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20/04/2014

Re-nascer-se


Renasço hoje cedo vendo uma entrevista antiga do Laerte. Não andava à procura de nada em particular, um clique levou a outro e o último à tal entrevista. E gostei, gostei demais, e recomendo. A entrevista é do começo de 2012, pouco depois do célebre incidente do banheiro da pizzaria.

Laerte escolhe roupas de mulher para se vestir. Dizia aqui à minha filha menor que, a rigor, é mais ou menos como acontece com ela, que gosta de usar roupas de equitação. Cada um escolhe aquilo de que gosta, e eu me emociono (ela percebe) com esse presente de manhã de Páscoa de um homem que não desiste de si mesmo e nem de ser, a cada momento, aquilo que é. Veja: não é só abdicar de ser os que os outros gostariam que você fosse, mas abdicar de ser hoje o que se foi ontem, e saber que amanhã poderá existir-se de nova ou velha forma. Essa liberdade interna, que ele resume na frase "não quero me proibir de nada", é um renascer-se diário. Bom pra ver neste domingo de Páscoa. Laerte vive em coragem. Há um tipo de dor que faz a espinha dorsal dobrar-se sobre si mesma. E a meio da dor resistir. Essa é a coragem do processo e eu ouço-me em algumas das suas palavras. E sinto que, além de processo, a vida é sobretudo encontro.

Minha filha, aqui do lado, acha "esquisito". Gostaria de ajudá-la a construir-se mais despreconceituada. Mas o mundo às vezes pode mais, e por isso fico feliz de que esteja aqui junto a mim, enquanto assisto esse homem lúcido que distingue sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual, e distingue para saber o que escolhe e por que escolhe. Não que ela preste atenção em nada disso (nem precisa), mas eu presto, e, porque eu presto, ela percebe que há espaço para todos em todos. Mesmo não ouvindo, quando olha de soslaio para a tela, percebe essa calma na fala, essa calma no gesto da mão, essa calma  no olhar - e talvez no seu íntimo registre tudo isso como "calma na alma". A calma na alma de um homem que gosta de se vestir como uma mulher, e se veste, porque se sente no direito genuíno de ser e fazer aquilo que faz sentido para si. Quem sabe essa calma na alma tatuada na sua própria alma dilua os preconceitos que o mundo queira impor a minha filha, como esta impressão de "esquisito" que não é dela, mas do mundo. Este homem vestido de mulher é apenas um homem vestido de mulher, na busca do ser si mesmo, sentado diante de uma mesa e de uma câmera, em fevereiro de 2012. Oferece-me, de bandeja à distância de um ano, a dose de coragem, beleza e integridade que eu precisava neste acordar de Páscoa.



O link para a entrevista é https://www.youtube.com/watch?v=uxD1xXvQWYM
e a tirinha encontrei-a no blog que publica as tiras diárias, o Manual do Minotauro


26/07/2011

Ver (ou não) as caravelas


Contaram-me um destes dias que quando as primeiras caravelas chegaram à costa brasileira nem todos as perceberam na linha do horizonte; grande parte de quem já estava deste lado de cá percebeu apenas a nova e diferente ondulação das águas do grande Oceano. Daquele grupo que esperou, nas areias da praia, o primeiro desembarque, fariam parte aqueles que as descortinaram ao longe e por isso as foram receber, entre curiosos e temerosos. Ou não, que disso Caminha não nos dá notícia, e é a partir dele que recolho o longínquo acontecimento.

Aqueles que perceberam as velas e seus mastros não o fizeram por terem melhores olhos, mas maneiras particulares de verem “as formas invisíveis na distância imprecisa” – como escreve Pessoa que são os sonhos, aquilo que é sem ainda o ser. Aqueles que perceberam os ventos novos foram em sua direção, enquanto que os outros viram (apenas) no que conheciam um leve agitar-se. Mas, ao que consta, ninguém se incomodou com o que o outro via. E nem impediu que quem visse registrasse que o fazia, muito menos que disso falasse.

Os ventos acompanham-nos, vindos do mar que é o que nos separa e une – como todas as pessoas e coisas que não se limitam a apenas uma possibilidade, mas estão abertas a várias. “Bons ventos” trazem-nos alguém, “novos ventos” reacendem-nos o entusiasmo e a chama que nos mantém de pé. Vemos (e ouvimos e cheiramos e percebemos) o que é novo por um simples motivo: porque temos olhos e ouvidos e narinas e sentidos que nos permitem ver o que outros, às vezes, não veem nem ouvem nem cheiram nem percebem. Porque não podem.

A carta de Caminha é uma crônica de viagem que dá gosto ler – um precioso, aberto e humano relato do encontro dos navegadores com esses novos homens “pardos, todos nus”, que “traziam arcos com suas setas” e que assim que se “lhes fez sinal que pousassem os arcos, eles os pousaram”. Ao recebê-la, o rei de Portugal não teve dúvidas de que aquilo que lia era verdade – que aquelas pessoas e aqueles lugares, aquelas ervas e aquelas paisagens existiam e estavam agora a apenas umas letras de distância. A confiança regia a relação entre o rei e seu cronista. Ainda que lhe pedisse provas: uma pedra, um barrete de penas, outras evidências, todas elas a caminho, provavelmente junto com a própria carta de achamento.

Entre os que ouviram os relatos das grandes navegações, houve aqueles que viram (porque tinham sentidos para fazê-lo), e aqueles que se agarraram às certezas que tinham e não conseguiram ver, a não ser quando a evidência esteve ao alcance das suas mãos. Entre estes últimos, houve aqueles que encolheram os ombros e foram à sua vida, e aqueles que se levantaram indignados de que outros dissessem ver aquilo que eles não viam (ainda). Entre estes últimos, uns discutiram entre si acaloradamente durante um tempo, ocupando-se com novo assunto assim que ele chegou; outros, exigiram providências imediatas, espumando em segredo, saudosos dos bons tempos da abolida inquisição. Entre estes, uns sobreviveram, e vivem ainda entre nós. Outros, também - mas calam-se e esperam com sorrisos falsos pela melhor oportunidade de espalhar o seu medo do novo.

01/06/2011

A parte sem o todo

O que me fez pensar no livro foi o título: ”Por uma vida melhor”. Um título assim só diz algo a alguém que precise melhorar de vida. Crianças não costumam ter a sensação de “precisar melhorar de vida”, portanto depreendi que o destinatário fosse um adulto.

Foi sob essa perspectiva que li o primeiro capítulo, introdutório, de ponta a ponta, do tal livro aprovado pelo MEC, o gerador da acirrada celeuma de umas semanas atrás. Reconheci o que a realidade em volta mostra a quem olha para ela, assim como boa parte do que aprendi sobre os processos linguísticos ao longo dos anos. Coisas óbvias: que falar e escrever são atos diferentes; que a maneira como se fala ou escreve depende do destinatário; que toda linguagem é regida por regras, as quais formam as diversas gramáticas internas de uma mesma língua; que toda língua tem variantes, que variam de acordo com seus falantes; que a maneira de falar pode ser um poderoso instrumento de preconceito, inclusão ou exclusão social; que é preciso valorizar todas as formas de fala, entendendo-as como variantes e não como erros; e por aí vai. (Sírio Possenti, na matéria que escreveu a respeito da celeuma, diz que adjetivar de “errada” a fala de um grupo de pessoas seria como adjetivar de “errado” o bico de um tucano, baseado na proporcionalidade entre bico e corpo que rege a maioria dos pássaros.) No fundo, no fundo, só fala errado quem não consegue comunicar o que deseja comunicar, seja por que motivos for.

“Por um mundo melhor” é, de fato, dirigido a um público mais velho, alunos da Educação de Jovens e Adultos, formada por pessoas que já de cara se encontram na linha de exclusão social pela falta de estudo e precisam, muito, imensamente, ver-se diante de um espelho que os reproduza como pessoas capazes e falantes de uma variedade linguística válida, respeitável e correta. Não por bondade, mas porque de fato o é, sendo apenas preciso o respeito ao onde e ao quando, como com qualquer outra variante. Estaríamos todos aliás perdidos se fosse diferente, porque todos estes “portugueses” que falamos e escrevemos não descendem diretamente das palavras de Ovídio ou Virgílio, mas dos soldados no máximo semi-alfabetizados que povoaram a península ibérica com seu “latim vulgar”. Capítulo corretíssimo, o do tal livro, cumprindo ainda a função (bastante conservadora) de instar o leitor a converter todo exemplo da variante “popular” para a escrita normatizada pela gramática padrão da língua – aquela dos pássaros cujo corpo e bico são proporcionais.  

Eu sei bem o que é recortar de um processo comunicativo uma de suas partes - e um livro é um processo comunicativo, assim como uma carta, um artigo, um bilhete, um romance, um poema, ainda que em graus funcionais diversos. Guardo emails de memória porque isso faz bem ao meu coração, ainda que eu inteira saiba que é um trecho, um recorte, uma parte que, a despeito das considerações barrocas de Gregório de Matos sobre o assunto, não corresponde ao todo. Mas isso não me incomoda, muito menos ao resto do mundo que sequer toma conhecimento do que guardo em mim e para mim.

Também sei de perto o que acontece com processos de comunicação interrompidos, truncados ou incompletos, aleijados pelo mesmo defeito da discussão livro-do-MEC: lê-se apenas uma vez, lê-se apenas uma parte, não se entende metade, não se pesquisa (porque não se pergunta), não se estabelece nenhum processo que pretenda entender quem escreve, e parte-se a galope para o julgamento do que se leu – e leu dessa forma alijada de compreensão.  Como diria meu pai: cru e quente. Quando ainda por cima o uso é ideológico (“livro ensina a falar errado como Lula”), eu chamaria as autoridades, nem que fosse por crime linguístico.

O assunto reacendeu-se aqui na minha escrita porque fui chamada a compartilhar o meu processo de criação enquanto escritora num congresso. De zilhões de pessoas bem mais qualificadas do que eu para isso (e não é falsa modéstia, mas a percepção clara da pouca experiência misturada a um certo pudor de descobrir diante dos outros o que até ontem entendia só meu), atrevi-me a aceitar a oferta e pus-me a trabalhar. De uma e outra forma, preciso perceber o que me provoca a sensação de criação, o que me faz de fato criar e o que se antepõe entre mim e o universo da criação. Não é fácil, porque afinal é o meu processo de humanização particular, deparo-me com situações internas que sei precisar resolver... Mas no processo descobri alguns “por ondes” que desconhecia e com os quais consigo relacionar-me saindo da sombra.

Hoje de manhã, o exercício foi partir da função da língua na minha vida. Ressuscitei Antonio Cândido da prateleira dos teóricos, naquele texto sublime em que ele diz que a arte é o que humaniza o ser humano. A linguagem sobrepõe-se em todos os meus mundos - pessoal, profissional, afetivo, social. Mais do que qualquer outra, a escrita é a minha maneira de relação com o outro, meu canal fluídico privilegiado no caminho que me conduz para fora de mim e em direção aos mundos alheios. É-me difícil ler alguma coisa sem olhar de todos os lados, é quase que automático – o que me preocupa, porque os processos automáticos se afastam muito rápido da arte. E é-me difícil o caráter fundamentalmente solitário da escrita. Mas assim que uma nota em forma de palavra me toca, me eleva, estou de volta ao domínio de onde não quero mais sair - o domínio da arte, talvez aquele de onde Drummond saía quando se ausentava do reino das palavras e voltava escrevendo. A palavra é o ser humano em que quero me tornar.

Como a palavra habita todos os instantes da minha vida, e assim faço para que seja, oferece-me bastante trabalho, e a todo instante estou (ou poderia estar) em atividade. Tento, nos últimos tempos, que todos esses momentos sejam intensos no sentido da potência estética que a palavra em mim quer alcançar e, também ultimamente, isso converte-se em dor e em desamparo, uma quase tortura por não saber sempre qual o caminho, e errar por estradas pouco ensolaradas, perder-me no labirinto de uma paisagem sem horizonte até encontrar a saída e perceber-me do outro lado de uma moeda que não tem lados (como se um Alberto Caeiro a correr as cortinas da sua janela, dizendo-se entre parênteses que no entanto ela não tem cortinas). A proteção do mundo dentro de uma redoma de ar.

Talvez o que mais me entusiasme seja perceber a capacidade criadora da palavra em todos, latente, como se a mais democrática de todas as formas. Chegamos ao outro através da linguagem, é nossa enquanto grupo e nossa enquanto indivíduos – e talvez por isso me doa nos ouvidos e nas entranhas dizer que alguém fale “errado”. O que seria dos Patativas do Assaré (e do mundo) se lhes dissessem (e eles acreditassem e se conformassem) que falam e escrevem  errado? Que seu bico avantajado e multicolorido não cabe no universo dos céus, porque desequilibra os corpos alheios, e por isso não podem voar nem chalrar à vontade?

03/03/2011

Semiótica no dia a dia


Alguns anos atrás, tive a oportunidade de participar de várias disciplinas graças ao então doutorado em curso. Uma delas, com o prof. Izidoro Blikstein, foi-me especialmente proveitosa. O tema era a propaganda fascista, e o ponto de observação valia-se das teorias semióticas – aquelas que estudam as maneiras como o homem confere significado àquilo que o rodeia.

Temas caros a Blikstein pulavam em todas as aulas – estereótipo, preconceito, manipulação e muitos outros conceitos foram discutidos à exaustão, contrapostos, conferidos. Maioria esmagadora de alunos judeus, criavam-se discussões acaloradas, apresentavam-se argutas leituras dos pequenos sketches de propaganda nazi, assistiam-se filmes memoráveis - por exemplo, “O julgamento de Nuremberg”, versão a preto e branco com Spencer Tracy e elenco de peso, incluindo Marlene Dietrich.

Desse curso, incorporei à minha bagagem (repertório, na linguagem de Blikstein) um olhar interessado em encontrar nas mensagens à minha volta aquilo que dizem sem parecer dizer – o campo da semiótica ganhou um espaço em mim que eu desconhecia. Interessou-me particularmente o mecanismo que nos faz ser engolidos por informações que nos distorcem a visão, embaçando, delimitando, transvestindo a realidade com as cores que convêm ao emissor. Nós, os receptores, se não estamos atentos, somos abalroados e às vezes não nos recuperamos. Como não há como ter controle sobre o emissor (a não ser que sejamos nós mesmos, é claro), melhor será que se desenvolvam capacidades receptoras, a postos para nos auxiliarem a clarear aquilo que vemos. Com tempo e prática, essas capacidades (espera-se) poderiam tornar-se quase automáticas.

A web acumula uma quantidade imensa de informação, nem sempre verídica, nem sempre nas suas reais proporções. Facilmente se deturpam e propagam falsidades, e facilmente se lhes dá cunho verossímil e respeitável. A democratização da informação que proporciona demanda, por outro lado e a passos largos, o desenvolvimento daquelas capacidades receptoras e de uma forma de estado vigilante, que nos impeça de propagar involuntariamente inverdades, tendências, preconceitos.

A petição que circula na internet sobre um suposto filme, com estreia breve na América do Norte, que mostraria Jesus mantendo relações homossexuais com seus discípulos, serve de exemplo acabado. Pede o email que se assine a petição contra “Corpus Christi”, dizendo que “a omissão é uma forma de aplaudir as aberrações” e que “a paródia repugnante de Jesus” precisa ser contida, através de muitos nomes que impeçam a exibição do filme.

Com um pouco de pesquisa (por desconfiar dos termos da petição), descobre-se que nem esse filme existe, nem existiu nem anda em projeto. Existe uma peça (do mesmo autor dos livretos das peças “Ragtime” e “O beijo da mulher aranha”), e um documentário sobre ela – porém, embora tenha causado certa celeuma, apresenta um personagem de nome Joshua que seria uma “atualização” de Jesus – nasce num bairro degradado de uma cidade do Texas, onde convive com mulheres que apanham do marido, sexo pago e outros.

Essa petição circula há décadas pela web – em 1985, primeira ocorrência de que encontrei registro, acumulou um milhão de assinaturas, só nos Estados Unidos. Gerou protestos do movimento gay, assim como de entidades de defesa da liberdade de expressão. E, a cada cinco ou seis anos, reaparece.

O que me fez procurar informações foram justamente as palavras “aberração” e “repugnante” – sinais de que, no contexto, algo subjaz àquilo que o texto diz dizer. Uma leitura mais atenta alerta para a conexão imediata que se faz entre essas duas palavras e as relações homossexuais (supostamente) mantidas por Jesus com seus discípulos. São as relações homossexuais que se pretendem aberração repugnante.

Nenhum de nós está a salvo do engano, como é óbvio; dependemos do nosso repertório, o que inclui nossas experiências de vida, a religião que professamos (ou não), os livros que lemos e os filmes que vemos, as conversas que temos, as viagens que fazemos e, em muito larga escala, as escolas que frequentamos – escolas que com urgência precisam voltar-se para a construção da observação atenta, do discernimento autônomo e da capacidade de nos fortalecermos solidariamente no encontro com o outro.