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15/06/2013

Amigos de longe

Com a internet regularizada em casa, é momento de voltar ao contato de quem está longe. Passo a manhã nisso, janela do skype aberta.

Começo pelos filhos que moram do outro lado do mar, e que me oferecem meia hora de prosa como se estivéssemos aqui um ao lado do outro, como em outras épocas que quase parecem vidas passadas. Desligo e fica essa sensação de vazio tão grande. Quase era melhor não falar. E rio-me. Nada disso: amanhã ligo de novo.

Amigos que estão dispersos aqui e ali. Tão bom tê-los a todos assim, à distância de um clique. Prefiro sem câmera, para que a vontade do abraço fique onde está, dentro do coração, e não seja tentada a atravessar os olhos. A cada nova conversa, a vontade de escrever para dizer mais do que já foi dito, ou talvez para dizer a mesma coisa, mas dessa forma palpável a que se pode voltar uma e outra vez. E agora que os tenho tão perto, mais lhes sinto a falta. Talvez porque estes amigos me devolvam a justa medida de mim mesma, talvez porque ouça nas suas vozes o espanto por umas coisas e a anuência de outras. Como se me dissessem "nisso eu te reconheço" ou "pareces outra pessoa agora, por onde foi que andaste?". Guardo-lhes algumas frases, aqui no papel, para poder voltar-lhes depois. A essa forma tão exata que têm de perceberem aquilo que de nós se projeta.

Volto desses encontros cheia de novidades suculentas. Uns, oferecem-me novos poetas; vão até à prateleira rapidinho para me apresentarem aos versos de que mais gostam. Outros lembram-se depois de duas horas que ainda não almoçaram, e sinto que se despedem porque o relógio acusa o tempo e não porque a alma o solicite. E outros, que já almoçaram mas precisam lavar a louça, ficam contentes porque, enquanto a lavam vamos conversando, com o tilintar dos talheres ensaboados como música de fundo.

Passam-se meses, às vezes anos. Quase nunca nos vemos. Mas as nossas palavras são as mesmas, e reencontram-se sorridentes através desse mundo que nem de fios mais precisa para se comunicar. Rimo-nos das mesmas coisas a léguas de distância. Sabemos de que dores o outro fala. Sabemos que o embargo da voz é a lágrima presa. Que o silêncio compassado é a dor que não alivia. Que o riso que interrompe a frase é daquilo que já se sabe mas ainda não se assume, porque não é tempo.  E não dizemos nada, porque não é preciso. Sabemos do que os amigos falam, não porque sintamos o mesmo, mas porque sabemos de que tom de vermelho está constituído o coração de quem amamos. O coração desses de quem, talvez por pudor, dizemos sermos amigos em vez de dizermos que amamos. Porque reservamos o amor para aqueles seres raros que nos cortam a respiração. E talvez porque esqueçamos que amizade é amor. E que amor nunca é demais.


Foto: Pedro Ozório


06/04/2013

A cidade grande

Disseram-me ontem que quase-que-estou virando paulistana. Talvez porque, onde chego, falo do trânsito. Ou da reportagem da CBN, que aparentemente meus companheiros também ouviam no caminho. Ou porque me divirto avaliando a probabilidade concreta de chegar ou não na hora esperada, já desistida de me inquietar ou irritar com coisa tão elementar. Começo a descobrir com razoável facilidade se meu caminho é fluxo ou contra-fluxo. Já sei que trechos de pontes das marginais evitar às nove horas da manhã. E qual avenida eliminar do itinerário por causa das obras. Enquanto os pés dançam entre acelerador e freio, a mão escapa para tirar uma foto ao acaso. Querendo reter a beleza escondida por trás da água e do cinza, pendurada nos fios que enfeiam ou enobrecem a cidade. Como sempre e em todo lugar, o que faz as coisas mudarem é a perspectiva com que se observa.

O fato é que, não me sentindo quase-que-paulistana, gosto do que vejo quando cá/lá estou. Gosto da garoa, gosto do movimento, gosto de cada pedaço que preciso descobrir para ir de um lado ao outro. De Franco da Rocha ao Tremembé, do Parque Novo Mundo à Granja Julieta, de Taboão ao Morumbi, são quilômetros, braços dados com trabalho, oferecendo-me a cidade que ainda não conheço, longe da República, do Arouche, da São João, da Teodoro, de Pinheiros e da USP que me são familiares. Afasto-me dos espaços que já me foram casa e paixão e descubro novos recantos. Como essa casa de chá em meio à Chácara Santo Antônio, ruas e minutos antes do horário do filme de logo mais no Lumiére.

A Teakettle, chama-se a casa de chá, já fechou. Fica na rua Alexandre Dumas, 1049. Não quero, e nem minha companhia quer, perder a viagem que nos trouxe - tocamos a campainha e mesmo fechada a casa abre-se, a água ferve e o chá aparece. Friozinho de começo de noite em São Paulo e um bule de chá na mesa redonda. Paredes forradas de simpatia e à vontade, um oásis repentino assim, de mãos dadas com o burburinho lá de fora. "Ainda bem que vocês vieram, assim sei que tenho uma companhia" - dona Silvia, a proprietária, diz-se feliz de lhe interrompermos o descanso. Não há como não sorrir e encher as xícaras e recostar-se na cadeira de palhinha. Ao longe há um eco de poema, mas o longe é dentro, aqui guardado onde decidiu construir-se, nítido e forte como cada milímetro desta cidade tão grande e que, num instante, cabe dentro de um bule de chá. Ou de uma gota de chuva com sabor de saudade imensa.


A casa de chá tem um site!


01/04/2013

O sol, riqueza dos pobres

Diz-se isso, algures: que o sol é a riqueza dos pobres. Veio-me à lembrança porque dia desses me perguntaram de onde mesmo vinha a palavra quarar. Com ajuda de uns e outros, descobri que a palavra deriva do corar lusitano, absorvido e transmutado pelo tupi. Vale o mesmo que branquear, ao sol, a roupa branca necessitada de um tratamento extra. Ninguém mais faz isso: talvez os pobres, quando o sol lhes é a única riqueza.

E por que isso? Porque tenho uma amiga que me pergunta, aflita, o que fazer com um lençol sujo, encardido e manchado. Poderia parecer mais fácil comprar um novo. O que custaria? Vinte reais? Que seja: as soluções fáceis e rápidas contêm em si um perigo. Vamos assumindo-as como se fossem possíveis, e a vida vai se tornando, com a sutileza das coisas que parecem não ter importância, uma coisa descartável: manchou, troca; sujou, compra um novo. No momento sério, aquele que ao olhar para trás poderá revelar-se o limiar de um novo nós, pode ser que tendamos a fazer o mesmo. E de repente descobrimos que nos perdemos. Melhor quarar a alma ao sol, vez por outra.

Pergunto a minha amiga de que manchas quer ela se livrar. De tudo, responde evasiva. Não vou me meter na sua vida - melhor ajudá-la de forma pragmática, até porque gosto de encontrar soluções que nos livrem do supérfluo do supérfluo, especialmente em termos de limpeza. Descubro uma infinidade de dicas para quem quer voltar a ter um lençol branco como neve, sem esvaziar as prateleiras do supermercado. Como pode ser que sirva a outros (quem não tem um lençol pra lavar?!), segue abaixo o receituário completo. 

Lençóis brancos, e a sua irrecusável sensação de limpeza, estão perto do que as nossas almas respiram: sujam-se e limpam-se e sujam-se e limpam-se. Erram e acertam, e acertam e erram. Às vezes, precisam de ajuda, especialmente para o limpar-se e o acertar. Pequenas dicas de quem já tenha se sujado e errado por aí. O importante, creio, é não se render, imaginando que as manchas possam ser descartadas ou encaixotadas - como uma pele que trocássemos porque a nossa se enrugou antes da hora. Cedo ou tarde, elas voltam - melhor cuidar delas, e com o carinho que merecem por tudo o que nos fizeram e fazem crescer. À alma, ponho-a a quarar amanhã cedinho; quanto ao lençol, seguem-se outras possibilidades:

- deixá-lo de molho durante a noite com uma colher de sopa de amoníaco ou suco de limão;
- se muito, mas muito sujo mesmo, ferve-lo em balde de alumínio, com uma colher de sopa de terebentina. Amoníaco, na falta dela. Suco de limão, na falta de ambos;
- lençol amarelado, mais do que sujo? Lave-se com meia xícara de álcool;
- a mancha é de sangue? Esfregue-se com água oxigenada 10 volumes;
- uma tampa de anil líquido, 3 colheres de sopa de álcool, 1 colher de sopa de amoníaco e 1 colher de chá de bicarbonato parece bruxaria - mas é da branca. Deixa-se de molho por 4 horas e não se elimina da receita o bicarbonato, que é quem impede que o anil manche;
- mais uma: em água fervente, dissolvem-se 2 colheres de sopa de sabão em pó, 1 colher de sopa de aguarrás e 1 colher de sopa de amoníaco; acrescenta-se a mistela a um balde com água fria, onde a roupa ficará de molho por 4 horas;
- a inusitada: em balde grande, dissolvem-se duas colheres de sopa de sabão em pó; bate-se até formar espuma e então junta-se um saquinho de filó cheio de cascas de ovos esmagadas. Molho de uma hora;
- para deixar preparado e juntar à água da lavagem: 4 litros de água, 1/2 kg de sabão em pó, 1 kg de bórax ou ácido bórico (vende-se em farmácias e serve também pra fazer bombas caseiras também; pode ser que alguém ache estranho...). Aquece-se a água, dissolve-se o sabão em pó e depois o bórax. Não é preciso ferver. Deixa-se esfriar e guarda-se. Usa-se uma xícara bem cheia no tanque; 3/4 na máquina.
- e se você é daqueles que preferem ver, e só vendo pra crer:
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=ePaRlGPPKHA

Boa limpeza!


14/05/2012

Amigos no feriado


À Vera e ao André

Visito um casal de amigos, no último feriado. Amigos antigos, com aquela qualidade rara de nos olharem nos olhos e nos verem as pontas da alma. De perceber nuances que outros, mais recentes, podem nem ver passar. De sentir as intranquilidades que assolam os barcos antes do embate nas rochas. Por isso, não é preciso dizer nada, e em um instante, como em volta de uma fogueira, um céu de estrelas iluminando as ideias, é dito o que precisa ser ouvido, e é só.

Olho meus amigos e penso no quanto a maneira como a vida se escolhe se modifica ao longo dos anos; o quanto depuramos e transgredimos as certezas de um dia para vivermos o seguinte; o quanto nos afirmamos a partir de negações internas; e o quanto gostamos, ou não, do caminho que seguimos. As escolhas modificam-se, assim como a maneira como olhamos em volta para o outro, para nós mesmos; a maneira como consideramos a entrada do outro na nossa vida, o como nos abrimos em espaços que sequer sonhamos antes para que ele se faça em nós. Esse outro que nos reconstrói, que nos oferece com um sorriso de ternura a sua visão de mundo, completando e melhorando a nossa; esse outro que é nossa possibilidade de reconstrução da própria humanidade, nossa salvação, renovação da capacidade de amar, enriquecimento mútuo.

Com todos os rombos, todas as tempestades, todas as marés que sobem e descem, é um alento passear no passado e encontrar antigos futuros transformados em presente real. Mesmo com as rugas, as marcas, as dores todas do corpo que não se reconhece, somos mais que um simulacro do que éramos antes. Olhar para amigos antigos, perceber dentro dos braços o mesmo abraço, dentro dos olhos o mesmo sorriso, rir das aventuras passadas e perceber o quanto vive de ingenuidade dentro das nossas certezas: em tudo, formas de reviver e olhar a própria presença, acendendo a essência que dormia.

(Foto: Estância Ecológica Canto da Garça, em Juquitiba, onde moram a Vera e o André.)


11/01/2012

Fado


Há coisas que exercem um fascínio peculiar. Parecem pertencer a outro momento de nós próprios, um outro lugar de outro tempo em que éramos outras pessoas. O fado é isso, na minha vida. Reconheço a minha infância inteira nas letras que ouço, nas melodias que entram por mim adentro, sem respeitar as portas que fui instalando ao longo da vida. As novas paredes com que decorei o meu interior sucumbem ao arremesso do dedilhado da guitarra e, quando dou por mim, já estou a cantar baixinho. Nem sei se quero, mas os olhos fecham-se sem que eu os comande, e em dois segundos tenho diante de mim as águas do Tejo, o poente, as curvas da estrada de Cascais, a noite estendida pelas vielas estreitas dos bairros populares de Lisboa. Porções generosas de melancolia acompanhadas de sardinhas e vinho da casa numa tasca qualquer da Estrela. O ponto mais ocidental da Europa a bater nas janelas da casa que alicercei em terras brasileiras.

Nos últimos anos reaproximei-me do fado graças aos amigos que me puxaram de volta a ele. Com eles, creio que sem que o saibam, repaginei a figura do meu pai, a penumbra avermelhada das casas de fados que o fascinavam (e a mim como consequência), as noites que pareciam não ter fim, os olhos marejados a meio delas, os discos a ocuparem o espaço da casa em que não havia livros.  Com ele, o fado, despedi-me finalmente dessa figura paterna que, como tantas em tantos, desperta emoções e lembranças tão contraditórias. Ficaram-me, assim espero, os bons momentos; aboli os demais como se abolem os vincos da roupa quando a passamos a ferro. O calor, a atenção e o cuidado para que nada se perca, nada se queime e a vida se apresente inteira como se fosse nova. Dobro-os com cuidado, engomados e brancos como as camisas alentejanas que se mandam bordar a vermelho, dentro de uma gaveta que possa levar comigo e abrir quando e se for preciso. Mas nem quero que seja, para não precisar repetir gestos antigos no futuro que está tão próximo.

Devo, a esses amigos, a conciliação com a melancolia que me corre por dentro mas não chego a reconhecer como minha, porque me cansa, porque faz tempo, porque pertence a alguém que se encontrou no meio do caminho e decidiu-se por outras paisagens; concilio-me porque a deposito toda dentro do fado, dentro dessa forma de destino que assume voz e música como protagonistas e me livra, a mim, de transportá-la para a vida de todos os dias. Como se abrisse um interregno na vida de quem reconheço ao espelho, e pudesse voltar atrás, como quem pisa nas próprias pegadas sem olhar para trás.

(Imagem: "Fado", de José Malhoa)

22/12/2011

Meus amigos


Ao Fábio Cortés

Um dos alegados defeitos do meu pai era dar mais atenção a seus amigos do que a sua família – nada que a mim particularmente me ocupasse, gostava do trânsito frequente de pessoas que (ainda) não conhecia. E ele me dizia, várias vezes e sem querer desculpar-se, que os amigos eram seus mais preciosos tesouros, aqueles que podia escolher e deixar de escolher.  Meu pai era um bom amigo, capaz de tirar seu casaco e congelar, contanto que seu amigo se aquecesse. Algumas das suas dívidas derivam dessa qualidade chamada defeito.

Na formatura do nosso querido Fábio, ouvi dele que ficava feliz por perceber que éramos amigos. Que transcendêramos a relação professora-aluno, tutora-aluno, para nos equilibrarmos nesse terreno ensolarado e cheio de curvas que é a amizade. Meus olhos devem ter brilhado nesse momento, tanto o quanto agora se enchem de lágrimas, e ele certamente percebeu, porque me abraçou como costumava, fazendo soar meus ossos numa demonstração de afeto linda, livre e aberta, tal qual ele próprio. Agora que ele não mais ocupa o lugar físico que ocupou ao nosso lado, rodeia-nos um imenso lago de memória brilhante onde não podemos mergulhar porque nessas águas ainda não sabemos nadar. Fica uma imensa saudade que não preencheremos a não ser com os olhos fechados, cheios da imagem desse garoto-homem cheio de simpatia, um instante preso entre dois retalhos de lembranças que nos chegam de repente e nos fazem parar o que fazemos para retomar o fôlego e não nos afogarmos em lágrimas.

O Fábio tinha uma caligrafia marcante, inconfundível entre todas as outras. Preferia o lápis preto, grosso, a outros materiais e desenhava as suas letras com força e determinação, muitos riscos para cada traço, numa inclinação avessa a catalogações. Olhava para seu caderno e desgostava. E aquela letra rasgada, vitrine de inconformismo, chamava a minha atenção e agradava-me.

Nem todos os lados do Fábio viviam do lado de fora. A imensa vontade de acertar e conseguir ser aquilo que queriam que ele fosse não estava à vista de todos, talvez pela sua inquieta irreverência, tão veloz e rápida quanto o ouço agora recitar, com o seu acento carioca, o poema que escolheu gravar há 5 anos.

Bia, sua mãe, soube apaziguar e contemplar a vontade de Fábio com a qualidade da espera, quantas vezes com o coração em sobressalto. Dizia-lhe eu esta manhã que foi uma sorte o Fábio ter podido fazer todos os piercings que fez – apesar das críticas e dos narizes torcidos alheios, ele galgou os degraus do ensino médio da Aitiara com suas duas argolas pretas nos lábios com o mesmo sorriso com que gentilmente me pediu, meses depois, que as guardasse antes de cada jogo de handebol no torneio interwaldorf em São Paulo. Três anos depois, descobriu com seu trabalho de conclusão de curso que o alargador de orelha era antigamente usado, entre alguns povos, para aumentar o contato com o mundo dos espíritos. Eu disse-lhe que talvez tivesse sido esse o motivo da sua vontade, ainda que sem saber, e ele sorriu e não disse nada.

Já houve quem me dissesse que a relação que se constrói com alunos deve ser distante, permeada por alguma forma de autoridade que, feliz ou infelizmente, não brota nas terras em que meu coração foi semeado. Que alunos e amigos são coisas diferentes. Ontem pela manhã, ao sair do culto em intenção do Fábio, pensei na felicidade que tenho nos amigos que me rodeiam, ainda que partam sem aviso.Que  me escolheram e a quem eu escolhi. Às vezes é uma felicidade doída, porque nos deixam saudosos sem entender os porquês das partidas. Mas a felicidade é dessas coisas que percebemos quando já se foram, ou quando antecipamos a sua vinda. A chegada do Fábio à minha vida, com todos os amigos que chegaram com ele sob o codinome “alunos”, abrilhanta o caminho da minha vida e ilumina o roteiro da minha existência. Escolhem-me tanto quanto eu os escolho, e estaremos juntos sempre, por onde quer que cada um decida misteriosamente passear os seus caminhos.

14/09/2011

Galinha sem dono

Aos amigos do Aldeia

“Já te disse que a galinha não é nossa”. Gracinha tinha certeza, e repetia a mesma coisa a seu marido vezes sem conta. Eu, do meu lado desta cerca que nos divide, cheguei a ter pena dele. Duvidou, duvidou, tentou ainda argumentar, mas foi tanta a insistência de sua esposa, que acabou por prender a galinha no galinheiro e ir em busca de seu dono. Sei que Gracinha e seu marido gostam muito de suas galinhas, cuidam delas como se fossem filhas, e isso não porque não as tenham (as filhas), têm duas e bem criadas, mas as galinhas preenchem os seus dias, com seu andar estremunhado e seus olhos que não piscam. Cantam pela manhã, elas e seus companheiros, e avisam solícitas quando acabam de por um ovo. Nem sempre meus vizinhos os resgatam a todos – uma das alegrias das suas vidas é sentarem-se à varanda, rindo das ninhadas que correm atrás das mães, alegres e contentes como só os pintos sabem viver a vida. Assim que soube disso arrependi-me de todos os ovos roubados à tardinha e jurei nunca mais fazer uma dessas. Galinhas deitam-se cedo, ainda por cima, contava-me Gracinha explicando seu amor pelas aves, numa dessas conversas à varanda, o que nos economiza o trabalho que dão os animais de hábitos noturnos. Por vivermos no campo, não é raro sermos acordados pelos gatos da vizinhança em namoros com a nossa gata. Galinhas não miam à noite e são bastante comportadas em seus namoros. Eu assenti de leve com a cabeça, sem grande entusiasmo, que a mim as galinhas agradam-me, mas não a ponto de conversar sobre elas.

Mas a galinha estranha desse dia roubou o sossego das galinhas e dos vizinhos, logo pela manhã. Grande e gorda, toda branca à exceção de algumas penas marrons e pretas (que até lhe conferiam uma certa graça, há que se dizer a verdade), apareceu no gramado pavoneando-se como se de um peru se tratasse. Um ar superior olhando as demais, andando em círculos em volta das outras pobres coitadas, que por natureza não são nem grandes nem gordas e tendem mais à cor da terra, sem nuances. Ainda assim, são de uma graça natural que a gorda e grande visitante não conhecia. E obviamente não reconhecia.

Chamaram-me por cima da cerca, certos de que seria minha embora eu nem galinhas tenha. Mas fui lá ajudá-los a espantarem-na. Em vão. Por volta das onze horas encontramo-la expulsando uma das galinhas poedeiras de seu ninho, ansiosa por botar seu grande e vermelho ovo, descomunalmente grande. Espiamos os três por cima da cerca do fundo, tentando perceber alguma semelhança entre a invasora e as galinhas da outra vizinha. Mas as dela são diferentes, estão todas misturadas, estragadas por aquele galo carijó que o filho da vizinha ganhou junto com a esposa, e que nunca mais deixou as outras galinhas sossegadas. Certamente não era da vizinha a grande e gorda galinha. O marido, com o livro sobre galinhas debaixo do braço, não se decidia em classificá-la: Gracinha, ela se parece com esta Plymouth  Rock ou com esta Leghorn? Gracinha encolhia os ombros e olhava a galinha com uma tristeza desanimada.

O marido lá foi à procura do dono. Deu-lhe motivo para passeio, e para bater à porta dos outros, que é coisa que gosta de fazer. Mesmo quando não tem motivo. Agora que o tem, haverá de divertir-se.

Em pouco tempo a vizinhança toda sabe da galinha. Recebe imensas visitas, este bicho. Gracinha interrompeu a preparação do almoço pelo menos quatro vezes para atender ao portão e mostrar a galinha – depois de encontrá-la, claro. Todos meneiam a cabeça, elogiam a imensa galinha e dizem que não, que sequer têm galinhas, mas tanta foi a divulgação que decidiram vir conhecê-la. A mim tudo isso me dá trabalho – a cada batida de palmas, corro à cerca para ver quem é desta vez. E volto rindo pra minha cozinha, meu almoço também a meio.

Marido volta aborrecido: sugeriram-lhe que entregasse a galinha, mas sem vida e depenada. Confuso, respondeu que não, que aqui não matamos nossas galinhas, que são como filhos e por tanto fora do cardápio. Mesmo a galinha não sendo dele, começou a sê-lo nesse momento, em que repentinamente se mostrou companheira de batatas e cenouras dentro da panela. Para tudo há limites, dizia inconformado o marido, nem se fosse minha, imagine que há pessoas querendo canja da galinha alheia.

Finalmente, veio a dona, Gracinha atendeu. Agradeceu o incômodo, o trabalho de divulgação e busca. Porém a galinha não apareceu. E nem marido. Só mais tarde, quase noitinha, encontramos os dois ao fundo do quintal. Ela, grande e gorda, pastando as graminhas ralas da sombra, ele entretido entre o olhá-la e o ler o jornal de domingo, atrasado quase uma semana.
Desenho de Martina Schreiner

11/08/2011

Saraus

Na época em que eu fumava, tive um amigo que me apresentou a uns cigarrinhos curtos e finos que vinham da Índia, num pacotinho pequeno em forma de cone. Nada mais eram que uma folha de tabaco enrolada e presa com um fiozinho de linha colorida, esses "beedies" que na altura se compravam em Marrocos. Foi uma época intensa, essa. Por obra do destino, eu me via junto a um grupo de pessoas que se reunia para ler e ouvir poesia, e que, a meio dessa atmosfera densa, enfumaçada e sombria, fazia silêncios que duravam a eternidade que nos separa dos bandos de cavalos soltos pelas praias da península ibérica. Não sei do que eu mais gostava, se das palavras ou se do silêncio que ampliava o que elas diziam. Ouvia-se o riscar dos fósforos, o gorjeio das garrafas quando se esvaziam, e de repente mais uns versos de tantos poetas que, reparo, não me couberam na memória. João Cabral vem-me daquela época, em alguns poucos versos que, quando reaparecem, trazem de volta, como um presente, todos os encontros em um só, e eu agora sozinha, porque todos quase já se foram, ou porque se foram de fato, ou porque eu me fui deles e não posso mais reencontrá-los. Reinvento-os na solidão da minha mesa, cada um de seus olhares de pálpebras fechadas.

 Esse amigo, que se foi há anos, lia Lorca e Valéry como se lhe habitasse as veias, e a mim me acontecia aquilo que alguns chamam de alumbramento. Alumbravam-me as rimas, o ritmo, as palavras de escolha certeira, os que avançavam pelo que era concreto e os que se perdiam no que não era. Apareciam os surrealistas, não se discutiam nem se interpretavam. Vinham os imagéticos, os duros como pedras, os incisivos como tempestades de areia dentro dos olhos.

Ficou-me dessa época a vontade de ouvir e não dizer nada, essa substância volátil que em nossos dias é tão rara, que são os silenciamentos da alma que foi e se sabe tocada. Relendo João Cabral, descubro-lhe novos poemas, novos versos, novas imagens, percebo-lhe a tarefa imposta – a mais dura, a mais difícil. E penso em como será que sobreviveríamos se eles não estivessem em guarda para nos salvar da torpeza que é a insensibilidade humana.

Não havia convites, nem saraus a serem combinados, arranjados, preparados. Era a palavra pura que se capturava num instante para soltá-la logo a seguir. Um dia certo na semana, uma casa onde ir, e mais nada. De onde apareciam todos aqueles amantes da poesia, ou como, eu não sei – talvez combinassem, afinal, eu era menina demais para perceber o que a vida adulta demandava, tinha todo o tempo do meu mundo ao meu dispor e hoje vejo como nada disso era fácil, ainda que parecesse. Mas a lembrança ficou dessa forma, ela própria também um alumbramento, e acompanha-me nesta tarde, que prepara o derramar-se de hoje à noite, quando João Cabral nos visitar e com ele a legião de poetas que vivem do outro lado à espera de que os chamemos. Em silêncio, com cuidado, de olhos fechados e alma aberta.

02/05/2011

Cartas ao tempo que foi

Escrevo-te com décadas de atraso, quando já não podes ler as linhas que te dedico. Já não estás entre nós, dirão alguns, mas eu sinto-te tão perto quanto na tarde que acabou de se tornar presente, assim que encontrei agora mesmo a carta que me escreveste e da qual eu sequer me lembrava.

Esqueci-me de tanto ao longo dos anos. Por isso as cartas se tornaram elementos imprescindíveis da reconstrução do passado, e por tê-las guardado e porque foram escritas por ti, sabem dizer as coisas que, com décadas também de atraso, agora posso entender.

A passagem do tempo, que me dizias ser uma fera completamente imbatível, interpõe-se entre nós de maneira cáustica e definitiva, a ausência sempre grossa e dura entre o onde estás que ainda não me pertence e o onde estou que sei teres abandonado sem espaço e tempo para dizer adeus. Ou até logo, para que soe menos inexorável.

Se existias, perguntavas-me tu. E eu tinha tão pouca idade, como saberia dizer-te a ti, que já chegavas à curva do mesmo caminho de Caeiro, se existias? Se eu mesma tão pouca certeza tinha de qualquer coisa existir de fato? Como eu própria. Como aquilo que se materializava no espaço desconstruído entre nossos corpos.

Todos os adjetivos que me davas naqueles anos pesam-me na balança, desequilibrados pelo outro prato que se construiu nestes 30 anos de distância entre aqueles dias e os de hoje, tantas dimensões a se interporem, um coração que parou numa mesa de operação e um outro que não sabia ficar-se à espera.

Depois é sempre tarde. E eu não acreditei. E continuo sem saber como tornar verdade o que é verdade, e saber-me chegar e sair, penetrar e diluir a partir dessa verdade tão nua, tão crua e tão real. Saber que depois é sempre tarde.

Penso nas coisas intemporais tais quais as vias e me dizias: o mar, o calor sob o sol ou o rumor das fontes, e vejo-te inclinado e pesado sob a tua bengala, tropeçando nos móveis da tua biblioteca feita de paredes de livros empilhados, deitados uns sobre os outros, construindo paredes de metáforas pedaços de Marrocos conchas da Cataluña vento das praias de Cascais e sombras e perdas e saudades. Vejo-te à mesa em que te sentavas, a pequena lâmpada iluminando mortiça a tua cabeça toda branca, os cabelos que já não eram tantos em desalinho de poeta que pensa, os óculos que te caíam por baixo dos olhos inquietos, a mão trauteando as palavras que te vinham à mente ao ler o teu Pessoa, que fizeste com que fosse nosso e logo em pouco tempo meu. Vejo-te com tanta clareza, mas não me lembro do que me dizias, quando ao chegar me acenavas e abrias os teus braços e dizias algo. Que era sempre feito das mesmas palavras e eu não lembro quais.

Onde estava eu, que não te prestei a atenção que merecias? Onde estava, ao fugir assustada com a intensidade do que me propunhas, e passei depois anos e anos e anos à procura de uma intensidade assim no mundo? Como se fosses tu a ergueres o teu dedo e a decretares o meu destino, encontro tantas fugas no meu próprio caminho.

Nossos encontros feitos de letras, e de versos, e de silêncios densos e valiosos, com o sol poente de Lisboa tingindo as paredes de um quarto de hotel que se tornou o paraíso só por causa das palavras que usavas e mais nada. Nossos encontros sempre de letras, na biblioteca da editora em que te trancavas e de onde só saías quando sabias que eu chegava, sem me dizeres nada, e eu percebendo tudo isso nos olhos de quem, como tu, estava à espera do horário da saída, e o tempo não passava.

Agora que posso escrever-te, não podes ler-me, nem podes perceber que o tempo, fera enegrecida, transformou-me naquilo de que estavas à espera, tudo nas palmas das tuas mãos e sem teres onde guardar.

Quando leio que dizes que chegamos à borda da absoluta sinceridade, eu fecho os olhos de dor de não lembrar-me dessa espera tão incerta, aqui prensada nesse papel que já amarelou de cansaço e que se torna tão real, tão palpável, por trás destas letras que me deixaste de herança, e que decido tornar a guardar na mesma pasta. Certamente voltarei a elas, e sentirei a tua presença morna tal qual a sinto agora. E nesse dia não vou mais lamentar, mas perceber que o tempo que se esgota é aquele que nos preenche, e que a distância, e os anos, e tudo o que nos separa daquilo que pudemos ter sido e não fomos, é o que nos constrói na aceitação cotidiana do que afinal nos tornamos, e que eu devo às palavras que depositaste em mim, ainda que não me lembre nem saiba me repetir quais foram.


A J.A.L. (1925-1987)

07/03/2011

História feita de emails

Passei horas hoje à tarde fazendo história: lendo e relendo mensagens enviadas e recebidas há anos, todas guardadinhas na minha caixa de emails. Para dias que despertam com uma aura de melancolia que não se apaga, mas ainda assim não oferecem riscos de tristeza, como esta segunda gorda de Carnaval encaminhando-se para o frio noturno, é um prato cheio.

Assim, fui passear pelo passado da comunicação virtual, à procura de pequenas pérolas que a frequentaram e se deixaram guardar – um novo projeto em curso. Como caixa de Pandora, levanta-se de tudo à minha aproximação, e é preciso que me mantenha alerta e vigilante, para que afinal a tristeza não se agregue ao dia cinzento e me derrube da precária rede em que vim cair.

Poderia compor uma história de vida com fragmentos de emails; as frequências e as infrequências, o que não deveria ter sido escrito (mas foi e, pior, enviado), o que deixou de ser lido e que agora dói nos olhos por não ter tido a resposta que merecia, e agora é tarde, tanto que arde, como queria o coelho da Alice.

Há de tudo pelo caminho, pedras e plumas, sonhos compartilhados, planos vários, uns concluídos, outros abandonados. Convites bem humorados, feitos e recebidos: uns respondidos, outros desconsiderados. Pedidos de ajuda, tentativas de conquista. Sugestões de leitura, indicação de remédio para mil e uma ocasiões. Opiniões sinceras e amigas ao lado das farpas que quase encaminho para a lixeira, mas cuidado: o que não vale hoje, valerá amanhã quem sabe, e por isso a minha lixeira não guarda quase nada, porque tudo eu devo ter merecido, acho até que o que chegou por engano.

Entre os bem antigos, com data de outras décadas, encontro o aroma de quem já se foi; não fossem dois ou três emails trocados e guardados, nada teria ficado que me fizesse chorar, e o choro não me entristece, antes revigora e ilumina todos os que estão ao meu lado.

Ainda assim, volto rápido ao passado mais próximo, porque eu já sei de que cor está hoje a minha alma. Retomo caminhos abandonados. Mas não sei quem abandonou quem - e se fui eu, será que volto? O dia não está para dúvidas, nem meu coração para retomadas sem motivo, mantenho-me no registro histórico e nada preciso mudar do presente quase pretérito ainda não futuro.

Descubro coisas minhas que esqueci, textos que imaginava para sempre perdidos. Uns, até, que nem lembrava ter escrito, e pelos quais me alegro (imensamente!) ter sido a única destinatária. Não valem a leitura alheia.

Pesquiso por nome: comprovo que a memória é fraca, e espanto-me com a quantidade de coisas que nos dizemos e depois esquecemos. A quantidade de perguntas sem resposta. As respostas a perguntas que sequer foram feitas. E um espaço aberto, imenso, gigantesco, feito do mais puro esquecimento. Uns silêncios diferentes daqueles que se deixaram tão somente de dizer: aqueles que foram criados para que do outro lado se mastigue pelos ouvidos um “não vou dizer” que nunca se dirá. E por isso sem resposta. Esse espaço abre-se como chaga, e esse eu não tenho intenção de suportar.

Dirijo-me ao setor das alegrias, das risadas, do humor rosa e negro, das mensagens sem sentido defendendo as causas mais indefensáveis, os sofistas de plantão, os hábeis argumentadores, as ofertas de produtos e serviços.

Entre toda essa teia, há presenças que se mantêm por anos; há os que me frequentaram durante um tempo e depois se afastaram – uns de repente, outros mansos e lentamente. Sinto saudades e falta de alguns – ou do tempo em que estavam, aquele hoje irrecuperável. Ainda assim, porque estou diante deles e a cor é a mesma, porque o amarelado do tempo não marca as telas dos computadores, posso imaginar que está tudo ainda vivo, e forte, e pulsante e entusiasmante. Um dos milagres da virtualidade, quem sabe. 

15/01/2011

De Isidoro de Sevilha




Isidoro de Sevilha atrasou-me as boas intenções que tinha de descanso noturno. Cismada há semanas com essa criatura, dia a dia descubro mais alguma coisa. Hoje, numa amálgama de pensamentos que à primeira vista pareciam caóticos e sem nexo, surge-me de repente a luz brilhante desse pensador andaluz.

A etimologia teve uma consistência toda especial durante a Idade Média, uma espécie de “busca persistente da transparência da palavra”. Entre os que, naquela época, se interessavam e dedicavam a essa parte da gramática, Santo Isidoro foi um dos mais importantes – muito do que pensou e viu está reunido em sua obra “Etimologias”, vinte livros dedicados a cada um dos campos do conhecimento. Isidoro escreve sobre basicamente tudo. A medicina é um dos campos a que mais dedica a sua atenção, oferecendo descrições minuciosas de doenças, tratamentos, instrumentos; mas Isidoro fala também de pássaros, construção de estradas e edifícios, moda, mobiliário, naves, meditações teológicas... Tão versátil e abrangente que o Vaticano aceitou a sugestão e declarou-o, em 2000, santo padroeiro dos internautas.

A linguagem ocupa-lhe parte substancial, mais como alumbramento do que como convenção. Por entre os excertos que leio, fiapos do santo, percebo que Isidoro sabe que a palavra nos alerta para o verdadeiro sentido da vida. Discorre, por exemplo, que ao dizermos “obrigado” demonstramos saber que a gratidão impõe vínculos entre as pessoas, sejam eles de retribuição ou de puro reconhecimento.

Por causa de Isidoro descobri, dia destes, que animi custos (“guardião da alma”) é a raiz primeira da palavra “amigo”. Ser amigo é exercício diário, às vezes um chamado insistente, daqueles que nos mantém acordados por horas em que sensatamente deveríamos dormir, impede-nos de comer quando a fome se insinua, retira-nos de repente do nosso movimento programado apenas porque é preciso, sem se explicar. Porém, acrescenta-nos: faz com que agradeçamos o poder guardar uma alma que precise de nós, e pensar nela mesma como nossa guardiã recíproca, porque o tempo passa e a vida muda, e tudo o que foi um dia voltará.

Antonio Cícero, o poeta, diz que em cofre não se guarda coisa alguma, porque se perde a coisa à vista; que guardar é olhar, admirar, fitar. Por isso guardar os amigos, e as suas almas: olhá-los e admirá-los sob a luz do sol ou sob as sombras dos dias, abertos ou sufocados, libertos ou aprisionados; ao longe se necessário for, envolvendo-os em laços feitos das rotas dos pássaros, transparentes e ousadas na sua existência silenciosa e invisível. Ou de perto tão perto que se confundam em nós as linhas dos rostos. De uma ou de outra forma, manter os olhos pousados sobre eles, os amigos, para que em dias de trevas eles repousem apoiados em nosso olhar.

Agora, não quero fazer mais nada. Apenas deitar-me, fechar os olhos e ver ao meu lado, como se ao alcance do desejo da minha mão, os amigos que não se incomodam com a distância e se fazem cada vez mais presentes, e aqueles que mesmo perto decidem ser longínquos. Os amigos que me frequentam, aqueles que me esqueceram e aqueles que ainda não conheço. Através dos meus olhos fechados e da escuridão, abraço-os a todos na proximidade íntima que a minha alma cria nesta noite. Espero que nada me acorde tão cedo e que Isidoro de Sevilha descanse em paz, assim como todos os amigos que dela precisam nesta noite.

(Foto: estátua de San Isidoro, diante da Biblioteca Nacional, Madrid.)

16/05/2010

Viagem de ônibus pelo Rio de Janeiro

Recebi um email hoje de manhã que me perguntava “Ouve lá... o que achas mais inteligente, o livro ou a sabedoria?”. Diverti-me um bom bocado (estou divertida até agora, aquela espécie de diversão abençoada), imensamente recompensada pelos encontros linguísticos que permeiam a vida. Repararam? O “ouve lá” é obviamente lusitano, induz-me a ouvir atrás dele o “psiu...” lisboeta com que tantas vezes um amigo comum da mesma pessoa que me escreve me chamou quando podíamos nos ver ao vivo. Já a pergunta, que por acaso sei de onde vem, põe-me o Rio de Janeiro diante dos olhos, e não qualquer Rio, mas o que me acolheu quando pus os pés no Brasil. Duas cidades lado a lado, com suas palavras, acentos, curvas e pessoas. E já que hoje é domingo, às vezes dia de ficar aqui observando sem pressa os próprios pensamentos, eu vou responder com gosto à pergunta. Ainda por cima, acho que o tema combina mesmo com o domingo.

É de José Datrino, que nasceu em 1917 em Cafelândia e aprendeu em criança a amansar burros, que o email simpático da Nita, uma portuguesa que vive em Famalicão e eu só conheço virtualmente, me fala. A Nita é poeta, e leitora de poesia. De vez em quando trocamos poemas. Às vezes ela manda-me coisas que descobre do Brasil, para ver se eu conheço e se sei mais do que ela descobriu. Vamos construindo, Nita e eu, uma relação baseada no crescimento mútuo – assim de longe, eu digo-lhe o que acho de seus poemas, ela diz-me o que pensa dos meus. Há dias em que põe o dedo na ferida, e eu olho para o que ela escreve desacreditando que ela tenha me dito o que me disse, será que não vê que assim me faz sofrer? Sentir-me idiota? Querer desistir de escrever? Leitora crítica, sem dó de mim, esquarteja-me os versos para me fazer ver o quanto tantas vezes são pueris, óbvios, presos à abstração que não quer afundar os pés na concretude das coisas. Algo da poesia de Nita é concreto e duro por demais, faz-me lembrar às vezes uma Orides Fontela nos idos da infância – e ela não deve gostar também quando lhe digo isso, com provas circunstanciais ainda por cima. Mas é por isso que nossa correspondência cresce, porque é uma sorte termo-nos uma à outra assim, leitoras em construção de uma amizade que impede que coisas maiores nos magoem com mais força; encontro na Nita o espaço de exposição segura da minha alma., e cuido para que a dela não fique desamparada. Mesmo quando não me diz nada, eu sei que algo prepara, porque nunca a Nita me deixará sem resposta, perdida no universo da indiferença que me abate. A Nita pode ser cruel, mas nunca infiel. Quando demora, é porque está a pensar.

Voltando ao José Datrino. É provável que qualquer um saiba sem saber que saiba de quem se trata. Digo a Nita que ela precisa ouvir a Marisa Monte cantando a pergunta que ela me fez, e bem rapidamente estamos as duas com a tela do youtube aberta, e decidimos contar “um, dois, três e... já!” para entrarmos juntas na viagem de ônibus entre o cemitério do Caju e a rodoviária NovoRio. Consigo ver ao longe as lágrimas que se formam nos cantos dos olhos de Nita ao passar pelas pilastras que seguram o viaduto graças às palavras que  as colorem e resignificam, quando o movimento que a câmera faz lhe descobre as flores distribuídas, o amor em ação pelas ruas da capital carioca. Conheço a canção de todos os cantos, porque gosto dela e de ouvi-la, mas nunca antes lhe prestei uma atenção desta natureza, com uma companhia ao longe que sabe que eu vejo e sinto os mesmos caminhos que seus olhos e coração veem e sentem.

É claro que a pergunta que ela me fez foi apenas um convite a estarmos juntas, um pretexto para reacender o diálogo, porque às vezes são precisos pretextos para reencontrar coisas perdidas que não queríamos ter perdido, pessoas que correm o risco de se esfumaçar no tempo se não inventamos as perguntas que as concretizam novamente à nossa volta. É claro que ela já tinha encontrado e sabia quem era Gentileza, o profeta que nasceu José Datrino, na Wikipédia, no youtube, no cifras.com e em mil outros lugares que oferecem o que quisermos se soubermos procurar. Faltava-lhe encontrar o nosso espaço comum, a nossa amizade feita carne, sangue, ouvido, boca, a alegria de poder viver com o outro o que lhe nasceu de repente numa manhã. O meu domingo, deste lado do atlântico, com sol e silêncio ao redor, no meio de uma trégua decidida entre as dúvidas da semana que se inicia, ganhou firmeza e verdade, ausente da solidão que ataca e desconstrói as nossas melhores disposições de gentileza. Como já dizia o profeta: “Amor, palavra que liberta”.

Que profeta? Este!

31/03/2010

Aos medos, comê-los

As Berlengas são umas ilhas minúsculas no horizonte da praia que me viu nascer e entrar no mar pela primeira vez. Em dias claros, veem-se com quase nitidez ao longe – estão distantes o suficiente para inspirarem sonhos suspensos em qualquer criança, mas não tanto que as milhas não se possam vencer em uma lancha de médio porte. Povoaram o meu imaginário durante muitos anos, enquanto não lhes pus os pés em cima, e continuaram a fazê-lo depois de as conhecer, por causa do forte que lá existe e da própria paisagem que ali parece ter se deslocado.

Minúsculas, em termos: uma delas chega a ser habitada, tem um farol e até uma fortaleza que hoje é roteiro turístico. Imagino que tenha uma importância biológica razoável, já que descubro que são reserva natural já há muitos anos, sem que eu o soubesse.

Lembrei-me delas porque pus-me hoje a cozinhar um polvo. Venci nestas últimas semanas o horror infantil que tinha a esse bicho cheio de ventosas e braços desarticulados entre si. E as Berlengas estão cheias deles, horrorizando-me com os seus movimentos sinuosos, esgueirando-se por entre as pedras e escondendo-se nas muitas cavernas que esse micro arquipélago tem. São pequenos e escuros, os polvos das Berlengas, e este que comprei, além de claro (provavelmente porque suas células não excretem mais o que antes o camuflava e escurecia), é razoavelmente grande – 1,5 kg, que é como manda a receita.

Meu horror foi vencido à força de garfo. Tive que comer, porque foi uma oferta e já se vê que oferta não se recusa, e como já tenho idade suficiente, não entrei em pânico nem em agonia, e até me dispus a apreciar o que todos me dizem, há anos sem conta, ser uma iguaria. Os que já se foram ficarão satisfeitos se me puderem ver agora, avental vestido, tesoura de corte em punho,a avançar em direção a esse cefalópode pronto a ser temperado e cozido e comido. Além de vencer o medo, aprendi a cozinhar o dito cujo, de uma dessas maneiras simples que tem a cozinha portuguesa, em que não são precisas medidas porque tudo é resumidamente “q.b.” (ou seja, quanto baste) ou “uma pitada”. Ainda bem que estou sozinha em casa, porque a minha intenção é preparar o jantar com carinho e dedicação, pensando nos convidados que aqui estarão logo mais, e desta vez preciso realmente de quietude e solidão absolutas, porque sei que mexo num medo ancestral que me vive dentro. Não sei o que Freud diria, mas acabar com ele desta forma parece bastante convincente. Fico pensando nos outros medos, nos dissabores da vida, e creio que tentarei fazer o mesmo com alguns deles: olhá-los de frente, mergulhá-los na água a ferver, passá-los pelas brasas de um carvão incandescente, espetar-lhes o garfo e mastigar até o fim cada uma das suas fibras rijas. Provavelmente resistirão, meus dentes se fartarão, mas, como a este polvo, quero inseri-los na minha própria carne, fazer-me de cada uma das suas moléculas.

Os convidados chegam e sentam-se. Polvo não é um prato comum, e eu espero que não sejam apenas atenciosos e se sirvam só para não me afligir. Mas não – repetem uma e outra vez, e assim, de vez, o meu medo aos polvos dissipa-se. Dividi-o com os meus amigos, contei-lhes o que se passa, e eles respondem ajudando-me nessa orgia atávica em que se mastigam todos os pavores temperados. Como já imaginava, dormi muito melhor esta noite, desacompanhada de pesadelos.