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26/03/2013

Domingo de Ramos (às minhas tias)


Apesar de poder ter vários motivos para ter ido à missa neste domingo de Ramos, apenas um me fez por as pernas em movimento. Poderia ter ido porque, de fato, acho que este é o mais bonito domingo do ano. E isso talvez se deva (mas não é verdade) à cena de Jesus entrando em Jerusalém ao som de Hossana-hei-sana-sana-sana-ho de um Jesus Christ Superstar que vi até os olhos me doerem. Ou talvez se deva (embora também não seja verdade) ao trecho do evangelho de Lucas, em que Jesus sabe o que se vai passar daí a horas com os discípulos, e eu inquieta “mas eles não perceberam o que aconteceu?!” porque Lucas não diz nada do que os discípulos sentiram. Aliás, Lucas conta o que se vê, não o que se sente. (É aquele mesmo trecho em que Lucas diz que Jesus diz, com uma atualidade que nos acompanha desde sempre, que “se eles se calarem, as pedras gritarão”.)

Mas não. Mesmo sendo este o mais bonito domingo do ano, não é por isso que vou à missa de Ramos, e que me lembro de levar um galho de folha de palmeira, e que entro calada e um tanto alheia dentro da igreja, e que se me enchem os olhos de lágrimas quando a procissão entra sacudindo as folhas e a igreja retumba com o padre (que canta bem) e se enche de verde, seja ou não a cor da esperança.

Estou aqui porque lá, longe, do outro lado do mar, sei que as minhas tias estão também em alguma missa de domingo de Ramos. Pressinto-lhes o passo nos adros de todas as igrejas em que estiverem, e quero que saibam que estou num adro semelhante. Assim que fecham os olhos, que também se lhes enchem de lágrimas, quero que saibam que também os meus transbordam. E não porque os padres cantem bem, ou a imensidão verde dos campos do Senhor invada as naves de todas as igrejas em que estamos. Não por isso.

Estou aqui porque preciso fazer algo que me diga, e concretize, e garanta, e torne nítido como uma manhã açoriana, que o tempo e o espaço são nossas criações, e nada mais. Que não nos vamos, porque sequer chegamos. Que o lá, e o aqui, e o do outro lado são as mesmas coisas, vestidas de tules diferentes.

E por isso, porque são criações e não realidades, com os olhos fechados neste domingo de Ramos, vejo a mais nova das minhas tias. Vejo-a no seu riso rouco. Vejo-a nos seus dedos que como os meus têm as unhas roídas. Vejo-a na sua recitação acelerada do Pai Nosso nas missas de domingo. Vejo-a deitada ao meu lado, ambas cativas de hepatites gêmeas. Vejo-a hábil à máquina de costura. Vejo-a modelando flores de papel para uma festa na garagem nas Caldas. Vejo-a gargalhando. Vejo-a por entre as nuvens de fumo dos seus cigarros. E vejo-a quando uma voz tão conhecida diz “Ó Manela, então já cá chegaste?!” e eu viro-me e são ela e meu pai, que me acenam do outro lado do tempo e do espaço, e me dizem “até logo” e se afastam, porque a minha avó os chamou também de outro lado, e eu fecho os olhos porque as saudades impedem-me de querer ver o resto.

E volto à missa, e ao domingo de Ramos: esse domingo tão lindo, acho, porque nos diz que tudo o que será já é, e nós sabemos. Só fazemos de conta, às vezes, que não.


20/10/2011

Dia de co-memorar

Sabe um daqueles dias em que dá vontade de, como todos os grandes poetas deste nosso ocidente, de Homero a Milton, de Camões a Shakespeare, invocar a grande musa e por-se a trabalhar? Depositar nos seus invisíveis braços a carga que não sustentamos, eliminarmos toda preocupação com processo, resultado, sentido - e simplesmente pormo-nos a trabalhar?

Pois hoje é um desses dias. Porque nada me sai a contento. De nada consigo ou arrepender-me ou congratular-me, e esse é o estado de indefinição que, muito possivelmente, mais me inquiete, de uma forma que não domino e sequer desejo. Ouço ranger e estalar, como se casco de navio enferrujado, cada uma das minhas vértebras e costelas: desacomodam-se para dar passagem a um espaço de alma que estava ali, recolhido, ensimesmado, contente de caber no canto que lhe parecia reservado. Até descobrir que não. Que é mais. Que não se contenta com esses mililitros cedidos. Por mais que se alongue, torça, estique, corra: nada.

Por isso o lembrar-me das musas: para ver se encontro alívio. Antes delas, evoco Mnemosyne – aquela que vem em socorro para que eu não me esqueça, a deusa da memória por excelência. Porque a tendência a esquecer está impiedosamente ligada ao limite do que somos. Ao esquecer, perdemos humanidade, subtraímo-nos daquilo que viveu em nós e não lhe damos crédito. E o passado cola-se às nossas costas, agarrado às asas que não conseguimos despregar.  Mnemosyne, uma das Titânides, nasceu da união entre Urano e Gaia; com Zeus, teve as nove musas – todas elas filhas assim da memória.  A cada invocação a qualquer uma delas, de Calíope a Érato, de Euterpe a Tália, o que pedimos é a graça de sermos capazes de lembrar, de forma atenta, de tudo aquilo que vale a pena, antes de que tudo deixe de valer a pena.

Co-memorar faz com que nos lembremos juntos de que é preciso lembrar. Re-cordar, nesse sentido que essa palavra poderia ter, e fazer com que novas cordas se estabeleçam entre o que já foi e o que agora é. Partícipes de um passado feito império e que apenas o esquecimento poderá destruir, é urgente que saibamos da finitude do tempo, mais do que da sua relatividade, e que invoquemos Mnemosyne, comemorando esse passado que reúne os feixes de uma mesma trança.

02/10/2011

Óculos sinceros

Perguntam-me se sou sincera quando escrevo. Sorrio (e lembro-me do mestre Pessoa, certo de que o único a sentir verdadeiramente era o seu próprio mestre, Caeiro. Depois dele, ninguém há que saiba o que verdadeiramente sente.) Mas não me perguntam se sinto, e sim se sou sincera ao escrever (ainda que, convenhamos, sejam as duas perguntas a mesma coisa). Ouço, lá ao fundo da minha memória, um dos meus professores de latim, talvez do 8º ano. Exortava-nos a sermos vasos de barro perfeitos e finos – vasos sem rachaduras que a cera tentasse ocultar: vasos sine cera. Vasos sinceros. Ao longo dos anos, descobri que a explicação nada tem de muito certo, mas ainda assim gostei e mantive-a na memória.

Sinceridade tem a ver com pureza – com ser franco, leal, simples, verdadeiro, que não oculta ou usa disfarces, malícias, dissimulações. Aquele que é sincero nada teme - caminha de peito aberto, de sorriso iluminado, de alma constituída por partículas que brilham no encontro com o outro. Olha-se para dentro dele como se olha através das paredes de um vaso sem rachaduras nem embustes. É o que é.

Passei anos com uma vontade imensa de usar óculos. Lá pelo 3º ou 4º ano, decidi que uns antigos óculos, herança das caixas do sótão da minha avó, haveriam de ser-me muito necessários, e passei semanas usando-os (sem lentes), muito aliviada por finalmente poder escrever com mais propriedade, como se deve, como os escritores de verdade: de óculos. Enquanto isso, toda a minha família, novos e velhos, usava óculos; a miopia foi daqueles acidentes genéticos aos quais fui poupada, sem entender porque esse e não outro.

Escuros, tive vários. A cada um, a felicidade de olhar para eles e o desconforto de olhar através deles - ter a certeza de que meu interlocutor não me via através dos meus olhos, como é que se mantém uma conversa com alguém no escuro de umas lentes postas?!

Finalmente, passada a barreira dos 45 anos, uso óculos. Tenho a vista e outras coisas cansadas. Lembro-me de todas as armações que vi em tantas e tantas feiras de velharias por todos os lugares por onde passei. Sem atentar para o fato de que o tempo inevitavelmente agiria a meu favor, deixei-me levar pelos encolheres de ombros dos outros, acrescidos às vezes de impaciência, e não comprei qualquer armação que fosse – para que, se não as vais usar?

Não deveria ter-lhes dado ouvidos – hoje, não encontro nada que me agrade. Posso encomendá-los do outro lado do oceano, feliz da vida pela pechincha dos mercados livres que abrem as suas portas pela janela da internet, posso imaginar que sim, estes sim!, comprá-los e... em pouco tempo perdê-los.

Mas hoje a caixa de correio reservava-me uma surpresa. Há meses avisada, já tinha desistido dos óculos que meu filho me prometera, aflito com a minha fixação por armações estilo Oscar Wilde, prevenindo que eu as encontrasse e, pior, lhas mandasse arrematar em qualquer feira londrina. Abro a caixinha e, junto com as inevitáveis contas para pagar, que é só o que eu vou buscar ao correio, um pacotinho amassado, bendito plástico bolha a permitir que as coisas viajem aos trambolhões.

Reconheço a letra do remetente, abro-o exultante e paro pra olhar os pares de óculos que ele me manda. Sim, pares: um para ler, outro para andar de carro ao sol – ouviu-me certamente reclamar do efeito dos raios no asfalto.

São óculos diferentes do que eu esperava, confesso. Olho-os por um bom tempo, e, de repente, reconheço-os sem nunca os ter visto antes. Chegam-me de um tempo distante, um dos que guardei em algum lugar, um pedaço de vida que sem querer deixei para trás.

Muitas coisas se engrandeceram em mim, desde esses óculos até hoje; outras se amesquinharam; outras desapareceram, engolidas pelo passar dos anos, outras se transformaram em detalhes incômodos que preciso varrer para fora da minha alma. (Uma amiga me diz que a história que lhe conto a faz imaginar-me num caminhão fechado na próxima mudança que planejo – e não no caminhão aberto em que cheguei da última parada em que estava.  O caminho aberto pelos meus pés parece, com estes óculos, ter se espremido através dos espinhos. Algumas rosas. Muita secura. Uma paisagem lunar. Coisas como essa é urgente que reinvente.)

Este meu filho lembra-se do que eu sou quando era antes; retoma-me nas suas mãos, as mesmas que deixaram suas impressões na haste desses óculos, e conta-me do que eu também me constituo e às vezes esqueço.  Lembra-me sobretudo que eu sou muitas coisas ao mesmo tempo, e sem as ser a todas elas deixo de ser quem sou. Pode ser uma labuta, para mim e para os outros, mas doutra forma não sou – e mesmo sendo talvez menos cansativo, é mais triste, e é, sobretudo, menos sincero.

05/09/2011

Entre o sarcasmo e a vida


Tenho vários exemplos, na minha grande família que vive do outro lado do Atlântico, das virtudes do saber enciclopédico. Curiosidades da cultura geral foram um prato cheio, anos a fio, diante da lareira da casa na Estrada de Tornada, quando esta ainda era uma estrada e não a rua em que se transformou, quase (inacreditável) no centro das Caldas da Rainha. Os quilômetros que eu andava para chegar à Tália (única livraria de então, onde se compravam os livros de Enid Blyton e o Diário de Notícias) parece que se reduziram a alguns metros. A casa de meus avós resiste incólume, ainda que tenham se silenciado os serões.

Está tudo isso tão longe, no tempo e no espaço. Como se algo em mim tivesse vivido outra vida em pleno século XIX.

Dentro desse saber enciclopédico, saber o que dizem as palavras revestia-se de particular importância. Discutia-se muito; meu avô divagava sobre o sabor diferente do português camoniano, as cartas do king pulavam da mesa para as teclas do piano de minha tia, e eu treinava o prestar atenção a várias coisas ao mesmo tempo. Quando estavam todos, avós, tios, tias, primos e adjacências, formava-se mais uma mesa – a discussão política entrava em campo, comentavam-se as últimas de Lisboa, às vezes em voz baixa para não ferir suscetibilidades atentas nas outras mesas. De quando em quando as palavras mereciam um tempo de silêncio – ouvia-se uma baforada de cachimbo aqui, uma cigarrada acolá, mais uma bagaceira no copo que ainda é cedo e um whisky on the rocks para os fortes.

Entre tudo isso, uma prima lia cartas que recebia de um lugar chamado Taizé. Parecia outro mundo, a Maria Alice, embrenhada naqueles papéis que vinham de França. Ensinou-me alguns cânticos, que às vezes congregavam essa família que me aqueceu a infância, unida em volta do piano de minha tia, horas a cantar que não se contavam pelos tempos do relógio. Um fio que guardo cheio de boas lembranças feito pérolas.

Maria Alice vivia dentro de uma atmosfera monástica, embora (salvo erro) fosse funcionária pública em Lisboa. Sobrinha de meu avô, herdou o nome da mãe, mas não seus olhos cor de cinza. Eram “as Alices”, que chegavam sempre juntas, às vezes vítimas daquela espécie de maldade familiar que atinge os melhores, ou os incompreendidos.

Essa maldade foi-me apresentada, pela Maria Alice, como “sarcasmo”. Não sei quantos anos eu tinha, porque é daquelas memórias linguísticas mais antigas. Disse-me que sarcasmo é uma doença, e das mais graves, que é contagiosa e dificilmente tem cura. Quando se adquire, a cura demora, e depende muito mais da força de cada um do que dos remédios dos outros. Anos passados, descobri que ela tinha toda, toda a razão.

Sarcasmo é uma palavra de origem grega, como tantas que nos foram legadas pelos helenos. Deriva de sarx – carne - e criou um verbo. Porque, embora no princípio fosse o verbo, quem primeiro chegou foi o nome. E os nomes, quando transformados em verbos, mudam-se, embrenham-se, infiltram-se e passam a ser dentro de nós coisas que não eram quando em estado de palavra pura, de dicionário drummondiano. Sarx, a carne, criou sarkásein, o arrancar carne. Carne que se arranca através da palavra deve provavelmente ser a mais dolorida, por arrancar-nos da alma a nossa identidade humana, a carne que nos constitui, o ser carnal solidário e fraterno, que antes se agrega do que se arranca de seu semelhante.

Maria Alice apresentou-me a coisas mais importantes - a comunidade Taizé, para onde me voltei durante alguns anos. Taizé apresentou-me a Tereza de Ávila, um antídoto potente ao sarcasmo do mundo, transformado numa oração simples  que por sua vez se transformou em cântico na comunidade francesa. Minha irmã, na curta visita que nos fez nesta semana, e sem saber de nada disso, ressuscitou-me desses tempos antigos, em que a família se reunia e cantava esse mesmo cântico que ela escondeu hoje pela manhã dentro da minha mão, com um sorriso nos seus olhos serenos, onde o sarcasmo nunca encontra morada.

nada te turbe
nada te espante
todo se pasa
Dios no se muda
la paciencia
todo lo alcanza
quien a Dios tiene
nada le falta
solo Dios basta

O cântico, com melodia:

23/08/2011

Fome



Contava eu hoje pela manhã a um grupo de jovens que a desgraça alheia ajuda-me desde pequena a lidar com a própria – sempre e por todo lado menor. Às vezes (agora, por exemplo, em que escrevo) chega a parecer-me quase um utilitarismo: pensar no infortúnio dos outros para consolar-me do meu. Mas não é consolo. É dimensão.

Dimensão do abismo insuportável que me separa da dor do outro, que eu quero sentir para poder aplacar, mas não sinto, e não aplaco. Insuperável , insondável, intransponível, inalcançável. Qualquer dessas palavras serve-me para o mesmo: para a dimensão desse abismo entre o que eu quero e o que eu posso, que em tudo se assemelha ao que todos queremos e de fato podemos. Meu grão de areia insuportável e intransponivelmente irrelevante. Naquilo que posso, a minúscula contribuição ao (quando muito) resgate de alguma parcela da dignidade alheia, essa que falta e escasseia - subtraída, escondida, roubada. Haveria de inventar palavras que falassem dela.

Por isso, a importância de nestes nossos dias ouvir a poesia e o canto somali, as narrativas etíopes que se perdem nos confins dos tempos em que viviam a rainha de Sabá e o rei Salomão. Aos meus olhos e ouvidos, resgatam do seu anonimato esses rostos desfigurados pela fome e pela desventura; tornam-se o semblante humano da arte, aquilo que os faz, de forma altiva e silenciosa, meus mais desgraçados irmãos – irmãos que sorriem e dão graças a deus porque de seus nove filhos dois chegaram vivos ao campo de refugiados para onde caminharam durante semanas; irmãos que dão graças a deus porque nesse dia têm uma xícara de arroz para compartilhar entre oito; irmãos que não choram mais porque as lágrimas secaram nas areias dos desertos que habitam; porque nesse dia o carregamento de água trará a ilusão de que a sede acabará; e porque amanhã a mesma coisa, até não caber no corpo nem sequer uma ilusão.

Repito a cada noite os nomes etíopes e somalis que conheço: Asad, Meseret, Mihret, Oumed, Amina, Erasto, Ayanna, Selassie, Dalmar, Nadif. Muitos podem chamar-se dessa forma, e a todos quero incluir na minha noite em que não existem nem sede, nem fome, nem quilômetros de sol à frente de meus passos nus, nem crianças mortas a cada lado da estrada, nem uma continuidade inacabável de sofrimento às minhas costas.

Repito-os para que tomem forma e me lembrem em sonhos da imensidão que é a raça humana, e a sua capacidade de sobrevivência em face do desespero alheio. A cada morte de cada um a minha existência perde algo da sua humanidade, e eu preciso da arte, desesperadamente, para lembrar-me de que o seu sofrimento é o meu também, e de que enquanto eles, tão longe de mim no tempo e no espaço, não deixarem a um lado a fome e a sede, cada meu prato de comida pesa-me uma tonelada, e jamais saciará a fome que sinto em seu nome, e da qual me lembrarei a cada noite ao dormir, a cada manhã ao levantar. Como um fardo que ponho às minhas costas porque quero e porque assim, bem mais egoísta do que gostaria de ser, posso dormir.

26/07/2011

Ver (ou não) as caravelas


Contaram-me um destes dias que quando as primeiras caravelas chegaram à costa brasileira nem todos as perceberam na linha do horizonte; grande parte de quem já estava deste lado de cá percebeu apenas a nova e diferente ondulação das águas do grande Oceano. Daquele grupo que esperou, nas areias da praia, o primeiro desembarque, fariam parte aqueles que as descortinaram ao longe e por isso as foram receber, entre curiosos e temerosos. Ou não, que disso Caminha não nos dá notícia, e é a partir dele que recolho o longínquo acontecimento.

Aqueles que perceberam as velas e seus mastros não o fizeram por terem melhores olhos, mas maneiras particulares de verem “as formas invisíveis na distância imprecisa” – como escreve Pessoa que são os sonhos, aquilo que é sem ainda o ser. Aqueles que perceberam os ventos novos foram em sua direção, enquanto que os outros viram (apenas) no que conheciam um leve agitar-se. Mas, ao que consta, ninguém se incomodou com o que o outro via. E nem impediu que quem visse registrasse que o fazia, muito menos que disso falasse.

Os ventos acompanham-nos, vindos do mar que é o que nos separa e une – como todas as pessoas e coisas que não se limitam a apenas uma possibilidade, mas estão abertas a várias. “Bons ventos” trazem-nos alguém, “novos ventos” reacendem-nos o entusiasmo e a chama que nos mantém de pé. Vemos (e ouvimos e cheiramos e percebemos) o que é novo por um simples motivo: porque temos olhos e ouvidos e narinas e sentidos que nos permitem ver o que outros, às vezes, não veem nem ouvem nem cheiram nem percebem. Porque não podem.

A carta de Caminha é uma crônica de viagem que dá gosto ler – um precioso, aberto e humano relato do encontro dos navegadores com esses novos homens “pardos, todos nus”, que “traziam arcos com suas setas” e que assim que se “lhes fez sinal que pousassem os arcos, eles os pousaram”. Ao recebê-la, o rei de Portugal não teve dúvidas de que aquilo que lia era verdade – que aquelas pessoas e aqueles lugares, aquelas ervas e aquelas paisagens existiam e estavam agora a apenas umas letras de distância. A confiança regia a relação entre o rei e seu cronista. Ainda que lhe pedisse provas: uma pedra, um barrete de penas, outras evidências, todas elas a caminho, provavelmente junto com a própria carta de achamento.

Entre os que ouviram os relatos das grandes navegações, houve aqueles que viram (porque tinham sentidos para fazê-lo), e aqueles que se agarraram às certezas que tinham e não conseguiram ver, a não ser quando a evidência esteve ao alcance das suas mãos. Entre estes últimos, houve aqueles que encolheram os ombros e foram à sua vida, e aqueles que se levantaram indignados de que outros dissessem ver aquilo que eles não viam (ainda). Entre estes últimos, uns discutiram entre si acaloradamente durante um tempo, ocupando-se com novo assunto assim que ele chegou; outros, exigiram providências imediatas, espumando em segredo, saudosos dos bons tempos da abolida inquisição. Entre estes, uns sobreviveram, e vivem ainda entre nós. Outros, também - mas calam-se e esperam com sorrisos falsos pela melhor oportunidade de espalhar o seu medo do novo.

29/06/2011

Umuntu ngumuntu ngabantu

Tenho tido muito assunto para escrever, muita vontade de o fazer, e quase nada de capacidade. Demoro a digerir o que acontece, perco-me à procura do elo de ligação entre o que insiste em parecer irreconciliável. A dor alheia soma-se à própria, transcende-a num grau inimaginável, mas é como se todas fossem a mesma, e por isso nada encolhe, nada diminui, nada assume uma potência compatível com a vida de todos os dias. Passam-se as horas e o incômodo fica ali, à espera, um alicerce feito espinho.

A visita a Robben Island tem sido um desses assuntos sem canal de saída. Cada tentativa de transformá-lo em palavras, só papel em branco e olhos cheios d’água. E, enquanto não escrevo, a alma pesa-me toneladas, não consigo bater as asas. Em silêncio e em solidão - porque cada vez mais a minha escrita se faz dessa forma, que preciso aprender a reconhecer como minha - é muito aos poucos que consigo tornar matéria cada forma que sinto.




Robben Island foi, durante anos, um leprosário. Afastada do continente milhas apreciáveis, oferecia as condições ideais para o confinamento da doença que não se entendia. Coisas que não se entendem, e se temem, vivem melhor se longe, fora de contato. Os restos de um cemitério testemunham mais de 15000 mortes de uma só vez. Ao ser fechado, graças à descoberta da cura para a hanseníase, teve seus edifícios demolidos e enterrados, ainda sob o regime do medo ao contágio acidental.

O segundo destino da ilha cheia de focas (daí o nome Robbe, foca em holandês do século XVII) foi o de prisão comum – a mesma distância, as mesmas vantagens. O primeiro preso foi um líder do povo Khoi, de nome Autshumato, preso em 1658 por ter conseguido reaver seu gado, tomado pelos europeus. Foi um dos raríssimos capazes de fugir da ilha, a nado pelas milhas repletas de correntezas contraditórias e congelantes.

Assim que o regime do apartheid se apercebeu da necessidade de isolar seus opositores, Robben Island foi mais uma vez a escolha perfeita. Mandela foi seu prisioneiro mais famoso – número 488 a entrar em 1964 – mas há outros: Sobukwe, Sisulu, gritos no escuro que nunca ouvimos, porque a história que aprendemos não os conhece. A sonoridade da palavra africana sobe artérias acima carregada de oxigênio, em direção ao meu coração pesado.

Tinha todas as informações necessárias sobre a ilha-prisão. Filmes, livros, documentários e o meu interesse pessoal pela figura de Mandela fizeram-me reconhecer os lugares, as situações. A cela, o pátio, o barco – tudo é reconhecível. Poderia pensar que, por isso mesmo, o impacto fosse menor, mesmo considerando que ao vivo as coisas sempre diferem das que apreendemos à distância.


Mas nada me preparara para o encontro com Yolande e com M’tumela.

Yolande foi a nossa guia no ônibus que rodeou a ilha – as várias casas onde moram hoje os funcionários do museu Robben Island, e onde moraram os guardas e todos os funcionários da prisão; o grande buraco em que Mandela trabalhou durante todos os anos da sua estada aqui, uma imensa cratera branca a refulgir  dolorosamente ao sol; os resquícios da II Guerra em forma de postos de observação e um canhão que jamais foi disparado; as focas; os pinguins. Entre uma coisa e outra, os silêncios de Yolande, marcados e profundos. Sucumbi-lhes e quase não consigo ouvi-la ao nos mostrar a casa em que Sobukwe, primeiro líder do Congresso Nacional Africano, ficou confinado, a seu lado os canis dos muitos cães que guardavam a ilha. Cada canil é maior que as pequenas celas dos presos políticos.

 O que mais ouço é seu silêncio ao mostrar-nos a pequena caverna ao fundo da cratera de calcário, onde cada um que sabia ler ensinou um que não sabia. Uma nação moldada na areia do chão, sobre a base da solidariedade, do amor ao próximo e do estar pronto a morrer por ela.  Nem me ocorre fotografar-lhe seu belo, expressivo e sereno rosto. Prefiro guardá-la na lembrança. A palavra com que a defino é uma das preferidas do meu avô: altaneira.


M’tumbela esperava-nos à entrada do prédio principal da prisão. Os cicerones de Robben Island são seus ex-prisioneiros; têm a dor tatuada por baixo da pele, e percebe-se, a cada explicação, a expurgação dos maus tratos e das injustiças de anos. M’tumbela ficou preso 8 anos; guerrilheiro, sua função era trazer os revoltosos da fronteira com o Zimbabwe até os locais onde as armas estavam guardadas. Foi preso numa dessas operações. Alguns meses depois de aqui estar, foi destacado para a cozinha. Levou o jantar a Mandela durante anos, sem nunca trocar uma palavra.

M’tumbela fala muito, depressa e com um forte sotaque Xhosa. Faltam-lhe alguns dentes, os olhos foram vítimas de muitas surras e por isso não se concatenam muito bem. Mas tem uma clareza imensa sobre a história do seu país e seu próprio papel, passado e futuro, na sua reconstrução.

Mostra-nos a cela coletiva onde viveu, e a diferente dieta a que estavam submetidos os presos tipo B (“bantu”) e os prisioneiros tipo C (“coloured-asiatic”): a uns, uma fatia de pão; a outros, duas fatias, manteiga e geléia; a uns, uma tigela de sopa; a outros, duas. Até mesmo aqui, ou justamente aqui, as premissas do apartheid vigoravam com força, separando e segregando. Também as roupas diferiam – short e camisa para os presos B, calça comprida, camisa e sapatos para os presos C.

As tentativas de separação foram vencidas com persistência e educação – um povo educado é um povo soberano, dono de seu próprio destino, e o estudo era atividade prioritária, precisando driblar a vigilância e se contentar com o que escapava aos censores.

Aos líderes estava reservada uma seção com mais de 20 celas individuais, cada uma da largura dos meus braços abertos. 18 anos da vida de Mandela passados aqui. Sem comunicação, confinado a uma solitária por qualquer erro: falar no corredor com outro preso, sentar quando deveria levantar, levantar quando deveria sentar. A solitária sem luz e apenas um copo de água por dia. 


M’tumela quer mostrar-nos a cozinha. Conta com detalhes todas as tarefas que realizava, e parece revivê-las e mais uma vez e sempre livrar-se delas, pelo poder da palavra que enumera e reconta. M’tumela orgulha-se do seu país, da luta que é a sua, de cada grão de sofrimento pisado. Não consigo perguntar-lhe mais nada – metade de mim enche-se de lágrimas assim que imagino abrir a boca, a outra metade emudeceu.

Voltamos para o barco a pé, e devagar, arrastando os pés porque ainda há tanto a entender. O percurso da África do Sul, conturbado e incompleto, pulsa em todas as esquinas; os poucos anos que nos separam da barbárie estão vivos nas lajes do chão, nas paredes de pedra, no andar das pessoas, nos sorrisos abertos, nas mãos estendidas, no interesse pelo outro. Ubuntu reina e ressoa: eu sou quem eu sou por causa do que todos somos. 


Umuntu ngumuntu ngabantu







Uma pessoa é uma pessoa através das outras pessoas - provérbio Zulu

30/03/2011

Vidros lavados

Começou com a súbita vontade que me atingiu hoje, de forma extemporânea e urgente, de limpar todas as janelas de casa. Há meses que isso não acontece – nem eu tenho essa gana sintomática, nem as mesmas são limpas. O motivo é simples, ou pelo menos a desculpa: as crianças ganharam de presente canetas de escrever em vidro, e estão todas as janelas decoradas (estavam, a bem da verdade, porque agora eu já passei por elas) com flores, fadas, borboletas, gnomos, estrelas e árvores com balanços.

Mas isso já tinha semanas e mais semanas, e o que sobrava de espaço estava tomado por teias de aranha e seus eloquentes resquícios, dedadas, marcas de bolas que se desviaram do rumo pretendido. Por isso, dispus-me a tornar todas as superfícies transparentes, desejando muito ser como a minha avó, que criava vidros imperceptíveis aos meus olhos de menina. Mas eu não sou a minha avó, e já percebo daqui, de onde estou, uns trechos embaçados.

Era já noite, quando esta vontade súbita chegou. Deixei as luzes de fora todas acesas, como se fosse dia de festa, para poder ver na contraluz os lugares em que, completamente livre de outras coisas, já vive essa minha urgente transparência.

Deixei as cortinas abertas. Gosto delas; muito, até – espécie de barreira que corta o olhar do outro e me oculta quando quero. Mas hoje deixei-as abertas, o respirar da Demétria sossegado vencendo os minutos noturnos. Cortinas diminuem a intensidade com que a luz de fora atinge o dentro, desbota as cores dos tecidos, corrói as duras madeiras de lei que fazem os móveis mais queridos desta casa. Gosto de cortinas, pela proteção, o acalanto, o ninho silencioso que criam ao redor nas noites frias.

Uns meses atrás, outra súbita urgência fez-me fazer as cortinas com que sonhei meses a fio, numa influência clara da coleção de catálogos Laura Ashley herdada. Umas, ganharam pequenas flores; devolvem-me à atmosfera da sala de uma austiniana Elizabeth em pleno Hampshire. Outras, severas, num vermelho escuro de sangue coagulado, lembram-me as da sala de Miss Marple - também ela tinha uma espaçosa janela de vidros grandes na sua sala, seu posto de observação, e também à atenta velhinha as cortinas diminuíam o tamanho da sala. A diferença é que isso era para ela um problema, e para mim é solução: tornam-na do meu tamanho, escurecem as luzes que acendo e recriam o éter de que gosto quando alguém abre o piano e toca.

Isso, na sala. Na cozinha não há cortinas – não porque se engordurem, ou sujem, mas porque as janelas olham em várias direções, e, assim, quem cozinha, descasca, tempera, lava ou seca pode olhar em volta, ver o verde que rodeia e apascenta os olhos nos intervalos da vida lá de fora. Foi pensado, tudo isso, quando nos debruçamos sob a planta desta casa. Porque, quando se cozinha, dá-se vida ao que cogita dentro, num santuário silencioso e solitário. Da cadeira da cozinha onde me sento agora, vigilante às janelas limpas e com o fogão apagado, vejo todas, de todos os lugares, e sinto-me rodeada por tudo o que já foi e tudo o que agora é, duas formas da mesma coisa, numa absurda e concreta diferença.

As janelas limpas e abertas, hoje, provocam um movimento inverso, de clareza e semelhança. Quero poder olhar para elas e através delas, ver a escuridão da noite lá fora, porque já apaguei as luzes e agora são só os reflexos azulados da noite a entrarem pelas pupilas da casa. Cheiram bem, as janelas – a limão, porque o pus na água com que as lavei, e um leve traço de álcool, para o brilho que quis perseguir mas tanto fugiu que desisti.

Não sei como estarão amanhã, mas espero que tanto elas quanto eu mantenhamos o cheiro a limpo e o jeito de quem não estranha o vento que bate, o sol que reflete, a luz que atravessa. Não corro as cortinas para impedir que os vidros fiquem sozinhos do lado de fora, entre elas e a noite que avança, sem poderem ver que eu os olho e os percebo. As estrelas que vejo no céu da minha cama brilham mais por detrás do brilho do vidro. Mas não são elas, percebo, mas o próprio vidro, que afinal consegui que brilhasse como brilhava sob as mãos da minha avó.

12/03/2011

Despedir

Despedir é verbo estranho, antigo e desafiador. Despedir só é possível quando se esgotaram em nós todas as necessidades do pedir. Quando nada em nós clama ou chama o outro, quando já não se lhe confere o lugar de alguém que está ali para estar conosco e por estar conosco. Quando se deixa de pedir, des-pede-se.

Hoje, porém, surgiu-me outra percepção dessa palavra – a de que aquilo que se despe em mim é o que permite ao outro ir. Despe(d)ir. Para mim, neste instante, essa lição de palavra me basta. Uma lição de palavra que me subtrai ao acrescentar e me transporta para dentro daquele lugar onde diz Drummond morarem as palavras em estado de dicionário: paralisadas, sem desespero, em calma, frescura, superfície intacta. É suficiente, agora à noite, que despedir seja aquilo que em nós se permite ausência – e que permite ao outro, só por isso, o seu necessário ir. E assim me desvisto nesta noite fria. Enquanto o outro vai, em direção ao que lhe pertence.

No entanto, despedir pouco tem que ver, na história do mundo dos homens, com essa percepção que correu ao meu encontro, das portas do futuro em direção ao presente. Das linhas do passado, despedir conduz ao pensamento latino, e a expetere, parente imediato do nosso verbo que diz adeus. 

Expetere é o verbo que pede, o verbo que levanta os olhos ao céu que a todos nós cobre e não suplica, mas aspira. Sob esses olhos, o ato de despir reveste-se das cores do aspirante, daquele que inala, daquele que mergulha dentro da própria dor e apenas pede que a do outro seja poupada. Apenas inspira, e nada mais.

Mas expetere tem raízes mais antigas, que se realizam com menos sons e menos letras em petere. Os mais antigos que os que pediam expetere, diziam petere,  e era assim que queriam procurar, e através da procura, desejar. E assim, nisso que hoje é um adeus e ontem era um pedido, é uns dias antes uma procura cheia de desejo. Não um desejo qualquer, mas aquele que aspira ao próprio despir para permitir a partida sem dor do outro.

A despedida conduz-nos para mais longe, porque as despedidas existem desde o nascer dos tempos, numa torrente contínua que nos envolve e às vezes trucida, implacável como é tudo o que apesar de permanece. Mas falham os registros - os homens mais antigos que os antigos ainda não precisavam escrever, e nada nos diz o que a raiz –pet provocava nos corações e nas mentes daqueles que se despediam sem dor 7000 anos antes de nós. Com certeza olhavam estrelas, talvez outras, talvez diferentes das que brilham hoje sobre nós, mas diante do mesmo espaço imenso, infinito e escuro da noite fria, tiritavam em silêncio ao se despir, despedindo sem dor os que sem dor partiam em busca do destino.


Com o pensamento em João Alexandre Cortesi Lempek, onde quer que esteja

07/03/2011

História feita de emails

Passei horas hoje à tarde fazendo história: lendo e relendo mensagens enviadas e recebidas há anos, todas guardadinhas na minha caixa de emails. Para dias que despertam com uma aura de melancolia que não se apaga, mas ainda assim não oferecem riscos de tristeza, como esta segunda gorda de Carnaval encaminhando-se para o frio noturno, é um prato cheio.

Assim, fui passear pelo passado da comunicação virtual, à procura de pequenas pérolas que a frequentaram e se deixaram guardar – um novo projeto em curso. Como caixa de Pandora, levanta-se de tudo à minha aproximação, e é preciso que me mantenha alerta e vigilante, para que afinal a tristeza não se agregue ao dia cinzento e me derrube da precária rede em que vim cair.

Poderia compor uma história de vida com fragmentos de emails; as frequências e as infrequências, o que não deveria ter sido escrito (mas foi e, pior, enviado), o que deixou de ser lido e que agora dói nos olhos por não ter tido a resposta que merecia, e agora é tarde, tanto que arde, como queria o coelho da Alice.

Há de tudo pelo caminho, pedras e plumas, sonhos compartilhados, planos vários, uns concluídos, outros abandonados. Convites bem humorados, feitos e recebidos: uns respondidos, outros desconsiderados. Pedidos de ajuda, tentativas de conquista. Sugestões de leitura, indicação de remédio para mil e uma ocasiões. Opiniões sinceras e amigas ao lado das farpas que quase encaminho para a lixeira, mas cuidado: o que não vale hoje, valerá amanhã quem sabe, e por isso a minha lixeira não guarda quase nada, porque tudo eu devo ter merecido, acho até que o que chegou por engano.

Entre os bem antigos, com data de outras décadas, encontro o aroma de quem já se foi; não fossem dois ou três emails trocados e guardados, nada teria ficado que me fizesse chorar, e o choro não me entristece, antes revigora e ilumina todos os que estão ao meu lado.

Ainda assim, volto rápido ao passado mais próximo, porque eu já sei de que cor está hoje a minha alma. Retomo caminhos abandonados. Mas não sei quem abandonou quem - e se fui eu, será que volto? O dia não está para dúvidas, nem meu coração para retomadas sem motivo, mantenho-me no registro histórico e nada preciso mudar do presente quase pretérito ainda não futuro.

Descubro coisas minhas que esqueci, textos que imaginava para sempre perdidos. Uns, até, que nem lembrava ter escrito, e pelos quais me alegro (imensamente!) ter sido a única destinatária. Não valem a leitura alheia.

Pesquiso por nome: comprovo que a memória é fraca, e espanto-me com a quantidade de coisas que nos dizemos e depois esquecemos. A quantidade de perguntas sem resposta. As respostas a perguntas que sequer foram feitas. E um espaço aberto, imenso, gigantesco, feito do mais puro esquecimento. Uns silêncios diferentes daqueles que se deixaram tão somente de dizer: aqueles que foram criados para que do outro lado se mastigue pelos ouvidos um “não vou dizer” que nunca se dirá. E por isso sem resposta. Esse espaço abre-se como chaga, e esse eu não tenho intenção de suportar.

Dirijo-me ao setor das alegrias, das risadas, do humor rosa e negro, das mensagens sem sentido defendendo as causas mais indefensáveis, os sofistas de plantão, os hábeis argumentadores, as ofertas de produtos e serviços.

Entre toda essa teia, há presenças que se mantêm por anos; há os que me frequentaram durante um tempo e depois se afastaram – uns de repente, outros mansos e lentamente. Sinto saudades e falta de alguns – ou do tempo em que estavam, aquele hoje irrecuperável. Ainda assim, porque estou diante deles e a cor é a mesma, porque o amarelado do tempo não marca as telas dos computadores, posso imaginar que está tudo ainda vivo, e forte, e pulsante e entusiasmante. Um dos milagres da virtualidade, quem sabe. 

24/07/2010

Fazer aniversário

Fazer aniversário é um luxo. Uma sorte. Um enigma. Uma passagem. Eu, particularmente, gosto de contar os anos que passam, gosto do sabor que fica impregnado em cada um deles, o aroma às vezes a naftalina, como os casacos de alguns de nós que só saem do armário e visitam o mundo quando faz frio. Lamentavelmente a memória me atraiçoa e custo a lembrar quando em que ano qual a data em que aquilo se deu. Quando outros me lembram, juro que não voltarei a esquecer, mas nem sempre consigo cumprir a promessa.

Hoje, 23 de julho, faria aniversário minha filha se fosse viva. Tenho há anos guardado um poema que o português David Mourão Ferreira escreveu no dia do 18º aniversário de sua filha, que nunca chegou a nascer porque quando o fez já se tinha perdido no limbo. Às portas de entrar neste mundo, deixou-se voltar ao outro lado. David gravou esse poema em um cd que o tempo (e as crianças) se encarregou de riscar, mas o registro da sua voz grave e embargada, o sibilar da baforada de cachimbo numa das pausas entre estrofes, ficaram-me nos ouvidos. Se fecho os olhos, vejo-o, envolto nas suas nuvens azuis de tabaco, os olhos postos numa filha que nunca viu.

É um poema aberto e limpo, tristemente sereno e doce, e durante todos estes anos em que conviveu comigo ali ao lado, manteve-me a chama acesa de uma data que não sei por que deveria significar alguma coisa. Antecipo este dia de hoje, este ano de hoje, há anos sem fim, pulando-os num rosário de contas transparentes umas, opacas como corvos outras. Mas esta noite é noite de lua cheia, a lua cheia de julho, a lua cheia de julho de 2010. Sem precisar de dotes extraordinários de antevisão e premonição, sei que sabia que este dia não seria como os outros, nem esta noite, nem esta lua, nem este ano. Dentro de todas as realizações e mudanças, de todas as decisões e conquistas, de todas as saudades de tantos, persiste imóvel, atenta como uma estátua grega, a imagem da minha filha hoje com 18 anos. Durante muito tempo pensei em celebrar-lhe a vida do outro lado, e deixar de lado a que não viveu aqui – mas não é verdade que não a tenha vivido, que não esteja codo a codo, como diria um espanhol com muito mais peso do que entre dois cotovelos, entre nós, o tempo todo.

Persiste imóvel e assiste. Recolhe no espaço todos os movimentos intensos daqueles que amou e a amaram, e neste dia que é de alegria, ela ri e joga a cabeça pra trás, olhando de soslaio para a felicidade de que faz parte. O irmão que agora se gradua num lado do mundo, o outro que hoje conquista sonhos sobre rodas a milhas náuticas de distância, estão esquecidos deste dia, mas a alegria com que vibram é parente daquela que semearam junto a ela e se manteve viva durante 18 anos.

Ao contrário de David, vi e abracei a minha filha vezes sem conta. Não sei o que será pior ou melhor, que quem sabe das dores é quem as sente. A falta ou a presença escassa? O nunca ter visto ou o ir perdendo a memória do que se viu? Ter impressa na pele a marca da passagem do beijo, ou imaginá-lo suspenso no ar e agarrá-lo sempre sabendo-o ilusão? Alisar a roupa que se vestiu, ou ter as palmas das mãos livres para o tecido feito de éter? Lembrar do sapato que não se comprou, ou não ter dentro essas ínfimas lamentações que fazem da vida um purgatório?

As transformações que a chegada e a partida da minha filha permitiram não têm fim, sucedem-se através dos tempos e dos anos, e é um luxo, uma sorte, um enigma, uma passagem tê-la assim tão perto, sem tristeza nem lágrima, sem peso nem desassossego, permitindo-lhe a vida naquilo que não acaba. O tempo passa e alivia os fardos de todas as árvores que somos. Dos nossos ramos caem folhas ano a ano, e só a nossa procura de sol impede que percebamos que cada folha que nos cai nos devolve à terra imortal.

Imagem: a inspiração, David Mourão Ferreira

15/07/2010

Revisão

Estou ocupada há dias, na revisão das páginas que escrevi faz hoje exatos doze meses. Sem a intenção ou o feitio de se constituírem diário, estas quase cem crônicas, que finalmente preparo para a edição em papel, reinventam cada um desses meses que viveram. O fato de tê-las compartilhado através deste alobairro transfigura-as, e é por isso que o texto que faz as vezes de introdução ao livro usa a palavra “alteridade”. Além de usá-la, torna-a palpável ao longo dos parágrafos, aproveitando a intensa troca de emails a seu respeito, palavras de alerta, de ânimo, de correção e de provocação.

Os outros são-me um tema caro, os outros dão-me a medida dos pés, os outros elaboram meus passos e meus horizontes. Mesmo quando os desconsidero, ou quando os considero maiores do que são, converto-os em algo além de si próprios, subvertendo-lhes o tamanho concreto. Não me importo de ver o que não existe – dentro do papel, se me apetece, existe.

Uma a uma, cada crônica evoca um momento, uma pessoa, uma situação – e aquilo que senti ao escrever retorna; o que já estava engavetado, apagado, remediado, aceite, revive, com a mesma carga de dor e amor do seu próprio dia. Pergunto-me (quem ao escrever não o fará?): o que isso que escrevo fará brotar em quem se aventurar leitor?

Página a página, preciso resistir à vontade de agarrar o telefone e recompor o presente, transvesti-lo com gestos do passado, como se o que foi feito pudesse ser apagado, como se não contasse, como se pudesse hoje alterar o que foi gravado a fogo meses atrás.

Não posso: a gráfica está à espera desta revisão. Pode ser que alguém espere meu telefonema do outro lado da linha, mas também pode ser que não, e hoje eu sei o quanto a minha alma não comporta mais nenhuma decepção. Hoje, não. Hoje meu coração feito de folhas não aceita desilusões. Prefere manter-se iludido, rodeado dos feixes de luzes que criou porque era livre para isso, num milagre que atravessa as primaveras e os outonos e vem estacionar-se ao meu lado, dando-me cobertura para o rigor dos dias que se aproximam.

25/06/2010

Aos homens que se escrevem com maiúscula

Saramago não me dá trégua: passei a semana a lê-lo, creio até que se me cola aos dedos, seres autônomos que agora querem brincar de evitar as pontuações padrão. Resisto-lhe um pouco, agarro-me às minhas próprias sombras porque os dias e a escuridão também não me dão trégua, e logo ele volta, com mais um pequeno segredo a que eu não tinha prestado atenção na primeira visita. Com isso, continuo rodeada dos seus livros, aquilo que lhe sobrevive na ausência, como ele quis. Lamento os que não comprei em inúmeras ocasiões e fico feliz porque a ele sim, ao fim e ao cabo, pedi um autógrafo. Olho-o longamente, a esse desenho que forma o seu nome, e dá-me assim uma certeza de coisa toda inteira na página em branco deste livro. Simples e austero, como seu autor. A tinta forte, sem espaço aberto a dúvidas. E embaixo o ano, porque o tempo é o amigo das coisas que se querem lembradas.


Talvez o que não me deixe afastar-me da sua memória seja o tê-lo descoberto, ao longo desta semana, no tamanho da sua integridade pura, da sua absoluta desesperança sem fé em nada a não ser na força do trabalho das suas próprias mãos. Reconheço-lhe traços que se vislumbram na sua carta natal, mas imagino que ele, lá de onde está, se ria ao ver-me por dentro a pensar semelhante disparate. Não creio que ele olhasse para as estrelas dessa maneira. E ele olhava-as. Longamente.


E provavelmente não exista nada de riso em seu rosto ao ver-me pensar ou fazer seja o que for, porque se tudo tiver dado certo e ele tiver ido para onde gostaria de ter ido, está neste momento disperso no éter do não ser, do não tempo, incorporado à substância vital e criadora do universo, e mais nada. Tanto se lhe dará o que eu ache.


Há uma espécie de verdade com maiúscula que me atravessa quando o leio. Uma espécie de grandiosidade do pequeno. Quanto menor ele se apresenta, maior e mais intenso me atinge.


Tenho-o diante de mim em muitas fotografias. Em gestos que se fizeram ternos com o passar dos anos e o encontrar do outro. Mudou a si próprio sem recriminar o passado nem angustiar o futuro – um dia atrás do outro e de cada vez, na sabedoria camponesa sem ambições dos seus pais e avós. O tamanho da vida de um homem que se escreveu a si próprio com maiúscula.


Releio mais uma vez as anotações que fiz sobre a sua vida, interrogo-me sobre algumas das suas ações, quem dera pudera perguntar-lhe de onde lhe veio tudo isso, se da certeza do caminho, se da teimosa decisão de ser austero, grave e incisivo na sua observação da realidade, dessa matéria por trás das palavras que engulo como alimento.

Sinto-o ao meu lado, na pretensão que muitos devem a esta hora reconhecer em si, e acho realmente uma sorte que uns permaneçamos vivos enquanto outros se vão. À maneira de Cícero, que dizia que a memória preservada em veneração e ternura naqueles que sobrevivem faz com que quem partiu seja feliz na morte e quem ficou honrado na vida.


O sentimento ou a necessidade da honra traz-me os que partiram nos últimos dias, e eu conheço. Apresso-me a percebê-los de novo, procurando-os nesse estado sem estado. A memória preservada é tarefa diária, assim como é diário o esquecimento do que importa e é leve o bater das asas dos que partem de nós.

16/06/2010

Digressões à parte



Tenho um aluno (vários, até, mas é este um que me vem à mente agora) cujo pensamento é o que eu chamo de digressivo. Infelizmente tendo de preparar-se para exames que querem perceber até onde o pensamento lógico e encadeado vai, precisa de bastante paciência para fazer frente à tarefa. Mas, justamente por ser digressivo, avança sem dificuldades. Só leva mais tempo. E algumas coisas precisam e melhoram com o tempo – como alguns vinhos, por exemplo.

A digressão, bem diz a própria palavra, leva-nos a passeio. A dissertação demanda conhecimento de causa, provas cabais de que se entende, através de exemplos e de experiências. É coisa séria, enquanto que a digressão é um tanto à toa, como sorvete num dia de inverno, só porque deu vontade.

O pensamento digressivo, útil até dizer chega ao fazer literário, é um empecilho digno de zerar nota em qualquer vestibular que peça uma dissertação ao proponente a aluno universitário. A digressão acompanha muitas das melhores peças literárias que andam por aí há muitos séculos, enquanto que a coesão lógica solicita tudo ao raciocínio e muito pouco à arte. Ou produz jóias raras, como muitos sermões de Vieira, mestre em convencer pelo poder da lógica em perfeita cadeia. Mas isso é para criaturas iluminadas como o padre barroco, e não para os comuns dos mortais.

O que é uma pena, acho, rodeada que estou de seres que se nutririam mais das digressões da vida do que de seus encadeamentos racionais. Uns, porque impera-lhes a lógica, e poderiam divertir-se com as cores e os sons da arte que ainda não distinguiram em si, ainda não deu tempo, quase que acabaram de renascer para o encantamento da Palavra. Outros, porque o aperto do mundo lá adiante, o abismo embaixo dos pés que querem mas não conseguem atravessar a  voo, o desespero de ir e querer contra o ir e o não querer - poderia aliviar-se numa digressãozinha que tirasse o peso de cima dos ombros e o fizesse levitar como uma bolha de sabão.

Com o tempo, as laudas, as páginas, o recebimento por caracter-sem-contar-espaços-que-pena familiarizei-me com a escrita e hoje tanto enveredo pelos campos verdes da digressão quanto pelos céus luminosos da argumentação. Gosto e me divirto com ambos, é uma sorte que não seja sempre tudo a mesma coisa. Mas quando me imagino às portas do futuro de antes, e vejo passar diante de mim de novo todas as cores de todos os países e pessoas do mundo, não sinto nenhuma vontade de ouvir outra vez aqueles que me diziam que era preciso ser lógica, e precisa, e assertiva, e cheia de bom senso.

Haveria de preferir, como de fato preferi, enveredar por todas as figuras de linguagem, torná-las meus vícios, desentocá-las a todas das profundezas dos seus refúgios, encontrá-las no escoramento dos poetas que mais amo. Dissertações, naquele tempo, imagino que me colocassem frente a frente com o pouco que conseguia ver através do muro que me separava do que viria a ser, e o sentimento que tudo isso me trazia de frustração e profunda incompreensão.

Espero poder ajudar este meu aluno (e os demais, que se lhe colam na minha lembrança) a não se deixar invadir pela lógica mundana a ponto de perder a sua capacidade de digressão; ajudá-lo a alinhavar-se racional e sobriamente, conseguindo divertir-se com isso, e sabendo que tudo é sempre muito mais do que parece e nada pode ser jogado fora. Se com isso ele conseguir entrar na faculdade que tanto deseja e para a qual não mede esforços, terá sido um prazer e uma alegria somados.