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28/01/2014

Alheiras, Miranda do Douro e Oxóssi

Se há uma coisa que me espanta, é a maneira como as ideias se espalham e se reencontram no exercício do pensar. Agora à noite, um instante antes de tentar adormecer, pensei que escrever sobre alguma coisa haveria de fazer-me bem. Para aquietar o coração. Pus-me, por isso, a pensar em qualquer coisa que quisesse insinuar-se. A ideia de precisar escrever tornou-se imperiosa, e logo percebi que, sem escrever, não conseguiria mesmo dormir. Era de se esperar.

Mudei de lugar. Fui àquele onde a inspiração se tem notado mais presente nos últimos dias. Ando com a ideia de que a inspiração é também um fator regido pelas microgeografias de uma casa. E vem-me, sem querer, a imagem de um arco e uma flecha. Lembro-me da imagem aí ao lado, guardada há tanto tempo e à espera de ser precisa. É hoje que a uso: penso no orixá que se acabou de comemorar dia 20. Dia de Oxóssi. É ele que se aproxima quando se pinta, se escreve, se modela, se borda, se tece, se esculpe, se dança, se canta, se toca. Onde há arte, há a mão, o arco e a flecha de Oxóssi, qualidade divina da sustentação da vida. Oxóssi é o caçador arquetípico, aquele que se celebra ao redor da mesa, é a alegria, a independência. Expande-se e fortalece-se nas matas, nos ambientes virgens onde pode avançar sem constrangimentos. Os animais e as plantas são parte do seu ser, e neles a sua qualidade se reanima. Oxóssi aproxima-se de mim, invariavelmente, sob a luz de um novo aspecto do que já conheço. A partir da sua presença em mim, adquiro a capacidade de olhar com novos olhos esse terreno que se revirginou, e ressignificar a vida à minha volta. A flecha rápida e certeira de seu arco atinge-me a meio do corpo.

Essa nossa capacidade humana de ressignificar a vida é uma forma de encantamento. Ressignificamos sofrimentos e mágoas amparados na premissa de que tudo necessita transformar-se. E mesmo que muitas vezes esperemos a transformação do outro, os nossos passos fazem-nos inexoravelmente transformar a nós mesmos. Esse movimento de transformação aproxima Iansã de Oxóssi. E a alegria de Oxóssi alegra-se mais no encontro com a força direcionadora de Iansã - toda essa força criadora encontra no vento e nas tempestades de Iansã o lugar de seu direcionamento. É de se aproveitar.

Nessa minha intenção de observar os caminhos do meu pensamento sem interferir muito neles, nem sei bem como, de Oxóssi, cheguei às alheiras. Tá certo que um amigo querido publicou na internet uma fotografia saborosa de uma dupla de alheiras na brasa. Mas há algo mais.

Esse algo mais é justamente a capacidade ressignificadora. Alheiras são um tipo de enchido comum em Portugal. Parece-se com o chouriço português (que é mais uma linguiça do que um chouriço feito de sangue, lá em Portugal aliás chamado morcela), mas não é. A marca da sua nascença foi querer-se parecido com o parente. Ressignificou-se o alimento para que um povo pudesse permanecer vivo.

Da seguinte forma. Nos tempos em que os judeus precisavam converter-se ao cristianismo, uma das formas de conferir a verdade dessa conversão era aferir a existência ou não de chouriços nos fumeiros das casas dessas pessoas. Já se sabe que judeus não comem carne de porco, e que chouriços são feitos de carne de porco. Portanto, difícil um judeu comer um chouriço. E porque a fé de um povo não se remove por decreto, foi preciso ressignificar o dia a dia. Em algum momento, alguém teve a ideia de produzir um enchido que pudesse pendurar-se no fumeiro e que pudesse ser comido por quem não comia carne de porco. Nascia a alheira: um chouriço que não era chouriço, feito de carnes de frango, ou peru, ou codorna ou perdiz ou o que se encontrasse e não fosse ser chafurdante na lama. Estamos ao norte de Portugal, e muito especialmente numa região resistente, de onde brotou não só a alheira, mas também uma cidade chamada Miranda do Douro, berço da segunda língua oficial portuguesa.

(Aproveite para ressignificar o seu conceito sobre a Lusitânia: duvido, e muito, que você soubesse da existência de uma segunda língua oficial nesse país que tem menos habitantes que a cidade de São Paulo!)

Para ressignificarem a vida, e ressignificarem a sua relação com esse mundo-cão que tudo engole, os 15.000 falantes de mirandês realizaram uma série de proezas oficiais. Entre elas, a publicação de dois livros de Astérix em mirandês: uma espécie de afirmação contundente do caráter revolucionário de resistência desse pequeno grupo. Uma pequena ilha em meio à barbárie europeia. 

Existe também uma wikipedia em mirandês, a Biquipédia: http://mwl.wikipedia.org/wiki/P%C3%A1igina_Percipal, e existem placas bilingues por toda a cidade de Miranda. 

Quer um exemplo de mirandês? Segue um, mas com o aviso de que vale a pena surfar um pouco pela net e descobrir a quantidade de sites nessa língua. 

Durante ls seclos XV i XVI, Pertual fui ua poténcia mundial eiquenómica, social i cultural, custituindo-se l purmeiro i l mais duradouro ampério quelonial de amplitude global. Zde la cunquista de Ceuta an 1415 até a la cessaçon de la admenistraçon de Macau, an 1999. 

Sabendo-se que Pertual significa Portugal, não será difícil entender o que está escrito. E é lá, nessa região mirandesa, que nascem as tais alheiras, as mesmas que o amigo Claret celebra na sua publicação. De uma tacada só, ressignifica-se a língua que falamos, a comida que comemos, a história que sabemos e a vida que vivemos. 

Encerrar este dia cheio de demandas com tanta ressignificação faz-me olhar para a noite que se apresenta com outros olhos, e, mais além, o dia de amanhã, com outros também renovados olhos. E meu último pensamento do dia assume a forma  a força de um desejo: que, a cada dia, a energia irresistível do vento da mudança nos atinja, permitindo que ressignifiquemos eternamente a nossa permanência amorosa uns junto aos outros.

03/11/2013

Assimetrias


À esquerda, o Sever, o Sorraia e o Almansor. À direita, o Erges, o Pônsul, o Ocreza, o Zêzere, o Alviela e o Maior. A lista é do 4º ano primário, creio, e era preciso decorá-la. Os afluentes do Tejo, em cada uma das suas margens. Lembro-me dos da direita, os mais torrenciais, os que descem das partes altas das montanhas a meio de Portugal. O Tejo, que é o maior rio ibérico, deságua aos pés de Lisboa. O forte de São Julião da Barra é o marco do encontro das águas: o Tejo derrama-se larga e tranquilamente, o Atlântico recebe-o abrindo-lhe as ondas suaves. Se fecho os olhos, sou capaz de ver a praia de Oeiras em frente ao forte, as gaivotas aos gritos acima de mim, as ondas a baterem nas rochas ao lado esquerdo. 

Os rios desta minha península são como os sulcos desta folha de eritrina que tenho entre as mãos. As eritrinas explodem em cor quando florescem suas lanças, vermelhas como o Mar Vermelho a que os gregos chamavam eruthros. Ainda que já tenham se passado semanas do fim da sua floração, e agora só haja folhas, a presença das flores continua ao redor do espaço que ocuparam. Mas o meu olhar pousa na quase mas não simetria dos rios que navegam na folha, esses tranquilos Tejos verdes, o caos organizado dentro de limites construídos no cotidiano. Na passagem dos dias. Observo-a longamente, a essa folha; percebo-lhe o contorno justo, a ligação fraterna entre as moléculas e a profunda presença a olhos nus. A folha existe para existir. Como os rios.

Esta atenção à falta de simetria das coisas nasce no espelho que tenho diante de mim. No meu rosto paralisado do lado direito, um olho abre-se desmesurado, e decide não piscar. Ou quase. Fico me perguntando que quer ele tanto ver, que não me permite a pausa da escuridão das pálpebras fechadas.

Estou assimétrica, como a disposição dos afluentes do Tejo, como as nervuras das costas das folhas das eritrinas. Se havia algum equilíbrio entre os dois lados do meu rosto, desfez-se, como uma catedral gótica que decidisse abrir espaços dentro do seu equilíbrio. Como o oferecimento de um mundo a desbravar. É preciso, penso, encontrar formas de equilíbrio dinâmico, que disponham as forças do movimento e da paralisação onde cada uma cabe.

E por isso lembro dos afluentes do Tejo. Da dificuldade de ordená-los na lógica que se pedia, da vontade de repetir-lhes os nomes pelo prazer de o fazer, do dia em que mergulhei nas águas do Zêzere e as soube frias como nunca imaginei ao saborear-lhes o nome. Rios de água sinuando pelas planícies, mansos e férteis, deslizando suaves pelo meu pensamento. São sentimentos, penso, estas águas em busca de oceano onde desaguar, intercalando seu passeio pelas represas e pelas barragens que os homens insistem em fabricar.

Agora que a noite se aproxima, tenho uma paleta cada vez mais variada de novos símbolos. Imagens e palavras e fatos amalgamados ao longo de um dia. Aquilo que meu olho acostumado a si mesmo vê, difere daquilo que o outro, esse que se paralisa e insiste em permanecer-se aberto, me descobre. Como um paradoxo a céu aberto, a sua paralisia desaperta-me, afrouxa-me, alarga-me, desamarra-me, derrete-me, dissolve-me. Descubro que a simetria é uma espécie de invariância sobre transformações, movimentos ou trocas: esta assimetria que vejo ao observar-me ao espelho é uma porta para outro lado de mim mesma. Não posso exercer a força, assim como não podem os dois lados da folha de eritrina, variantes de uma mesma essência que não pode forçar-se a nada que não seja ela mesma. O que posso é observar o novo quadrante, esse poço escavado dentro do espelho.

Enquanto uma onda de solidão luminosa preenche o espaço ao meu redor, pergunto-me onde está o oceano em que tanto desejam desaguar as águas que se represam ao lado direito do meu rosto. São como rios, projetados para fluir, em pleno embate com o espaço fechado e mudo. Os nervos do meu rosto estão à espera. 


11/05/2012

Exercício - o sonho


A mulher acorda com uma palavra entre as pálpebras. Lezíria. Vê as letras através dos cílios, dentro daquele tempo diminuto que vigora entre sono e vigília. Nem sabe exatamente se é assim que se chamam as margens transbordadas dos rios das planícies quando chove além do previsto. Ou quando chovem as águas certas no tempo certo. 

Lezíria. Há um traço de infância por entre os espaços das letras.

Deixa-se estar na cama, cortinas ainda fechadas, um azul filtrado pela cambraia branca. Dentro do seu sono há um árabe campino por trás da palavra – a galope, barrete vermelho, sua vara de tocar o gado erguida como lança preparada para a guerra. Não se lhe veem os olhos, nem a boca, transida num esgar amargo de vida mal preenchida. Atravessa o campo alagado, os cascos respingando água nos olhos entreabertos da mulher que ainda agora dormia. As margens do rio não param de transbordar, a lezíria inundada, o rio escorregando pra dentro da terra, sem força, sem peso, sem pressa. O mais fértil dos mundos debaixo d´água.

Quando as águas refluem, a terra encharcada abre-se à semente. Sua e contrai-se, a água em si que se seca, a terra magra, escura, como ossos que se desenterraram e secam ao sol. O campino toma emprestado o vigor que o rio lhe concede, e atravessa os campos cultivados com tranquilidade e orgulho, seu cavalo de cabeça baixa sem nada respingar.

A mulher vê-se atravessando a ponte de ferro por cima da lezíria e do rio. É ela, mas está magra e ossuda como a terra. Reduz a velocidade a meio, os campos alagados a seu lado virando-se sobre si mesmos para vê-la passar. A mulher freia e para. Desce e anda pela margem; a chuva que já se sente inchando o caudal do rio, as beiradas de bocas abertas à água que se anuncia. A colheita está feita e no campo só sobra o restolho amarelo queimado de sol. A mulher anda sobre ele, e ele estala sob seu peso. Fios de água escorrem por entre as hastes quebradas; molham-lhe as pernas e fazem-na voltar à ponte.

As cortinas ondulam na janela, abandonando a sombra do campino que já é passado. A mulher levanta-se, o lençol em desalinho, os olhos encharcados como lezíria em flor. Como um dia após o outro, a chuva, a semente, a colheita.

25/04/2011

O 25 de abril de Eric Blaich

Diz-me a minha tia Luisa que é sinal de velhice, isto de andar a contar histórias de quando se era pequeno, mas invariavelmente, assim que o calendário se aproxima do dia 25 de abril, acontece-me. Pior do que tudo, ganho neste dia uma capacidade de perceber ligações entre tudo e todos, e aquelas que não existiam, só porque hoje é 25 de abril, passam a existir. Entre tudo o que vivi, o que li, o que ouvi e o que senti, não tenho como separar fatos de desejos, estes de vontades, e ainda estas daquilo que podia ser mas talvez não tenha sido, sem que isso chegue realmente a importar alguma coisa. Portanto, assim que me deparo com este dia no rol dos de todos os anos, fico assim – nem um dia se passou, e todos os que vivem ao meu redor são catapultados para dentro de um enorme vaso de cravos.

Este ano em particular, decidi resgatar as fotografias das Caldas da Rainha, cidade que me acolheu no dia em que nasci. Nem preciso delas, mas é bom conferir. Fecho os olhos e vejo o prédio da biblioteca no Parque. O lago esverdeado e os cisnes nadando em suas águas tensamente paradas. Os meus dedos escorregando para dentro da água tépida e escura do começo do verão. Os imensos plátanos a abafar nas suas folhas o calor das horas quentes. O meu pai a jogar tênis. As minhas tias a prepararem uma festa na garagem da casa da minha avó, grandes flores de papel colorido e umas almofadas que ficaram no pensamento sem eu saber-lhe o porquê. Eu a tentar dar a volta por cima ao balanço enorme do pequeno parque que parecia tão grande, sem saber que existiria anos depois um Cirque Du Soleil que teria feito suspirar cada uma das minhas terminações nervosas. Algo disto as fotografias captaram, mas para o resto só tenho a minha memória de confiabilidade peculiar.

As Caldas são revolucionárias: a 16 de março do mesmo ano que marcaria a Revolução dos Cravos levantava-se o quartel da minha cidade. A Intentona das Caldas levou o Regimento de Infantaria que lá estava sediado em direção a Lisboa, disposto que estava a derrubar o Estado Novo já tão velho. Sem companhias, foi sustado às portas da capital portuguesa. Mas assim ficou: o primeiro movimento em direção à liberdade. Canhestro, talvez. Apressado e com uma noção péssima de timing – pode ser. Mas é dessa matéria que os sonhos são alimentados. Dos doidos que correm à frente para mostrarem aos outros que o caminho é possível.

Fui acordada na madrugada do dia 25 de abril de 1974, pouco depois das 4 da manhã, por uma mãe de olhos brilhantes e gravidez anunciada. “Somos livres”, dizia-me ela sabendo que eu a entendia. Não só o somos como o podemos dizer, e viver, e dar, e viver mais uma vez e assim seria até o mundo acabar. Podemos ir pelas estradas, já manhã clara, em direção ao mar e na companhia da Alice, que insistia em erguer um punho fora da janela e cantar e gritar às árvores que passavam que sim! somos livres! Indivizível, indiluível, intraduzível, inesquecível.

Com os nove anos de idade que tinha, descobri-me dois dias depois sentada no muro que rodeava a escola primária em que estudava, ocupada a ensinar aos meus colegas, cujas mães não faziam o que a minha fazia, a “Grândola Vila Morena” e o “No pasarán”, repreendida em pouco tempo pela minha professora, apavorada com o que o comunismo faria a todas aquelas apetecíveis criancinhas.

Ao longo dos meses que se seguiram, viagens ao Alentejo, a descoberta de um país na festa de encontrar-se com pernas, braços e sobretudo vozes, procurando aprender a andar e a saber como desfazer-se de anos de tristeza e devastação. Exatamente por isso, encantador, esse país. Um ano depois, na Espanha ainda franquista, meu pai seria (perigosamente) intimado a explicar o slogan que criara para oferecer o destino turístico ao país vizinho: “Portugal, tan nuevo y tan cerca”.

Devo a minha mãe, e a meu pai de outras formas, uma maneira de olhar as pessoas que se movimenta no espaço e no tempo, e lhes acolhe os erros, as fraquezas, os deslizes, as traições. Aceito-as com dificuldade, sim – mas os meus olhos olham a maneira como estão, certos de que aquilo que são muda - esconde-se, foge, amesquinha-se, endurece-se, cria limos e crostas e, de repente, descobre uma função auto-limpante e voilá: shinning as new! Inevitavelmente, olhando de longe, a vida é uma escada que sobe –tinha toda a razão a minha avó quando me dizia isso, mesmo nos momentos mais duros que lhe apresentei na ingenuidade tola da juventude. A vida é uma escada que sobe – e por isso, deduzi sozinha anos depois, mais vale aproveitar cada degrau, porque nada permite que desçamos.

Os que se vão, especialmente os que viveram muito, dizem-me a mesma coisa. Que a vida vale a pena, mas se, e apenas se, a nossa alma não ficar pequena. (Pessoa tinha razão, toda ela, só é preciso lê-lo nas duas direções e considerar também os momentos pequenos das almas, aqueles em que, por dedução, muito pouco vale a pena.)

Tudo vale a pena, se a nossa alma não se amesquinhar diante das possibilidades do mundo. Se a nossa alma permanecer inteira e íntegra e grande e sempre e a todo momento preenchida por ver o outro parte de si própria. Se a nossa alma puder ver em cada ser o pulsar da vida toda - até nas coisas mais duras, nas mais concretas e nas mais lentamente transformadas. Como as pedras que um senhor, nesta Demétria tão afastada daqueles tempos e daquele país, agrupou e espalhou ao seu redor antes de se despedir do mundo. Eric Blaich viaja nesta madrugada pelos espaços siderais, acompanhado por toda a silenciosa humanidade que conferiu ao âmago dos seres com os quais conviveu. Os seres-pedras e os seres-tintas voam a seu lado, sorriem à sua passagem, alcançam-lhe a visão do que semeou, plantou e colheu na sua longa vida. Assim como ecoa no espaço que me separa das Caldas uma revolução que me garante a certeza da liberdade do mundo, ecoam no espaço, brilhantes como límpidos cristais, as dádivas que Blaich espalhou pelos amplos caminhos da sua vida. Feliz viagem, Blaich.

Ana Vieira

(Em cima: Biblioteca do Parque D. Carlos I, nas Caldas da Rainha
Abaixo: "Rio Enz", de Eric Otto Blaich)

13/06/2010

Cherovias e alfarrobas

Com a desculpa de terem germinado as sementes de cherovia que plantei na horta há várias semanas, decidi entrar na internet à procura das suas qualidades nutricionais, apesar da pia de louça e da roupa para guardar, do corredor com as caixas que eu ia arrumar agora de manhã, a confusão de cobertores pela sala pós-noite de filmes, o almoço que em algum momento será necessário comer.

Mas meu motivo é nobre: cherovias são plantas muito nutritivas, e eu preciso de argumentos que convençam a minha família das suas virtudes, nas próximas sessões de qualquer-coisa-com-cherovia-para-comer. A minha avó deve estar feliz, lá onde estiver, vendo-me não só a querer comer cherovias, como ainda a plantá-las com bastante decisão e persistência. Nada no passado preveria semelhante futuro.

Encontrei muitas referências à tal planta – muitas fotos, todas logo dizendo, com a força que tem uma imagem, o quanto uma cherovia é uma perfeita cenoura (só que um pouco grande, talvez) mas da cor do nabo; o cheiro parece-se com o do anis, mas só de leve, e disso eu lembro bem (a foto tem seus limites), porque enjoava só de senti-la cozinhando lá longe na cozinha. Assim como me lembro do seu gosto de cenoura velha: dois detalhes que omitirei à minha família quando se der a apresentação. O que vai demorar, porque acabo de descobrir que demoram a crescer e a poder ser colhidas. Demorar significa, aqui, meses. Muitos. E talvez não as tenha plantado na melhor época do ano. Enfim, logo veremos.

A sua consistência farinhenta semelhante à da batata deve ter contribuído para o seu incrível consumo pela Europa. Foi base da alimentação da Ibéria durante séculos, e hoje faz parte daquelas características que os movimentos de valorização do particular regional desejam celebrar – já ouviram falar do Festival da Cherovia da Covilhã?! Movimentou na sua 5ª edição uma cidade inteira, com festividades que se estenderam por 4 dias, tudo em torno do um tanto desconhecido porém decantado tubérculo.

Com a chegada das batatas, as cherovias, ou xerovias, ou pastinacas (tudo nome aceitável) perderam a sua importância. Os ingleses vegan comem-nas aos quilos, dando-lhes o nome de parnsip. Graças a eles, descubro que têm um valor nutricional superior ao das cenouras, e encontro muitas e muitas receitas preparadas com o tubérculo, todas até parecendo interessantes. Acabei de abrir uma subpasta na pasta “Receitas” com todas elas, à espera do dia da colheita!

Entusiasmada com esse reviver das antigas tradições, lembro-me das alfarrobas e vou à procura de mais informações – o tanque, a louça, o almoço não se incomodam de esperar mais um pouco. A farinha de alfarroba é competente substituta do cacau; resulta da moagem das sementes que nascem nas vagens e a minha avó também a usava, porque era muito, mas muito mesmo, mais barato fazer um bolo de chocolate com alfarroba do que um bolo de chocolate com cacau. Há campos e campos de alfarrobeiras por todo o Algarve, em Portugal, e era uma diversão voltar de lá com o carro atulhado de vagens escuras e duras. E eu gostava de ficar inventando versos que tivessem essa palavra encantada (alfarroba) e outras que eram as minhas preferidas (como amplidão... lá tem palavra maior?!).

A alfarroba é na verdade bastante diferente do cacau - não tem gordura, nem glúten, nem cafeína, nem nenhum outro alcalóide, sendo portanto a planta mais-que-imperfeita para quem queira passagem para Pasárgada. Ainda assim, parece mesmo chocolate.

Mas o melhor estava por vir. Alfarroba vem do árabe al-kharub, e o que eu mais gosto é dessa vogal aspirada com cheiro de deserto. Não consigo entender porque se transformou nesse nosso “f” que a nada aspira. Dela deriva a palavra “quilate” – o leve peso de uma das suas sementes, usado pelos árabes para vender e comprar diamantes e rubis (peso, e não pureza, como indicam os quilates do ouro, o que não vem agora ao caso).

Poucas gramas de algo que se torna muito valioso: 20 sementes de alfarroba são a mesma coisa que quatro gramas de diamante. Uma parte ínfima de matéria valiosa, minúsculos cristais como os rebentos da cherovia, que agora iluminam o meu dia da cor do som aspirado das palavras árabes. Agora sim, o tanque, a louça, o almoço, os cobertores custam menos. Meu dia, que pesava poucas gramas, pesa agora muitos quilates!