver ido para onde gostaria de ter ido, está neste momento disperso no éter do não ser, do não tempo, incorporado à substância vital e criadora do universo, e mais nada. Tanto se lhe dará o que eu ache.


Há uma espécie de verdade com maiúscula que me atravessa quando o leio. Uma espécie de grandiosidade do pequeno. Quanto menor ele se apresenta, maior e mais intenso me atinge.


Tenho-o diante de mim em muitas fotografias. Em gestos que se fizeram ternos com o passar dos anos e o encontrar do outro. Mudou a si próprio sem recriminar o passado nem angustiar o futuro – um dia atrás do outro e de cada vez, na sabedoria camponesa sem ambições dos seus pais e avós. O tamanho da vida de um homem que se escreveu a si próprio com maiúscula.


Releio mais uma vez as anotações que fiz sobre a sua vida, interrogo-me sobre algumas das suas ações, quem dera pudera perguntar-lhe de onde lhe veio tudo isso, se da certeza do caminho, se da teimosa decisão de ser austero, grave e incisivo na sua observação da realidade, dessa matéria por trás das palavras que engulo como alimento.

Sinto-o ao meu lado, na pretensão que muitos devem a esta hora reconhecer em si, e acho realmente uma sorte que uns permaneçamos vivos enquanto outros se vão. À maneira de Cícero, que dizia que a memória preservada em veneração e ternura naqueles que sobrevivem faz com que quem partiu seja feliz na morte e quem ficou honrado na vida.


O sentimento ou a necessidade da honra traz-me os que partiram nos últimos dias, e eu conheço. Apresso-me a percebê-los de novo, procurando-os nesse estado sem estado. A memória preservada é tarefa diária, assim como é diário o esquecimento do que importa e é leve o bater das asas dos que partem de nós.

03/04/2010

Fotografia nova na parede da sala


Assim que me deram esta fotografia da baixa lisboeta, antevi as saudades que me provocaria assim que a colocasse na parede de casa. Vista de cima e a preto e branco, a cidade de Lisboa atinge-me muito mais fundo, porque contemplo-a em silêncio, não há nada visível da modernidade claustrofóbica que a atingiu, e eu posso beber da fonte que gosto, difícil de encontrar com os pés no chão. O quadriculado exato pombalino agrada-me mais assim, pelo contraste com os bairros castiços, à direita e à esquerda; Alfamas e Mourarias e Bairros Altos a atiçar o passado mourisco da cidade que tinha sete colinas, e as perdeu submersas em prédios todos iguais.

Uma sede de modernidade faz com que o tempo ande, o que é bom, mas impede que o passado se demore, o que não é tão bom. Como não estou sempre nesta cidade, e como ela faz parte do meu passado, sinto-lhe mais a parte negativa do que passou, à espreita atrás da porta das remodelações. Segue-se a traça original do desenho dos prédios, porque o orgulho do passado majestoso sobrepõe-se a tudo neste país em crise, mas é uma traça que difere sutilmente daquilo que era. Pode ser que sejam os materiais que se usam, as novas técnicas de construção  etc e tal. O fato é que o Cais das Colunas já não é o que era, que pena, quando andava em obras eternas que motivavam piadas e mais piadas e que agora se calaram porque perderam o sentido. Ou o Cais do Sodré, limpo e cheio das máquinas que nos facilitam a vida ao vender bilhetes em tantas línguas, enquanto nos fazem perder o ritmo do tempo que era o nosso, e que talvez pudesse continuar a sê-lo e quem sabe não seria a crise doutro tamanho e dimensão.

Lisboa provoca-me sensações ambíguas, provavelmente porque viva muita viva dentro do passado que lhe construí na memória. E dificilmente alguma coisa iguala a memória.

Isso faz-me pensar na memória seletiva que  se criou em mim e que se esquece contumazmente daquilo que parece não valer a pena lembrar, ainda que valha. À minha volta, lembram-se de muitas formas de eu mesma que eu nem sei existentes em mim. Começo realmente a ficar preocupada, porque por todos os grupos e por todos os lugares a situação repete-se, o que denuncia uma cronicidade que talvez venha a se transformar em distúrbio, se é que já não o é efetivamente. Lembram-se de momentos invulgares, aventuras que parecem saídas de um volume de ficção, anedotas em que me vejo refletida como se fosse outra, basicamente porque não me lembro, mas imagino até que assim possa ter sido, já que outros se lembram com tanta fidelidade e estranhamento quando os olho, com o meu próprio estranhamento de que seja de mim que falam.

Lisboa, hoje na parede de casa, um cacilheiro à vista no pedaço de Tejo que o fotógrafo imortalizou, há de lembrar-se eternamente. Sigo o percurso das ruas que gosto de calcorrear com a ponta do meu dedo e, se fecho os olhos, vejo-me lá. Sinto a brisa do Tejo antes de chegar ao Terreiro do Paço, e viro à direira numa ruazinha onde sei que vou encontrar omeletes acompanhadas por montanhas de batatas fritas, como gostaria um Kit Carson que aqui aportasse anacronicamente. À distância, divirto-me em percursos que posso inventar. Não há barulho nem fumaça de carros, nem sombra das eternas obras que não acabam de remodelar uma e outra vez esta praça. Além de ser das maiores da Europa, é a mais emblemática porta de entrada desta cidade, e ainda esquizofrênica como nós todos - não sabe se se chama Terreiro do Paço ou Praça do Comércio, e responde aos dois apelos feliz da vida por poder ser duas enquanto é só uma.

Os elétricos, neste meu sonho fotográfico, são dos antigos e deslizam pelos seus trilhos, às vezes com um barulho de freios que dói nos ouvidos e que hoje, embora mal se ouvisse, seria chamado de poluição sonora. Atrás do chiado que não se ouve, escuto as asas das gaivotas que pousam na estátua de D. José I, indiferentes à azáfama citadina. As pedras desta praça testemunharam o fim último da ditadura - vem-me à memória, que já se sebe seletiva, um Salgueiro Maia a libertar Lisboa do último baluarte salazarista e, como estou longe, posso imaginá-lo sem perdas a cavalo pela Avenida Infante Dom Henrique, ferraduras num prenúncio de enterro do que já está morto mas se esqueceu de fechar os olhos. Mas também elas, as pedras, se permitem a indiferença aos carros que passam sem olhar para os lados, buzinas em riste contra os transeuntes que não têm por onde atravessar, e nem se perguntam se haverá razões.

Viro as costas da mão ao rio, e demoro o meu indicador na esquina do Martinho da Arcada. Decido levantar-me, já me doem os joelhos, para ir em busca do Livro do Desassossego, encontrar no poeta que não mora mais no café a paz que não encontro no meu reflexo no vidro da foto. Sei de antemão o infrutífera que será a minha busca, e por isso mesmo esse livro.