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28/12/2010

2011 resistente ou resiliente?

Esta crônica estava engavetada há meses. Quis escrever algo sobre essas duas atitudes que dão título a estas linhas, sem perceber que na verdade a sua vocação era fazerem-se texto conforme se aproximasse 2011. Agora que já cheguei ao final do que queria escrever, e apenas volto aqui em cima para introduzir o tema de forma menos enervante que o parágrafo que se segue, sei perfeitamente qual era mesmo a minha questão com essas palavrinhas.

“Resiliência” virou moda - muitos usam e nem todos conseguem exatamente explicar do que se trata. “Capacidade de adaptação”, disseram-me outro dia. Quase lá, a julgar pelo Aurélio roído de traças daqui de casa: com alguma relação escondida, resiliência tanto é a “resistência ao choque” quanto “a propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo deformado é devolvida quando cessa a tensão causadora de uma deformação elástica”. Do campo da física, e do inglês por assimilação saxônica, a palavra migrou para a psicologia, e de lá para o campo da educação - é só procurar no google que logo aparecem muitos e muitos links que remetem ao conceito.

Para tornar-se conceito, de fato, é preciso que muitos usem uma determinada palavra, sobretudo quando esta se desloca de um campo do conhecimento a outro, passando a ser necessário estabelecer algum parâmetro mínimo comum, criando um repertório que nos permita a troca de ideias. Mecanismo básico da comunicação eficiente. Ainda assim, não resolve a situação, até porque nem o Aurélio, conceituador mor por definição, dá conta de explicar o que vem a ser a resiliência fora do espectro da física. De qualquer forma, ser resiliente tornou-se uma qualidade, senão uma competência, que os educadores devem desenvolver – parece garantia de sobrevivência, mesmo que não se saiba exatamente do que se trata.

Eu achava (antes de escrever esta crônica e ler um pouco sobre o assunto, na ordem inversa já se vê) que tinha um tanto de qualidades resilientes. Imaginava que, quando permitida minha forma original, devolvia de boa vontade toda a energia represada. Como se um movimento de equilíbrio de forças yang e yin, adequado aliás a nosso século de instabilidades climáticas e emocionais. Só não chegava a ver com grande clareza a quem devolver essa energia contida, e que muitas vezes nada tem de agradável: ao agente da minha deformação? A quem assistia a tal deformação e nada dizia? Ou a quem nem deformava, nem assistia, mas permitia? Talvez quem sabe aos recantos que ficaram em mim quase mortos por inanição, enquanto partes de mim deformadas se ocupavam por vontade e imposição alheia em reter a energia que lhes pertencia? Discussão interna desnecessária, como se verá.

O tal “resistir ao choque” adapta-se aqui de forma no mínimo canhestra: resiliência seria então a propriedade de devolver a energia que estava travada, seja lá a quem de direito, mas também “resistir ao choque”? Estando comprimido, resistir ao choque? Apesar de contido, apertado, deformado: resistir ao choque? Resistir. Seria mais fácil, se fácil assim fosse, falar de “resistência” e desistir dos empréstimos ao campo da física.
Resistência está ligada à ideia de oposição, de suportar algo que não agrada. Resiliência pressupõe o desenvolvimento de sete capacidades, e já se vê que só por isso é conceito mais elaborado e abrangente. Longe de incorporar a ideia de oposição, o ser resiliente é aquele que 1) administra suas emoções (ou seja, mantém-se sereno em situações de estresse); 2) controla seus impulsos (ou, em outras palavras, auto-regula as suas emoções); 3) é otimista (acredita que tudo pode mudar para melhor); 4) analisa o ambiente e assim evita colocar-se em situações de risco; 5) é empático, ajustando as suas atitudes a partir daquilo que percebe das emoções alheias; 6) é auto-eficiente (acredita ser capaz de resolver os próprios problemas com aquilo que tem ao seu dispor); e 7) sabe relacionar-se e criar vínculos com outras pessoas, sem receio e sem medo de fracassar. Não tive problemas em reconhecer a quantidade de lacunas nas minhas capacidades resilientes...

Isto de escarafunchar o meio das palavras é uma verdadeira lição de vida, tinha razão Isidoro de Sevilha (hei de contar-vos sobre ele um destes dias). Olhar para dentro delas, para o fora que se tornou história, para os caminhos que tomaram enquanto aprendiam a andar e começavam a falar, para a sua ressonância em meus ouvidos e em minha alma. Escrevo-as de várias formas, encontro-lhes significados ocultos, cabalas imensas a bailarem diante de mim ainda que nada delas entenda – encantam-me. Só por brincar com elas, as palavras, sei o que desejo a todos neste 2011:  a intenção firme de resistir (portanto não ceder, portanto defender-se, portanto fazer frente) aos choques que venham na direção de cada um. E assim que passarem (e passarão assim que o novo ano avançar, sou otimista afinal porque sou pelo menos um pouco resiliente), que todos devolvam a si próprios a energia que outros desperdiçaram, enquanto se dedicavam a oprimir, comprimir, apertar, deformar o que foi feito para viver livre, solto e em paz.

24/07/2010

Fazer aniversário

Fazer aniversário é um luxo. Uma sorte. Um enigma. Uma passagem. Eu, particularmente, gosto de contar os anos que passam, gosto do sabor que fica impregnado em cada um deles, o aroma às vezes a naftalina, como os casacos de alguns de nós que só saem do armário e visitam o mundo quando faz frio. Lamentavelmente a memória me atraiçoa e custo a lembrar quando em que ano qual a data em que aquilo se deu. Quando outros me lembram, juro que não voltarei a esquecer, mas nem sempre consigo cumprir a promessa.

Hoje, 23 de julho, faria aniversário minha filha se fosse viva. Tenho há anos guardado um poema que o português David Mourão Ferreira escreveu no dia do 18º aniversário de sua filha, que nunca chegou a nascer porque quando o fez já se tinha perdido no limbo. Às portas de entrar neste mundo, deixou-se voltar ao outro lado. David gravou esse poema em um cd que o tempo (e as crianças) se encarregou de riscar, mas o registro da sua voz grave e embargada, o sibilar da baforada de cachimbo numa das pausas entre estrofes, ficaram-me nos ouvidos. Se fecho os olhos, vejo-o, envolto nas suas nuvens azuis de tabaco, os olhos postos numa filha que nunca viu.

É um poema aberto e limpo, tristemente sereno e doce, e durante todos estes anos em que conviveu comigo ali ao lado, manteve-me a chama acesa de uma data que não sei por que deveria significar alguma coisa. Antecipo este dia de hoje, este ano de hoje, há anos sem fim, pulando-os num rosário de contas transparentes umas, opacas como corvos outras. Mas esta noite é noite de lua cheia, a lua cheia de julho, a lua cheia de julho de 2010. Sem precisar de dotes extraordinários de antevisão e premonição, sei que sabia que este dia não seria como os outros, nem esta noite, nem esta lua, nem este ano. Dentro de todas as realizações e mudanças, de todas as decisões e conquistas, de todas as saudades de tantos, persiste imóvel, atenta como uma estátua grega, a imagem da minha filha hoje com 18 anos. Durante muito tempo pensei em celebrar-lhe a vida do outro lado, e deixar de lado a que não viveu aqui – mas não é verdade que não a tenha vivido, que não esteja codo a codo, como diria um espanhol com muito mais peso do que entre dois cotovelos, entre nós, o tempo todo.

Persiste imóvel e assiste. Recolhe no espaço todos os movimentos intensos daqueles que amou e a amaram, e neste dia que é de alegria, ela ri e joga a cabeça pra trás, olhando de soslaio para a felicidade de que faz parte. O irmão que agora se gradua num lado do mundo, o outro que hoje conquista sonhos sobre rodas a milhas náuticas de distância, estão esquecidos deste dia, mas a alegria com que vibram é parente daquela que semearam junto a ela e se manteve viva durante 18 anos.

Ao contrário de David, vi e abracei a minha filha vezes sem conta. Não sei o que será pior ou melhor, que quem sabe das dores é quem as sente. A falta ou a presença escassa? O nunca ter visto ou o ir perdendo a memória do que se viu? Ter impressa na pele a marca da passagem do beijo, ou imaginá-lo suspenso no ar e agarrá-lo sempre sabendo-o ilusão? Alisar a roupa que se vestiu, ou ter as palmas das mãos livres para o tecido feito de éter? Lembrar do sapato que não se comprou, ou não ter dentro essas ínfimas lamentações que fazem da vida um purgatório?

As transformações que a chegada e a partida da minha filha permitiram não têm fim, sucedem-se através dos tempos e dos anos, e é um luxo, uma sorte, um enigma, uma passagem tê-la assim tão perto, sem tristeza nem lágrima, sem peso nem desassossego, permitindo-lhe a vida naquilo que não acaba. O tempo passa e alivia os fardos de todas as árvores que somos. Dos nossos ramos caem folhas ano a ano, e só a nossa procura de sol impede que percebamos que cada folha que nos cai nos devolve à terra imortal.

Imagem: a inspiração, David Mourão Ferreira