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23/08/2011

Fome



Contava eu hoje pela manhã a um grupo de jovens que a desgraça alheia ajuda-me desde pequena a lidar com a própria – sempre e por todo lado menor. Às vezes (agora, por exemplo, em que escrevo) chega a parecer-me quase um utilitarismo: pensar no infortúnio dos outros para consolar-me do meu. Mas não é consolo. É dimensão.

Dimensão do abismo insuportável que me separa da dor do outro, que eu quero sentir para poder aplacar, mas não sinto, e não aplaco. Insuperável , insondável, intransponível, inalcançável. Qualquer dessas palavras serve-me para o mesmo: para a dimensão desse abismo entre o que eu quero e o que eu posso, que em tudo se assemelha ao que todos queremos e de fato podemos. Meu grão de areia insuportável e intransponivelmente irrelevante. Naquilo que posso, a minúscula contribuição ao (quando muito) resgate de alguma parcela da dignidade alheia, essa que falta e escasseia - subtraída, escondida, roubada. Haveria de inventar palavras que falassem dela.

Por isso, a importância de nestes nossos dias ouvir a poesia e o canto somali, as narrativas etíopes que se perdem nos confins dos tempos em que viviam a rainha de Sabá e o rei Salomão. Aos meus olhos e ouvidos, resgatam do seu anonimato esses rostos desfigurados pela fome e pela desventura; tornam-se o semblante humano da arte, aquilo que os faz, de forma altiva e silenciosa, meus mais desgraçados irmãos – irmãos que sorriem e dão graças a deus porque de seus nove filhos dois chegaram vivos ao campo de refugiados para onde caminharam durante semanas; irmãos que dão graças a deus porque nesse dia têm uma xícara de arroz para compartilhar entre oito; irmãos que não choram mais porque as lágrimas secaram nas areias dos desertos que habitam; porque nesse dia o carregamento de água trará a ilusão de que a sede acabará; e porque amanhã a mesma coisa, até não caber no corpo nem sequer uma ilusão.

Repito a cada noite os nomes etíopes e somalis que conheço: Asad, Meseret, Mihret, Oumed, Amina, Erasto, Ayanna, Selassie, Dalmar, Nadif. Muitos podem chamar-se dessa forma, e a todos quero incluir na minha noite em que não existem nem sede, nem fome, nem quilômetros de sol à frente de meus passos nus, nem crianças mortas a cada lado da estrada, nem uma continuidade inacabável de sofrimento às minhas costas.

Repito-os para que tomem forma e me lembrem em sonhos da imensidão que é a raça humana, e a sua capacidade de sobrevivência em face do desespero alheio. A cada morte de cada um a minha existência perde algo da sua humanidade, e eu preciso da arte, desesperadamente, para lembrar-me de que o seu sofrimento é o meu também, e de que enquanto eles, tão longe de mim no tempo e no espaço, não deixarem a um lado a fome e a sede, cada meu prato de comida pesa-me uma tonelada, e jamais saciará a fome que sinto em seu nome, e da qual me lembrarei a cada noite ao dormir, a cada manhã ao levantar. Como um fardo que ponho às minhas costas porque quero e porque assim, bem mais egoísta do que gostaria de ser, posso dormir.

02/11/2010

Kwashiorkor

Ontem, em plena Amando, minha querida amiga que também é nutricionista olhou-me com a expressão mais natural do mundo (o que me leva a desconfiar que muitos farão o mesmo), mas mesmo assim passei o dia com a palavra kwashiorkor ressoando dentro da minha cabeça.  Gosto de palavras com esse som silenciante dentro da sua estrutura, parece que me remetem para a audição interna dos sentimentos que não são nomináveis. O desastre que kwashiorkor significa não é nominável. Como cheguei há anos à conclusão de que os males que afetam o corpo correspondem em muito aos que nos atingem a alma, kwashiorkor se converteu num assunto para muitas horas pensantes.

“Aquele que é deixado de lado”, em uma das línguas nacionais de Gana, dá nome a uma das doenças que mais matam na África rural e no sudeste da Ásia. Espécie de marasmo que incha em vez de secar de tão desnutrido, provoca barriga d’água, cabelos brancos em crianças de pouco mais de ano e outros desesperos. “Aquele que é deixado de lado” ataca mais primeiros filhos de mães em situação de miséria extrema e absoluta, que precisam amamentar com o músculo e o sangue não possuem o segundo filho que nasceu; passam a alimentar o primeiro, prematuramente, com o que têm: sopas de mandioca ou inhame ou arroz ou qualquer outra coisa carente da proteína e do ferro que fazem crescer e desenvolver. Enquanto os pequenos com marasmo (a outra forma de desnutrição por excelência) secam e desidratam, os que são deixados de lado incham, de tanto líquido retido.

Ao longo do dia, desloquei-me lentamente das dores atrozes do físico - também as almas podem sofrer de kwashiorkor, mesmo que não cheguem, com a obviedade que só o olho vê, às extremidades aflitivas da doença física. Algumas almas embrenham-se meses e meses pelos campos do marasmo, emagrecem na sua própria secura, até não conseguirmos lembrar se eram secas antes de secarem. Outras, num repente de algum processo não químico, são deixadas de lado, e começam a inchar, a reter todos os líquidos anímicos que se aproximam. Talvez seja a esperança (vã) de que revigorem e façam crescer, em fortalecimento e saúde. Formam-se barrigas d’água a partir do menor dos olhares, do esboço de um gesto, de qualquer intenção não concretizada nem prometida; de longe, tudo parece alimento, dilui-se qualquer raiz ressequida em água para que renda mais, mas a dureza das coisas, do caldo volátil feito de carboidrato sem ferro, evidencia-se na dificuldade de levantar a alma da cadeira em que desabou. Confunde-se uma alma cheia com uma alma inchada, e só de muito perto se percebe a diferença, às vezes.

Em tempos assim, a cicatrização é lenta e a imunidade baixa. As dores demoram a fechar-se dentro das feridas e qualquer desequilíbrio provoca febres e vermelhidões. Basta um desafio a mais, uma situação inesperada, para que o tônus se altere e o processo se acelere.

Por incrível que pareça, há vantagens do kwashiorkor sobre o marasmo: o segundo leva mais tempo a vencer-se, se é que se vence, porque almas (assim como corpos) que se entregam à lassidão e à indiferença sobrevivem com dificuldade e perdem-se dos outros; o kwashiorkor só precisa mesmo é de atenção, e como ataca os mais velhos em primeiro lugar, já encontra mais estrutura quando aparece. Já que há que sofrer, que se sofra com um horizonte de solução mais próximo, ainda que ilusório.