01/04/2023

Linha de horizonte

São estes horizontes largos a abrirem-nos os olhos, a ventilarem-nos os pensamentos. A mim, dão-me a sensação, nem tão agradável, de ser por um lado tão pequena e insuficiente e, por outro, ser pertencida por algo que é em si tão maior. Este algo que me transcende é este deslumbramento, esta outra perspectiva de tanta água salgada, tanto mar, tanto mar, deste lado tanto quanto do outro, acima e abaixo, à esquerda e à direita. As ondas tudo mudam de lugar, e nada permanece a não ser o horizonte.

Do fundo dessa linha a dividir céu e mar, a correr sobre a superfície como um peixe-voador, a Rainha das Águas olha-me, tal qual eu a ela. Mal deixa seu rastro no espelho d'água. Reconhecemo-nos a um só tempo, e assim como a observo, sei ser por ela observada. Fecho os olhos, não me cabe tanto deslumbramento, sinto-me explodir dentro dos olhos. A brisa marítima salga-me a boca, os lábios, a pele toda que se arrepia neste encontro de séculos.

Por dentro dos olhos fechados, desenham-se as linhas do contorno escuro e familiar da janela da casa de uma outra Ana, velha de muitos séculos. É o mesmo mar, assim como este, mas é também outro, e assim são as coisas, uma junto das demais, todas iguais e diferentes, a possibilidade infinita da experiência humana, que é tudo e é tão pouco ao mesmo tempo. Somos certamente eternos naqueles que nos olham dos outros lados das existências. A Ana a quem devo o nome que tenho olha-me do outro lado deste mar, desta janela, deste tempo capturado numa linha de horizonte líquido.

É por isso, talvez, que é tão difícil voltar e tão difícil seria igualmente ficar. Guardo-me toda por dentro dessa impossibilidade, para senti-la tão junto a mim que faça dela presença, nela me aninhe e nela encontre conforto e sossego. As águas, enquanto isso, passam sobre mim em vagas quentes e macias.


(O mar da imagem é o que se avistava do Cabo da Roca, em Portugal, no fim de fevereiro deste ano.)


31/03/2023

À porta da casa


Eis-me de volta a Casa. Volto a ocupar esta Casa do Vento, onde a minha alma aprendeu, e por onde sabe cantar e gesticular e gritar. A plenos pulmões, como deve ser. A boa educação é por vezes muito falha, assim como as boas intenções, por melhores que pareçam e até o sejam. A algumas coisas, apenas o grito e o gesto se dão como verdades.

E assim, estou de volta. Quem me abre, ou reabre, as portas desta casa, é esta porta. Esta porta como todas um lugar por onde se atravessa, uma passagem, um lugar por onde se deságua.

Por esta porta específica, feita de tijolo e ferro, passam os meus filhos e aqueles a quem amam. Nem todos, mas os que este espaço ocupam. Atravessam-na, dia após dia, talvez sem reparar que o fazem, e que o seu passar ficou preso na base da minha retina. Assim como há um fora e um dentro, há um antes e um depois. E depois que se atravessa uma destas portas, que se resguardam e se agarram a nós tão cheias de sentidos, não se sai igual do outro lado. Nem é preciso tentar: os espelhos refletem outra pessoa, as ruas abrem-se a outra forma de passos, pode parecer que se é a mesma - mas não se é. A porta foi atravessada. A viagem foi feita. 

É preciso, passadas experiências assim, saboreá-las. Devagar e ao longo dos dias. Degluti-las. Extrair-lhes sentido e sumo, sem no entanto as esgotar e delas abusar. As experiências também têm vida própria, e merecem descanso tanto quanto preparação. Às vezes, o silêncio a seu lado é a melhor conversa.

É sobre este retorno que a minha Casa do Vento constrói os seus novos alicerces, sabor e pertença de imagens que vejo e sinto e cheiro diante de mim embora vivam já no passado. Pertença, eis a palavra chave.

É esta uma nova viagem dentro da viagem já feita, desta vez por dentro, desta vez pelas águas límpidas das veias. A quem a quiser acompanhar, eu dou as boas vindas. Que seja uma viagem a muitas mãos, tantas quantas me caibam na memória.