31/01/2021

As sete tias de Manuela e o boldo do quintal



Manuela (nome fictício, porque a história é, até certo ponto, real) vive há pouco tempo no lugar em que está. Pergunta-se das suas raízes. Creio, digo-lhe, que talvez sejam aéreas, facilmente transportáveis de um canto a outro, e por isso mude tanto e se transplante com tanto à vontade. Se sempre será assim, difícil dizer. Manuela gosta de desafios (ela admite), de resolver o problema que encontrou (ou que a chamou?) e dar-se por satisfeita quando percebe que resolvido está. É ela mesma quem conta:

- Minhas tias tricotavam no outono as mantas do inverno. Eram sete, essas minhas tias, sentadas lado a lado, formando uma concha debaixo das parreiras de uva do quintal da minha avó. Minha mãe sentava-me ao lado dela. Eu era bem pequena, mas se fecho os olhos lembro-me como se estivesse lá. Entregava-me o cesto com a pilha de novelos, um de cada cor, bolas trançadas num emaranhado agradável que me encantava e aquecia as mãos. Eu tinha pra menos de 6 anos. Elas tricotavam sem parar, longas línguas de tecido escorregando de seus regaços em cascatas mornas. Tia Alice era quem melhor e mais rápido tricotava, os olhos miúdos sorrindo o tempo todo. Tricotava sem nem olhar o que as mãos faziam. A minha tarefa era desfazer os nós dos novelos. Passava o tempo fazendo e desfazendo novelos. Ao primeiro nó, procurava a ponta com os dedos, enquanto mantinha os ouvidos atentos às palavras dessas tias. Não eram muitas. De vez em quando era um "Deus nos acompanhe", de outra um "Orai por nós", daqui a pouco um suspirado "Que em vida nos tenha". Ficou essa coisa de tecer-se a vida do espírito nos meus ouvidos.

Mas agora o que Manuela quer é autonomia - e de presente recebe mais duas palavras: independência e liberdade. É um rosário, eu quase lhe digo, um rosário feito de três contas, agrupadas sempre nessa mesma ordem: a autonomia, logo depois a independência, e por fim a liberdade. Uma reza. Um terço só de três. Cosidas umas às outras, como os três pontos que tia Marina cantava ao tricotar: "Foi um, foi dois, foi três. Foi um, foi dois, foi três".

Havia plantas nesse quintal - Manuela nem precisa contar, adivinha-se. De um lado mamão, do outro mamona. Parecidos, mas de intensidade diferente. Quando o problema é grande, mamona. Quando é mais ou menos, mamão. De outra vez, conto da diferença. Agora, os meus olhos já se detiveram no boldo.

Tão comum, o boldo. Tanto, que se encontra em qualquer lugar, e qualquer pessoa sabe que é bom para os males do fígado.

Ewé Bàbá chama-se o boldo em yoruba: a erva do Pai. Tão fundamental nessa cultura que se espalhou por todo o mundo pela presença africana. O mundo é mais africano que qualquer outra coisa, nós é que não sabemos reconhecê-lo, e perceber o quanto é comum e está em nós todos, nos deixando mais Humanos só por ser.

Há muitos boldos, na verdade. Todos têm basicamente as mesmas propriedades e servem aos mesmos fins. E todos guardam em si histórias de luta e resistência, conhecimentos seculares da época em que o óbvio era saber que espírito e matéria são indivisíveis porque antes de sermos matéria (e depois também) somos espírito. Boldo também é herança Mapuche - esse povo antigo e sábio das regiões medianas da Argentina e do Chile. Mais de 5 séculos antes de Cristo já lá estavam, muitas centenas de milhares quando a Coroa Espanhola sangrou essas terras. Boldo deriva de "folo" - a maneira com que os mapuches chamam o boldo que cresce espontâneo e livre nos Andes. A língua Mapuche chama-se Mapudungun - um primor linguístico que significa "o som da terra". Quando um Mapuche fala a sua língua, fala o som da terra. 

O boldo, ou malva santa, como é chamado em rincões do Brasil, tem aliás uma infinitude de nomes. Um deles é tapete-de-Oxalá (Ewé Bàbá, lembra?). Como esse Orixá do panteão yorubano, o boldo traz clareza ao raciocínio (o fígado é um cérebro potente, enevoado turva nossos pensamentos), expande a consciência (justamente porque promove desobstruções dos canais densos e dos sutis também), equilibra o ego (o gosto amargo não agrada a esse nosso companheiro eterno) e, por fim, alimenta o nosso chacra coronário, a morada do nosso contato com as realidades não palpáveis.

Escutar o som da terra, como fazem os Mapuches quando falam, equivale e em muito à meia lua das sete tias de Manuela. Equivale a essa busca premente por autonomia - porque sem ela dificilmente se consegue independência, e sem esta a liberdade é ilusória. É preciso raciocínio claro, equilíbrio das vontades, expandir a consciência para saber mais do que se sabe. Para ser autônomo é preciso estar fortalecido, é preciso eliminar obstruções, é preciso animar a alma, é preciso aquecer o coração. O pé de boldo de Tia Marina sussurrava tudo isso à roda das sete tias.

As coisas mais importantes costumam ser as mais simples. Uma folha de boldo espremida num copo de água, e deixando ali marinar durante um tempo, dá ao fígado a limpeza que ele precisa depois de excessos - não só de álcool ou de comidas fartas em gorduras, mas também de discussões azedas, de desgastes dos afetos, de cansaço psíquico, de muito tempo pensando ou em frente às telas dos computadores, nesta vida online que nos acometeu. Auxilia a digestão justamente porque dá um alívio ao fígado e à vesícula biliar, estimulando as suas funções. Um escalda-pés de boldo (bastam umas 3 ou 5 folhas em 1l de água fervente, com cuidado para não se queimar e para não tomar friagem depois) auxilia as insônias. Um banho, feito de pescoço para baixo ou de coroa (ou seja, banhando também o chacra coronário, a nossa Coroa Espiritual), tranquiliza, fortalece a fé, a coragem, a determinação, tudo aquilo que o fígado, com seus processos purificadores, alicerça em nossas vísceras.

Esqueci-me de dizer a Manuela de que chá e banho e escalda-pés de boldo farão bem nestes momentos de mudança, de transformação, de transplante de raízes. Porque quando mudamos, no momento exato da mudança, de erguer um pé quando mal acabamos de colocar o outro no chão - é preciso mente clara e coração em paz. É o que o boldo, e as bênçãos de Pai Oxalá, nos oferece, e pode nos servir a todos, enquanto aguardamos pelo lugar para onde vamos.

19/01/2021

Divino amargo

 


    Vó Chica combina com o silêncio da mata nas manhãs de chuva. A meio da alvorada, aponta-me as hastes da carqueja por trás das árvores. Vê como crescem como fatias de luz por entre os troncos, diz-me ao ouvido. Vó Chica gosta de carqueja, e estas terras também. Como se houvesse se levantado um véu, vejo-as brilhar por todo lado. Amarga, a carqueja, só se em excesso, e, mesmo quando amarga, é preciso bebê-la. O fígado agradece, o intestino e os rins também. A carqueja dissolve o que de mais profundo se agarra à nossa alma: o medo.

    Sigo Vó Chica até o lugar onde quer sua pequena casa. Posso andar de olhos fechados, de tão devagar que avança. Não sei se olha tudo para que nada se perca, ou se anda devagar para que eu não corra e veja o que na velocidade não poderia (não costumo) perceber. Como aquele pé de guiné, que sobrevive a duras penas, ainda à espera de lhe ser permitido o costume da sombra. Ou ali ao lado, quase imperceptível, a alfazema fazendo milagre, rodeada de coquinhos pelos quatro lados. Fico contente de sentar-me aqui, perto da sua futura casa. Vó Chica ganhou mais do que um banquinho - assim posso sentar-me em um e com os olhos fechados chamar essa amiga querida de tantos e tantos anos, e ela quem sabe, se eu tiver sorte e motivos, se sentar também.

    Vó Chica tem o cheiro e o gesto daqueles que dissolvem, transmutam e reestruturam o que precisa ser transformado. Está de um lado e do outro da vida, encantada guardiã das passagens, e por isso nos leva de um lado para o outro, e desse outro para mais um. Ensina, acalma, compreende, protege e sorri, sempre doce, mas também, nestes últimos dias, urgente, incisiva e prática.

    "Filha, o tempo já está correndo, você percebe? Se ainda não foi, é preciso aprender a soltar tudo, aprender a encontrar a força da vida em qualquer pedaço de chão, em qualquer lugar de coração, em qualquer forma, espaço, tempo. Se há perdão a pedir, é preciso ser pedido agora, se há agradecimento a fazer, é preciso que seja feito agora, neste instante. E não é na sua cabeça, filha - é usando o sopro divino que nasce na palavra pronunciada, que chega até o ouvido do outro e de lá é carregada até o coração. Não há outro caminho, não se engane. Não diminua, filha, o que tem tamanho. Aceite o que é, e ande, em passos retos evitando as curvas e os rodeios. Não perca tempo, e ajude a quem puder a que também não o perca". Vó Chica quer muito ser escutada, estes últimos tempos.    

    A carqueja em minhas mãos já nasce retorcida, abrindo-se em dimensões de busca de luz, barbatanas nadando no ar líquido. Pouco se importa de não ser folha, nem flor, nem caule, nem nada. Busca imperiosa a força da luz solar, alarga-se no espaço, sobe através dos troncos, entrelaça-se entre eles, diferente de suas irmãs que nascem nos pastos e à beira dos caminhos. Estas hastes, que Vó Chica coloca em minhas mãos, e semeia nos alegres jardins de flores, precisa de esforço.

    Oxóssi, Iansã e Ogum irradiam com suas forças a carqueja, e com ela as nossas forças vitais, dissolvendo o desgaste psíquico. Aprendo isso nos livros, enquanto sinto Vó Chica me estimulando a curiosidade, folheando através do meus dedos, guiando meu tato, meus olhos, meu amor pelas coisas. Nos confins de tudo, quando me sento perdida à mesa que me traz respostas, Vó Chica está diante de mim. Lê meus pensamentos, sabe meus desejos, conduz-me pelos férteis campos da nossa relação, com uma rapidez inusitada que contrasta com o peso da maioria dos seus passos. Bom humor e alegria - estímulos que a carqueja inspira dentro de nós, com as suas flores de outono, o seu amargor de acordo com a vida. Acorda, parece dizer, e vai viver - essa vida não programada, não desejada, não colorida pelas cores que imaginaste, mas ainda assim a vida, e vida será enquanto for preciso.

    Tomo um banho de carqueja (preciso experimentar sua força), e porque não quero sucumbir a medo algum, misturo fedegoso e folhas de laranjeira, faço gargarejos e bebo o chá. Limpa a garganta e acomoda os sentimentos num lugar correto e renovado. Vó Chica desaparece por entre as volutas de vapor. Como que a desejar-me boa noite - "dorme bem e acorda com os olhos limpos e a alma corajosa".