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17/04/2017

A cidade escura

Apesar de ainda cedo, entro. Nada de mal poderia acontecer, minhas pernas já cansadas de esperar de pé. Nem sempre me sinto à vontade nesta cidade, apesar de ter nascido nela. Não sei se são os ambientes enfumaçados, ou as janelas que parecem nunca saberem o que é limpeza. A escuridão reina, quando (como agora) ainda é dia, e eu aflijo-me como com poucas coisas na vida. Não gosto de coisas geladas nem de pessoas frias, mas nada me incomoda mais do que situações escuras, casas mal iluminadas, lugares em que a falta de luz e claridade não incomoda ninguém.

Empurro a porta, tentando aparentar tranquilidade. Como não vejo nada de fora, não sei o que me espera lá dentro. A única coisa que me ampara nessa entrada são as notas de um piano que ouço em ondas vagas, conforme as pessoas entram e saem, deixando passar as ondas sonoras no vai-e-vem das portas. A música acalma-me. A boa música, entenda-se. Não qualquer música, e nem tocada por qualquer pessoa – tantas aulas com tão bons músicos como companhia provocaram essa deficiência em mim. Não consigo ouvir o que não seja afinado. Estar fora de tom incomoda-me quase tanto quando a escuridão.

Lembro-me de ter me perdido no mar, quando criança. Virava a cabeça, tentando perceber algo, mas o som que vinha de todos os lados era o mesmo. Nenhuma direção parecia diferente das outras, e a noite estava descendo, e eu pensei que ali, justo ali e eu ainda tão pequeno, seria meu fim.

Não foi. Ainda estou vivo, e já se passaram largas décadas.


Sento-me a uma mesa de canto. Tampo de mármore branco manchado aqui e ali. O garçom aproxima-se, pano vermelho e branco pendurado no antebraço, a cortesia em pessoa. Café, sim. Com bastante açúcar. O homem sorri-me, percebeu que sou daqui.

O copo balança em minha mão. O vidro é tão fino que temo quebrá-lo. O café escuro olha-me de dentro dele, atento às mudanças de meu rosto. Eu não expresso nada (ou assim me parece), olhando tudo e todos como se fossem reflexos de mim mesmo, se eu tivesse ficado e vivido e estudado e me apaixonado nesta cidade. O que teria sido de mim?

Talvez não fosse solteiro. Talvez visitasse a Mesquita Central todos os dias, não sei quantas vezes (se fosse um homem religioso, saberia quantas). Talvez a minha vida não tivesse sido dançada, mas outras mil coisas que poderiam ter acontecido se, e tão somente se, a minha vida tivesse ficado amarrada a esta cidade. Talvez tivesse perdido o medo do escuro. Talvez tivesse voltado a nadar no mar.

E então ela apareceu. Não a via há anos. Da porta, espreita todas as mesas. Não vai me reconhecer? Estou a ponto de levantar para indicar-lhe onde estou, fazer-lhe qualquer sinal, interromper essa agonia de não saber se eu ainda sou eu, quando ela abre um sorriso e caminha na minha direção.

Anton, quanto tempo e seus olhos enchem-se de lágrimas. Está velha e quebrada, os ossos e o casaco gastos. Não pensei que passasse necessidades. Mas também não pensei em nada. Nem sequer pensei nela quando avisaram, já em pleno voo, que não desceriam em Damasco por estar sob fogo cerrado. Só pensei que o mundo já não era um lugar seguro para se viver. Nem para se viajar. 

Assim que pousei e avisei meu irmão da mudança de planos, ele disse-me liga pra ela. Pra quem, respondi. Pra ela, pra quem mais você ligaria em Istambul? E assim liguei. No automático, sem pensar que tê-la diante dos olhos, a percepção da temperatura da pele de sua mão na minha, me colocariam diante de uma parte de mim mesmo que sem saber tentei e consegui, com tanta maestria, calar.


28/12/2015

O império do eu


Jonas voltou pra casa arreliado com a placa. Até fotografou. Ficou matutando no erro que tinha ali, e Maria dizendo deixa disso, tem erro não, vem deitar que eu faço você esquecer essa confusão, vem.

E Jonas nada. Encasquetado.

Sentou na cozinha. Acendeu a luz por cima da mesa. Passou um café.

Tentou discriminar, como lhe dizia seu primo Beto que devia fazer na vida. Botar as coisas certas de um lado, as erradas de outro. Assim, bem preto no branco e branco no preto. Ficou lembrando das palavras da placa. O café queimando na xícara de esmalte.

Meu Deus.

Já começava assim de um jeito que incomodava, essa mania das coisas serem minhas/nossas, tuas/deles. E Deus lá gosta de ser propriedade de alguém? Tomou mais um gole, apoiou a cabeça na palma da mão, deu um suspiro, olhou pra porta entreaberta do quarto.

Meu Deus.

Importante era o EU, assim nessa letra garrafal, dava pra ver de longe, maior que tudo. E do lado o motociclista, estendido ao comprido, dando mesmo a entender que era Outro, e não EU. EU estava passando por baixo da placa, aliviado que fosse Outro e não EU estatelado no asfalto. Com vida ou sem ela. A placa fazia prever o pior.

Podia ser EU.

Mas não era, e assim (mesmo Jonas) passara com alívio por baixo da placa, tomando cuidado para não ser ele o Outro na próxima esquina.

Lembrou-se do Beto. Com a mão, colocou um Deus invisível de um lado da mesa (esse é o lado certo, falou pra xícara). Do outro, o Meu. Do lado certo, o podia ser (porque tudo Deus pode, e por isso tudo podia mesmo ser, pensou mas não disse). E, do outro, Eu.

Depois trocou. Mesmo ele ficou arreliado do Eu ficar do lado do errado. Manteve Deus do lado certo, metade por teimosia, metade por fé. E trouxe o Eu pro lado dele. Deixou o podia ser do lado de lá, e levou o meu pra acompanhar. E antes mesmo de terminar o café já tinha formado uma nova frase.

Eu, Deus, podia ser meu.

Maria nem abriu os olhos quando Jonas se deitou, num abraço desmanchado em sorriso horas depois.


09/03/2014

O outro nome


Este amor não é um rio,
tem a vastidão do mar

A ti, antes que a ambos nos alcance a morte

Aqui estou, diante das águas do rio que não é o da tua aldeia. Nem sequer o rio onde gostas de nadar, a mergulhares até quase se perder o ar. Só quase: tu não gostas de perder o ar, talvez porque sejas um ser de terra, ainda que em ti se ergam as forças ígneas, e mesmo que tentes delas fugir, elas correm atrás dos teus rastros.

Mas para além disso, sabes o que vejo, eu que fico deste lado de fora d'água, quando nela submerges? Vejo os pesos do teu quotidiano, dessa tua vida que dizes monótona, de números e parafusos e pequenas retortas que antes fossem, mas não são, de alquimista. Boiam ao redor das marcas que o teu corpo deixa à superfície, que são tantas quanto as das enguias a fazerem o mesmo percurso. As tuas espáduas, já te disse há tanto tempo, são peixes alongados a passear nas tuas costas. Talvez mergulhes na água como desejas mergulhar dentro da mulher que ames.

À distância de tantas ondas, olhos postos no barco ao passar, lembro-me dos teus olhos quando fechados. E levanto-me com vagar, porque os anos já não me fazem saltar como mola do lugar em que me escolho sentar. E vou em direção ao café, este desporto nacional que tanto me agrada. Não sei bem (nunca soube) o que pedir à vida, tanto quanto não sei o que pedir agora ao empregado do café que se aproxima de mim com o guardanapo branco pousado no antebraço como uma gaivota. Olha-me solícito, e não sei se o faz de propósito, mas confunde-me o lapso de tempo que existe entre os meus desejos e o seu atendimento. Que mais é a vida do que uma sucessão aleatória de lapsos de tempo, onde eu ora sou esta pessoa sentada à mesa do café, ora o empregado de gaivotas nas mangas a atender com olhos líquidos o espaço vazio da cadeira que ocupei?

Seja a forma ou o tempo de que disponha, não deixarei de ser desta forma de gente que ora se senta à mesa, ora a atende. Esta forma de gente que não se aflige nem se desconcerta com os silêncios teus, inesperados, com as ausências tuas, que não se anunciam, com as distâncias todas que se materializam porque alguém, não importa quem, se esqueceu, e mais nada. O esquecimento é a lembrança adormecida. Esta vida, tu que talvez já tenhas começado a desfazer-te no poente, nada mais é do que o caminho que se abre entre as mãos que servem e as mãos que pedem. Eu tenho em mim dois grandes pares de mãos.

Volto para perto do rio, porque estar perto d'água é como estar perto de ti. E estar perto de ti é o pedido que me faz o coração, e eu, que nada sou a não ser aqueles que me compõem, posso escolher ter-te perto e estar-me perto. Porque estar perto de ti é ter-me perto dos meus pensamentos, como se fosses o pastor e fosses os montes e as campinas que ondulam dentro de mim, à espera. Ainda que não percorras os vales e as colinas desta vida que nos coube, porque desejas o que não temos, alimentas as paisagens que de dedos enlaçados desenhamos na superfície inventada. E são essas as paisagens que todos os dias, pontuais como a sirene do navio a atravessar o rio de banda a banda, se levantam no horizonte da manhã. E é isso o meu bastar-me, e porque me basta e como me basta, sou, basicamente, feliz.

Poderia ficar-me por aqui, e não dizer-te mais nada, porque de certa forma sei que até isto já é mais do que devia, para quem não quer ouvir nem pensar em nada. Apenas ser, e sentir, e deixar-se levar como as folhas que caem no leito do rio, e querem que se acredite que se deixam conduzir sem espreitarem o para onde vão. Mas devo ainda desafogar mais um triângulo da minha alma. Devo acrescentar ainda a esta dose imensa de exposição de carne e sangue e fluidos e densidades, uma coisa.

Penso que o seres dentro de mim feito de tantas letras faz com que esta cidade, hoje, sussurre esse "sou tua" que me embala até a noite já ser alta e já ser amanhã. Esta condição que crias, com as palavras que despertas neste lugar que só tu conheces em mim, esta condição que crias oferece-me o estares em mim, e este estar em ti que escolho mas não imponho e é agora também condição. E é essa a tua presença constante dentro dos versos das minhas linhas: uma candeia acesa, que não sabe onde os teus pés enterram a força da sua vida, mas a ilumina da mesma forma, refletida nestes meus olhos que olham o rio que não é o da tua aldeia, mas é o rio que circula nas minhas veias e, por condição escolhida e aceite, também nas tuas.

Fica bem. E lembra-te de mim.



Imagem: o Forte de São Julião da Barra, em Oeiras. Aquarela de Filipe Almeida
http://tracoslocais.blogspot.pt/
Versos em epígrafe do "Fado perdição", de Maria Duarte.

05/01/2014

As coisas simples

Alcaparras, limão e sal. Grelha e manteiga. O peixe, filés quase rosados. Ela gostava de coisas simples. Ele também. As coisas simples são as que permanecem. Comida simples que não se mascara, assumida na leveza direta de dois ou três sabores, uns dentro dos outros como pertencimentos e não encontros. Ela gostava de pertencimentos. De entradas e saídas sem precisar pensar em desocupação. As coisas simples e as coisas perfeitas. Comida inclusive.

Perdera a conta das vezes da receita. Mas lembrança não se gasta, ganha vida em baixo relevo na parede da memória. A parede da memória era a pele da sua vida. O órgão mais extenso. O de maior e inescapável memória.

Ele não soube. Não da pele, matéria virgem diante de si mesmo, mas das mãos na carícia dos limões antes de arrancá-los do pé; dos olhos entreabertos filtrando o verde das alcaparras contra-luz; dos dedos na lavagem escorregadia e fria dos filés, do deixá-los escorregar por entre os dedos e depois sossegá-los na tigela. Em cada ação, o pensamento tornado metáfora. Era ele, e não o mundo, no transcorrer do dia.

Ele não soube do tempo de repouso na mesa, dos minutos de rede no espiar das nuvens, a sua mesma pressa. Faltou-lhe saber do calor dos olhos no derretimento da manteiga. Da hora à porta. Do cabelo molhado a secar no sereno. Da lua, da noite. Dos braços apoiados na cerca primitiva de arame, o olhar nas estrelas em assombro espalhado. Do mundo todo preparado para recebê-lo, num compasso de antecipação. Podia ter sido um dia como tantos.

Mas não. Porque o tempo inaugura espaços próprios, diminui os vãos e alimenta o que circula abaixo da superfície do lugar comum da vida. E esse é o lugar tão pouco comum das coisas, ela pensou.

Isso foi momentos antes de se permitir o sonho. E amá-lo.



29/09/2013

Dia de santo

de e para Júlia

É dia de santo quando Júlia abre a porta. Dia como o de hoje, 29 de setembro, dia de cavaleiro brilhante cavalgar pelo céu azul, dia de carregar espada e vencer as demandas e todos os dragões.

Faz tempo que Júlia não aparece. Mas hoje é dia de coragem, de decisão e de proteção; hoje é dia de deixar o medo esvaziar, dia de empunhar escudo e levantar cabeça; dia de resolver contendas. E as de Júlia são antigas, e cabe-me auxiliá-la.

Por isso Júlia abre a porta. Porque é dia. As dobradiças nem rangem, deslizam sólidas para permitir-lhe passagem. Júlia atravessa o umbral, sabendo com quem, sabendo por que, sabendo para que. Como num ritual, a adega.

Ao fundo, a mesma única janela fechada, os vidros pequenos escorridos. O cheiro brilha no sol que se esgueira por entre eles. O carvalho antigo flutua invisível a meio dos raios. Lá está a escuridão da madeira de outros séculos, e a luz que os tonéis transpiram, e o chão úmido levantado em gotas agarradas aos vidros. O chão quer-se água, mas cai e é chão outra vez, rendido à gravidade. Escorrega pela superfície do vidro prisão.

O cheiro da queda junta-se ao cheiro da adega, ao cheiro da luz esgueirada, ao cheiro da janela pequena, ao cheiro da porta que se abriu lentamente para deixar Júlia passar. Júlia percebe tudo isso de olhos fechados - deixou de espantar-se com o desconhecido que não quer mostrar-se. Entra no espaço que quer fechar, e sabe sagrado, com suas duas mãos cruzadas a meio do corpo.
A adega não é quente e nem fria; é mais um mastigar acre e cálido que desperta os sentidos naquele lugar exato de seu nascimento. A luz parece pequena, mas é densa. Os poucos degraus por onde Júlia precisa descer, em direção a esse cheiro feito de luz, não ressoam. Júlia um dia pensou que fossem duros e de pedra e gastos. Mas na semi-escuridão os degraus não eram degraus, só ilusões por onde os pés passaram sem dar atenção à advertência simétrica.
Ao centro da adega, o cheiro impregna-se. Parece que o tempo não vai a lugar algum. Cada milímetro de relógio diz que nem cheiro nem tempo nem noite acabam. Mas Júlia entrou acompanhada nesse espaço-passado, e as mãos invisíveis impedem que retorne ao que é vazio. O corpo de Júlia afasta-se, o cheiro dilui-se. O lago de tristeza que vive do lado de fora anuncia-se, uma rotina de escassez. E a mulher Júlia, essa que de medida tem os seus sonhos, ainda sequer saiu da adega.
O lago está parado, como é da natureza dos lagos. É um silêncio aquático liso, todo ele à tona, a escuridão calada da profundeza das águas movendo-se por baixo, sem que ninguém a veja ou pressinta. Há um abismo estreito entre a porta da adega e o lago. Nessa parcela escavada de terra, Júlia já se sentou à espera, nesse banco encravado na parede ao lado. Sentou-se ali pelo tempo que pareceu preciso, ou desejado, ou conseguido. Hoje seus olhos passeiam entre a adega e a tristeza do lago. Todo o tempo do mundo, e até fazer de conta outra vez que o lago não é triste e a adega não é o cheiro da noite que chega em passos forrados de velhice. Fazer de conta que se pode ficar o tempo que se queira com as narinas cheias desse cheiro antigo, os olhos fechados e por trás deles a fotografia de uma noite em que fosse possível evitar enfiar os pés no lago, e sentir-lhe as ondas avançarem corpo acima. Fazer de conta que a solidão do lago é diferente da solidão da adega, e esta diferente da solidão do abismo, e esta da solidão do banco, da solidão das noites, da solidão do tempo. E fazer de conta que há um cheiro no lago, quando não há. Fazer de conta que há um cheiro inconfundível na adega vazia, quando também não há.
A vida no lago é feita da solidão silenciosa da morte homeopática.

O lago faz morada, o lago penetra e invade, líquido onde só ar é preenchimento pacífico. O ruído único é o ronco surdo de motor de barco ao longe, no lago a subir em direção à garganta. A Júlia que hoje se posta diante do lago sorri seus olhos fechados: a linha do tempo mostra-lhe a sua própria imagem em busca do ressuscitar lento do carvalho, da janela, da luz e da água que vive no chão. Tudo dentro das suas narinas, nesse mundo feito de cheiros, mas mesmo nesse dia o lago está lá, em silêncio, de mãos dadas com o abismo do lado de fora da porta.
Do lado de dentro do corpo de Júlia, essa mesma que em seu movimento penetra a adega e mergulha no lago, a luz e a escuridão medem e regateiam seus espaços. A luz tateia com seus dedos finos os veios escuros que escorrem do lago, a sombra é como enguias que serpenteiam a sua escorregadez na água lodosa. Em meio à luta silenciosa entre os habitantes dos espaços, Júlia reergue-se no tamanho da lonjura do que enxerga. 
E, nesse instante, um corpo emerge da adega e do lago em simultâneo; olha-se; abre as suas duas mãos, e nelas cada um de seus dedos, e por eles despede as águas do lago e o cheiro doce e acre da adega submersa. Ao centro do lago, as últimas bolhas de água tentam engolir o mundo do ar. Nessa hora, fresca e clara e tingida de vermelho alvorada, não é possível fazer-se de conta que a solidão é prato compartilhado, nem o tempo animal invisível, nem a vida o esperar inerte de sentido.

O lago engole a adega, e ela repousa no fundo dessa água sem cor. Os olhos de Júlia encharcam-se de limpeza, e dessa água que brota de dentro dela levanta-se sem peso o dia de amanhã.

Foto: Thyana Hacla



03/03/2013

O lago de Isaura

Este é o último dia. Isaura muda-se para um lugar menor, mais apertado. Escolheu-o pelas janelas, que são maiores e deixam entrar mais luz. Tanto faz que o espaço seja menor, mas porque é menor, e bem menor, Isaura está sentada no chão de ladrilhos do seu ainda apartamento, arrumando em caixas estreitas o que decidiu deixar. Entre todas as coisas, há aquelas que não levará, e nem ao peso da recordação que se lhes amarrou. As mãos de Isaura acariciam as superfícies. Ainda estão quentes. A garrafa vazia de café. Os lábios tatuados no copo de vidro. A sombra dos cigarros no cinzeiro queimado. E outras coisas, que não tiveram tempo de ganhar nome. Também as palavras, aquelas de natureza volátil como cheiro de nuvem, aquelas que aos poucos se apagam (se apagarão) das telas das retinas dos olhos de Isaura. Também elas precisam ser encaixotadas. Como pinturas complexas e vibrantes de consistência líquida, são palavras que se descolam das retinas. Isaura observa o seu cair diante do espelho baço do banheiro. E lembra-se da escova de dentes, e volta à sala para colocá-la junto às demais coisas. Armindo ganha forma no chão da sala, feito das coisas que se lhe encostaram. Nenhuma marca de sua música, apenas as marcas de seus dedos, e mesmo elas tão difíceis de serem recriadas.

Isaura fecha os olhos, porque toda essa água que cai diante do espelho lhe dói. Porque a garrafa de café lhe dói. Porque a caixa em que guarda o café sem abrir lhe dói. O presente sem entregar lhe dói. O cinto esquecido lhe dói. Mas a água continua sem atenção à dor, e já está o chão do apartamento cheio dela, e sobe pelas paredes como se subisse através da pele da casa de Isaura, e levasse as últimas marcas. A água escorre pela garganta de Isaura, lava-lhe o corpo por dentro. Está tudo inundado, a garganta, o sexo, os espaços entre os dedos dos pés, o corpo amarrado ao colchão. Isaura escoa-se em água e está dentro do lago. Costuma ser um sonho, isso, mas Isaura sente a pele molhada como se secasse ao sol em cima de uma pedra, ao lado do rio de onde a içam quando querem.

Há um homem, na margem desse lago, e Isaura gostaria que fosse Armindo. Mas Armindo está longe, rodeando outros lagos, e ele, diz Isaura por entre a água que a invade, ele, mesmo assim, com tudo, ainda assim - Armindo não riria, e o homem na margem ri. Mas enquanto a água lhe sobe narinas acima, Isaura sabe que ninguém a não ser Armindo saberia que esse é o lago do seu afogamento. E como o riso na margem é tudo o que ela ouve, tudo o que ela ouve é o riso de Armindo, aquele que sabe do lago. Os olhos de Isaura transbordados da água do lago, os olhos de Isaura inundados da sua própria água. Os olhos de Isaura dentro do lago - esse lago parado como é da natureza dos lagos. Uma ilusão salobra, um silêncio aquático liso, interrompido pelas notas distantes do riso do homem à margem, de Armindo à margem. 

A escuridão calada da profundeza das águas move-se por baixo, sem que ninguém a veja, mas Isaura sente-a aliciando-lhe as plantas dos pés, enredando-se como hera em suas pernas, puxando-a para baixo. Pode-se fazer de conta que o lago não é triste. Pode-se fazer de conta que se pode ficar o tempo que se quiser dentro dele, as narinas cheias do cheiro antigo que o corpo reconhece, e fechar os olhos e imaginar uma outra noite qualquer em que se consiga escapar ao enfiar os pés no lago e ser sugado por ele. Fazer de conta que a solidão do lago é diferente da solidão das outras coisas, e estas diferentes da solidão dos abismos, e esta da solidão das noites, da solidão do tempo, da solidão do abandono. E fazer de conta que há um cheiro flutuando ao de cima do lago, quando não há nada a não ser o riso do homem à margem.

E o lago penetra Isaura, ela permite-lhe passagem para dentro de seus pulmões, presença de líquido onde só o ar faz morada pacífica. E só o que se ouve é aquele ruído rouco de riso de que já se falou tanto, no lago que sobe em direção à garganta. E então a janela fechada, a luz e a água que agora vive no chão da casa de Isaura invadem as narinas, e o lago está lá, ainda, seu silêncio encrustado, de mãos dadas com o riso à margem. Tudo diluído nesse fim de apartamento, quando a dor transborda os olhos para que a alma passe.

17/05/2012

Exercício - a flor

"Júlia chega tarde, tão tarde que nem consegue desculpar-se. Em cima da sua mesa há um vaso de flores azuis e brancas, que a sua avó chamava de forget-me-not. Ela sabe que há um nome em português, mas não consegue lembrar-se.

Desconfia que quem as enviou quer que seja essa a mensagem. Que ela não o esqueça. E Júlia sabe também que o nome da flor em português fala de ouvir, e sua mente embaralha-se querendo lembrar-se, os primeiros sons da palavra brincando de esconder-se debaixo da sua língua. E Júlia sabe que não deve esquecer as palavras que ouviu, e que esse forget-me-not cantando azul em cima da sua mesa significa que aquilo tudo que ouviu, tudo aquilo que se gravou em sua mente e que não a deixa sossegar e que ele disse junto a seu rosto quando achou que ela dormia, são palavras para não esquecer, para serem guardadas dentro do seu ouvido, em algum recôncavo que as amplifique de vez em quando. Quando ela arriscar esquecer-se, por exemplo, e arriscar perder-se entre casa e trabalho, e arriscar pensar que talvez nada valha a pena e que talvez apenas o nada valha alguma coisa, pouca pouca coisa.

Júlia desvia seu olhar dos papeis à sua frente para as pequenas flores azuis. Tenta lembrar-se do nome outro, que lhe traz a Grécia mas não sabe a razão. Apenas a Grécia, o branco das colunas projetado no céu tão azul quanto o mar atrás de tudo. Mas nenhuma palavra, só imagem e azul. Por que de repente a sua memória fica tao arredia? Por que se esquece de coisas banais, tão banais como o nome de uma flor? E de repente vem-lhe uma necessidade imensa de correr até onde ele está e pedir-lhe colo. Talvez tenha sido o azul. Ou a pequenez de cada flor. Ou o sentir-se desprotegida, a pele nua diante do aço da manhã. Colo, ela pede entredentes. Baixinho, apenas o suficiente para se ouvir dizendo a si mesma a palavra, duas, três vezes. Colo, naquele sentido de ainda verbo latino, e de novo a sua avó segredando-lhe a vida por trás das palavras. Colo no sentido de cultivar, de constituir morada. No sentido de ser cultivada, preparada, o amanho da terra que são os seus ossos, o passar do arado por entre os espaços das suas costelas, o lanço da semente em suas covas, a chuva que faça brotar o plantio. E a colheita, o corte, o arrancar: colo em que ele a cultive e colo em que se abaixe para recolher os frutos quando for hora. E, tendo-a plantado e colhido, que forme sua cabana junto às dunas de areia quente, e que aí estabeleça a sua morada. Sem que os ventos a demovam nem o removam. Dentro de si, que nada precise ser aparência, apenas essa sensação de ser e pertencer, de morar em algum qualquer canto.

O chefe observa-a do outro lado da mesa. Júlia endireita-se na sua cadeira, ajeita-se diante da mesa e coloca seus fones de ouvido. Recomeça o trabalho abandonado a meio, atrasado como ela. Farejando as possibilidades de fuga, como sempre. As flores olham-na com seu olho amarelo. E a palavra surge-lhe leve e sonora dentro da boca seca, fazendo com que seus olhos se fechem como se lhe sentisse o gosto entre os dentes e as gengivas: miosótis."


14/05/2012

Exercício: as cartas

"Armindo,

Tudo isto que abres em mim, nada mais é do que pura entrega. Porque não cabe em mim tudo o que sinto, preciso entregar-te. Porque não há espaços vazios. Porque as superfícies todas que trago em mim são o teu corpo, o ar em volta é o teu hálito e eu mesma não respiro senão o líquido dos teus olhos. E porque a distância invade-me como as ondas do mar, como a areia da infância a arranhar-me as costas às margens da lagoa, a corrente na direção do mar a querer arrastar-me, e a areia a querer-me manter à margem, na margem, num destino fixo. Como se tivesse combinado algo comigo, mas eu não me lembrasse.

E eu mergulho, e eu deixo-me levar, como folha desfeita, molécula de entregas secretas expostas à água salgada. Todos os dedos que me vibram recobrem-se da tua pele, e nem grito, nem me debato, porque sou em mim o que és. E não sei como conter esta avalanche, e nem quero, e a vida que vivo acena-me de outra cada vez mais longe margem, um eco do que deixo de ser desde que as tuas mãos me erguem cavernas desde então meu refúgio. Diz-me: quem é esta que afloras e não conheço, esta pedra escavada e atravessada de sangue, granito líquido?

Tua,
Isaura"


(Tempestade de neve no mar, William Turner)

Exercício - no analista


Júlia precisa inventar-se, nos últimos tempos, várias vezes por dia. É o que diz a seu analista, nessa sessão que começa a meio de um dia de névoa que parece não se desfazer nem na água do rio que corre ao lado do prédio do consultório. Júlia levou consigo, para dentro do elevador, uma alma enevoada, com ela subiu os 6 andares nessa máquina lenta de ferro, e com ela entrou na sala estreita. Inventar-me olhos, pele, percepções do mundo que de repente não se referencia a si mesmo, diz ela. Porque abandono seguranças antigas e nesse de repente do mundo mudado, pergunto em volta onde o apoio do pé? Não sei se um começo de queda ou se um braço estendido agarrado à outra margem do abismo. Que momento é este? Não sei se corro no vazio, alimentando meus passos da esperança (a doce ilusão) de correr em terra firme, e estou prestes a cair e não sei, e de repente de novo cada vez mais longe dos galhos sobreviventes das árvores, aqueles estendidos desde a margem aos náufragos de passagem. Que momento é este?

E seus braços fazem os gestos dos galhos quando perguntam ao rio e seu rosto molhado de lágrimas é o próprio rio na passagem desse destino desconhecido. Júlia afasta o cachecol mas o frio diz-lhe que mantenha o casaco junto ao corpo. Não está frio, mas ainda assim Júlia sente frio.

E o analista intervém. Inventar no sentido que lhe confere a palavra raiz: criar a partir dos restos do que morreu. Mas Júlia diz, não reconheço com facilidade as mortes à minha volta; nem com facilidade lhes levo as velas de defunto, as ladainhas das carpideiras, o caixão, os olhos fechados, as mãos contritas unidas no centro do peito oco. Olho para dentro delas e devolvo-me um vazio, um não ser que não sei se alívio se tormento. Se não estão aqui, para onde foram, essas mortes? E um vazio de silêncio opaco estende-se entre o divã que é poltrona e a cadeira que é cadeira, onde o corpo vestido de cinza do analista a olha com compaixão.

Eu sei, diz Júlia antes de levantar-se e desistir da sessão e dizer que não sabe se voltará um dia, ou se essa noite será o seu último passado, eu sei: crio-me a partir dos restos do que morreu em mim, e nessa arqueologia da alma, vejo que outras coisas morrem, e quero correr com elas para a reciclagem, mas elas dizem-me que querem-se mortas e enterradas, e que eu obedeça o escorpião que me rege e lhes dê o que é da sua natureza. A morte. E o desenho dos seus dedos na maçaneta ainda está lá de manhã, quando o analista desce as escadas para comprar pão e leite. Quando voltar, dentro do elevador, sentirá a presença da névoa, e os menores cabelos da sua nuca se arrepiarão de frio. E a maçaneta devolverá o calor à sua mão, ao entrar na sala estreita e sentar-se na cadeira que é cadeira, vestida de cinza como ele próprio.

(Desenho de Ale Félix, que não tem nada a ver nem com a Júlia, nem com seu analista.)

12/05/2012

Dos diários III


"As coisas que estão mortas aliviam-me as próprias curvas, os abismos em que se precipitam os cada vez mais cheios rios que escorrem sem tempo por dentro das minhas veias. A cada cair, aumentam o seu caudal, o tamanho da sua força. A minha alma, suspensa na margem, está toda molhada da sede que avança.

As coisas que estão mortas são silêncio. Nada as interrompe nem altera. Jazem parecendo quietas, invisíveis debaixo do chão, sem ar, sem tempo, sem escolhas.

As coisas que estão mortas só foram, e as marcas que deixaram são tão invisíveis quanto elas, agarradas à terra debaixo do chão.

As coisas que estão mortas não se ferem, não se movem, já não são, e ainda assim sente-se a maciez do toque do que foi e permanece no que é."
(Dos "Diários de Hope", a personagem em busca de contorno)

11/05/2012

Exercício - o sonho


A mulher acorda com uma palavra entre as pálpebras. Lezíria. Vê as letras através dos cílios, dentro daquele tempo diminuto que vigora entre sono e vigília. Nem sabe exatamente se é assim que se chamam as margens transbordadas dos rios das planícies quando chove além do previsto. Ou quando chovem as águas certas no tempo certo. 

Lezíria. Há um traço de infância por entre os espaços das letras.

Deixa-se estar na cama, cortinas ainda fechadas, um azul filtrado pela cambraia branca. Dentro do seu sono há um árabe campino por trás da palavra – a galope, barrete vermelho, sua vara de tocar o gado erguida como lança preparada para a guerra. Não se lhe veem os olhos, nem a boca, transida num esgar amargo de vida mal preenchida. Atravessa o campo alagado, os cascos respingando água nos olhos entreabertos da mulher que ainda agora dormia. As margens do rio não param de transbordar, a lezíria inundada, o rio escorregando pra dentro da terra, sem força, sem peso, sem pressa. O mais fértil dos mundos debaixo d´água.

Quando as águas refluem, a terra encharcada abre-se à semente. Sua e contrai-se, a água em si que se seca, a terra magra, escura, como ossos que se desenterraram e secam ao sol. O campino toma emprestado o vigor que o rio lhe concede, e atravessa os campos cultivados com tranquilidade e orgulho, seu cavalo de cabeça baixa sem nada respingar.

A mulher vê-se atravessando a ponte de ferro por cima da lezíria e do rio. É ela, mas está magra e ossuda como a terra. Reduz a velocidade a meio, os campos alagados a seu lado virando-se sobre si mesmos para vê-la passar. A mulher freia e para. Desce e anda pela margem; a chuva que já se sente inchando o caudal do rio, as beiradas de bocas abertas à água que se anuncia. A colheita está feita e no campo só sobra o restolho amarelo queimado de sol. A mulher anda sobre ele, e ele estala sob seu peso. Fios de água escorrem por entre as hastes quebradas; molham-lhe as pernas e fazem-na voltar à ponte.

As cortinas ondulam na janela, abandonando a sombra do campino que já é passado. A mulher levanta-se, o lençol em desalinho, os olhos encharcados como lezíria em flor. Como um dia após o outro, a chuva, a semente, a colheita.

26/04/2012

Side writing

O mapa da cidade em que nasci, Caldas da Rainha, é cheio dessas encruzilhadas surpreendentes a que chamamos (ao menos, em Portugal) becos. Beco do Forno, Beco do Estragado, Beco do Arneiro, Beco da Fé, Beco da Fonte, Beco do Borralho. Não são lugares de passagem, mas de ficagem. De entrar e sair pelo mesmo lugar. Não conduzem, são caminhos sem saída. Exatamente como alguns dos textos que me sucedem a meio do processo de criar e que não vão para lugar algum, sequer pertencem. Apenas aparecem e ficam, e me deixam estar quieta a observar detalhes de uma cidade interna que se constrói aos poucos, da memória dos tempos, da vida que pulsa por baixo do que é aparência. É de becos cheios de letras que a minha escrita tem se alimentado ultimamente.

E porque a palavra beco não agrada a muitos (já percebi), decidi chamar a esse processo de side writing. Assim, em inglês, que é como pensei no assunto, e porque não consigo chegar a nenhuma tradução que me deixe satisfeita. Side writing pode ter um efeito extraordinário sobre a criação de texto. Da seguinte forma.

Imagine-se submerso num ambiente qualquer de ficção - sendo, portanto, ficcional, situa-se naquela linha nem tão imaginária entre a sanidade e a loucura. As coisas são, mas não existem. As pessoas vivem, mas ninguém ainda as vê. As situações acontecem, mas não são palpáveis. E por aí vai.

Você está, então, imerso nesse ambiente paralelo à sua vida normal, aquela que inclui (existentes, visíveis e palpáveis) filhos, companheiro, amigos, supermercado, mecânico, almoço e jantar, roupa, vassoura, escritório, vizinhos, ruas, dentista, escola e esse looongo etcétera que você já desenhou para você mesmo. Esse ambiente outro, o da ficção, que se insinua por entre as esquinas dessa vida de fato, curva a sua vida como uma bola arremessada com efeito; faz com que o movimento usual se desvie um tudo nada, mas o suficiente para transformar-se em estado de alerta, inclinando imprevisível e irremediavelmente tudo o que você vive. Gerando angústia e premência. E assim se vai, o dia inteiro perambulando de uma janela a outra, inconformadas ambas de que não se lhes preste atenção plena.

Buscando solução para viver nesses dois universos sem prejuízo a nenhum deles, tentam-se formas de organização: estabelecem-se horários, rotinas, métodos e locais para a revelação completa dessa vida quase e tão real quanto a outra. Porque é isso que o universo ficcional quer: revelar-se e ser revelado. A todo custo. E de repente, naquele minuto tão esperado e aguardado, de repente de repente de repente não há nada dentro dessa vida para ser dito. Assim que há tempo, desaparece. Há só um branco, muito bem distribuído entre mente, papel e tela. E fica a ficção prejudicada, as personagens de boca aberta sem saberem as próprias falas, as ondas do mar paradas, os ciclistas espantados porque as suas pernas não pedalam. O coração, que se queria calmo e satisfeito, num turbilhão aflito.

É nessa hora, descubro nos últimos tempos, que é preciso sair da estrada principal e procurar os viecu - as vias pequenas, os becos, os caminhos que parecem não levar a lugar algum. Por isso esses side writing, por isso sair do arquivo principal em que se sucedem os capítulos da história, e ganhar tempo com detalhes e recortes tão ínfimos quanto uma carta de amor que se escreve, a resposta que se recebe, o arrumar de uma mala, uma página de diário, cenas do cotidiano de personagens que se nos colam ao corpo como visgo.

Os textos que se produzem nessa bola de efeito que decido chamar de side writing ficam assim, quietinhos. Lado a lado com a autoestrada em que a ficção se transformou. Alimentam-na, permitem que respire, que se afaste de si mesma para perceber-se melhor. Quase como se a deitássemos no divã, e puséssemos suas personagens em fila diante da porta do analista. Esperam ajuda para serem descobertas, para entenderem as situações todas que lhes tiram véus e cortinas da frente. Cada texto que pula dos meus dedos para a página é, creio, uma sessão bem sucedida.

25/04/2012

Exercício - a mala de viagem

"Acordas-me de manhã, ainda escuro, para que faça a mala. Segredas-me ao ouvido que não esqueça de levar-te - e por isso és a primeira coisa que ponho na minha bagagem. O lugar que elejo para guardar as coisas que não quero perder, a nenhum preço.

Agasalho-te com a toalha com que me enxugarei no primeiro banho em meu destino. Uma toalha densa como as tuas mãos, para que os poros da minha pele se aqueçam na tua lembrança. Uma toalha áspera, que me arranhe e dilacere como o fazem as tuas unhas ao me arrancarem do sono.

Do outro lado, esticadas junto às tuas costas aquáticas e lisas, as roupas com que me vestirei primeiro, quentes do teu corpo que não arrefece. E depois, aqui e ali, o resto. As poucas coisas de que precisarei numa mala para ir a qualquer lugar: uma roupa para o dia, uma outra para a noite. Uma para ir dançar, o sapato que não dói, um outro que levarei para caminhar nas madrugadas da cidade aonde for. Porque sem a tua presença a meu lado meu sono é pouco, minha noite é curta, a cama expulsa-me de seus lençóis. Percorro a cidade noturna, vestida com a roupa que se confunde com as esquinas, que não desafina o coro dos seres que vivem de noite e dormem de dia. Quando a madrugada for atropelada pelo sol, troco-me por uma roupa mais leve, do tecido dos sonhos que tenho acordada.

Um perfume, talvez. Leve, como a aragem que deixas ao passares por mim na direção da porta. Como nos dias em que me acordas e me tiras da cama, dando-me banho para me despedires e para que leve em mim a marca do teu corpo todo, os teus lábios pregados a cada pequena estreiteza da minha pele.

Mas primeiro, antes de tudo, quero e deixo que me acordes. Devagar, lenta e profundamente. Mesmo com os sentidos todos já despregados, fecho os olhos e finjo dormir ainda, para que insistas no meu acordar, e fiquemos ambos inquietos, despertos, sedentos já do dia em que eu voltar.

A mala, essa, pode esperar."





24/04/2012

Exercício - a resposta

"'Ah, meu bem', lê Isaura à sombra dos ciprestes, 'que pena não te ter agora junto à saudade.' E Isaura estremece porque ouviu a própria voz, oculta pelo tronco da árvore que lhe distende as costas. O silêncio do cemitério agrada-lhe - ali, ninguém a incomodará se chorar, ninguém virá perguntar-lhe porque fecha os olhos e se apoia na árvore esguia, imóvel numa espécie superfície de dor sufocada. Não: aqui está em segura e absoluta solidão, a não ser pela carta em suas mãos.

O envelope rodopia entre seus dedos, resistindo a ser aberto. A marca dos tipos da máquina de escrever passeia-lhe pelas pontas dos dedos. Suas unhas vermelhas ressaltam a brancura do papel e num de repente a lateral se rasga, para fazer nascer a carta  qual feto de dentro dela. O papel não escorrega. Isaura abre mais. Isaura tem paciência, não há nada em seus gestos que seja irmão da inquietude, da pressa, da ânsia. Não: Isaura está calma porque o tem entre as mãos. Em forma de papel, mas ainda assim entre as mãos, qual bicho que desabrochará entre as palmas, resfolegando e arfando como se no último minuto.

Os olhos de Isaura sorriem. Sorriem do segredo tipográfico, por que não uma carta manuscrita? Por que reescrever tantas vezes à máquina, só para um resultado tão perfeito, tão homogêneo, tão equilibrado, tão contido? E seus olhos sorriem porque no fundo ela sabe. No fundo, lá num lugar onde às vezes as coisas se escondem, ela sabe. As grandes paixões: Isaura guarda-as lá, e elas escondem-se, e querem enganá-la. Dizem que nada do que sente se aproxima do sentimento - que haverá outras coisas no lugar, que nem de si mesma ela se deve fiar, que dirá dos outros, Isaura preste atenção em nós agora, olhe só para dentro, agora. Mas os olhos sorriem antes de Isaura perceber que a boca se contrai. E nem ouve essas tímidas imprecações das paixões que a invadem.

E logo o papel segreda-lhe, lá de dentro: 'Ah, Isaura, meu bem.' E a tarde será curta para o amor que se desfia de todas as letras de Armindo. Isaura vai esperar anoitecer para voltar para casa, atordoada depois de todas as linhas."

07/04/2012

Exercício: a carta de amor

"Meu querido Armindo: 

Já a noite vai longa e a lua alta, e eu não consigo aplacar o sono. Escrevo-te, para que quem sabe contigo entre a caneta e os meus dedos eu possa conciliar o cansaço do dia com este sentimento que me agita as entranhas. Sim, as entranhas. Pensaste talvez fosse o coração, a respiração, o seu arfar - mas não, são as entranhas. Onde a vida vive em mim - no oscilar do estômago, nos ácidos que fluem do pâncreas, nas enzimas a decomporem no fígado, em cada tentativa de digestão e apreensão deste remédio amargo e doce que me dás a cada vez que nos vemos.

Sim, repito-te, para que não penses teres-te enganado: amargo e doce. Amargo porque não posso ter-te em mim todos os minutos de todos os dias de toda a minha vida, e ao saber disso, ao escrevê-lo, as mãos tremem-me, diante do inevitável monstro de saudade e perda que assoma no horizonte. E doce, porque posso ter-te quando te posso ter, quando as cortinas se abrem e o quotidiano se transveste de milagre, e as tuas mãos oferecem-se às minhas assim que os nossos olhos poisam uns nos do outro. E o tempo desaparece e somos. Torna-se o doce cada vez mais doce, porque ao seu lado caminha o amargo cada vez mais amargo.

Assim como é o querer dormir e não conseguir; sentir-te as mãos invisíveis a tatearem-me os braços, as pernas, a virar-me na cama para que o teu corpo inevitável e sem peso crave a sua marca no meu. Se me deixo flutuar nesse espaço entre eu mesma e o corpo que não trazes até mim mas eu sinto, desaparece o  quarto, a cama, a janela, a cadeira onde deixei a roupa ao tirá-la - e vai-se o sono. Preciso levantar-me, enfim, para não ser engolida nessa tortura de descobrir o doce que é sentir o gosto amargo de não te ter a escorrer entre os dentes.

E por isso sento-me à escrivaninha e escrevo-te. Tantas e tantas palavras quantas caibam dentro dos dedos que abro para que lambas, para que os impregnes com o teu hálito transparente, que não consigo reproduzir sem que estejas em mim. Por isso escrevo-te, para trazer-te para dentro a cada palavra que sai de mim, olhos fincados no que lerás quando abrires este envelope ainda em repouso na tua caixa de correio. 

Agarra-o, meu amor, e cheira-o antes de o abrires, para que comeces a lembrar-te primeiro pelo cheiro. Tateia depois o papel, conforme o tires de dentro do seu invólucro pardo, como se o despisses, com as gemas mornas dos teus dedos; percebe como em cada dobra estão depostas as curvas que beijas quando enlaças o teu corpo ao meu. E, por fim, entrega-te à leitura. Mas que estejas sozinho, à meia luz, em silêncio - para que nada se interponha entre os suspiros que deixo por entre as linhas azuladas de tinta e os teus olhos. Depois, deita-te à minha espera - e dorme.

A sempre tua,
Isaura"


(A foto da foto: exposição no Museu de Arte Contemporânea do RS, em março deste ano. Sem querer, perdi a referência: nem sequer o nome da autora da intervenção bordada. E não consigo achá-la na internet... se alguém souber, pf, diga!)

26/03/2012

Dos diários II


"Agora que você não está ao meu lado, começo a desabitação da presença. Talvez para que o abandono não me doa. Que o olhar de adeus que você lançou às minhas costas, e que fez os meus músculos se retesarem, não perfure meu espaço aéreo. Qualquer som tornaria concreta a abstração tão grande deste boiar. Por isso desabito-me de você. Imóvel e em silêncio.

Vão faltar-me os nós dos seus dedos ao baterem à minha porta, mas não me interrompo no preparo da mala em que seguirá com você tudo o que nos pertence. Não é preciso que nada fique para trás. Nem um som sequer. Nem um esboço de gesto. Bastam-me as impressões gravadas por todas as paredes desta minha casa, o molde de gesso dos dias somados um ao outro, nesta casa que você habitava até eu perceber o início da desabitação. Quando a dizíamos: nossa casa. Quando assim se tornou, assim que abri a porta e deixei entrar o seu corpo esguio e oscilante, sem perguntar quase nada. Ou perguntando apenas: o que fará comigo quando se for? 

Não houve resposta, e ainda assim deixei você entrar, e o meu espaço tornou-se seu. E o tempo em que os seus passos ecoavam nas escadas de pedra da entrada de baixo fica guardado na áspera gramatura da minha memória. E eu voltarei a ouvi-los, fecharei os olhos e sentirei atrás do meu pescoço o hálito quente do toque das suas mãos. Como se elas tivessem voltado. Como se elas tivessem se reacendido no desejo que palpitará por entre as minhas veias, incendiando todo o meu corpo até chegar ao meu centro.

Dobro-me em duas nessa falta de habitação. Escorro a mobília, tão pouca, ao longo dos corredores encerados. Dobro as cortinas ali encostadas, ainda à espera da escada que nunca veio. Doo a louça ainda nas caixas, à espera de que nos sentássemos um diante do outro, as xícaras e os pires e as taças tremeluzindo nos olhares que trocamos. E de repente passa sobre mim o voo da ave que diz que a vida acaba antes de começar, mesmo quando no início tudo é já tanto. Seus olhos de azeviche, na sua dureza cruel e crua, refletem o meu rosto. Leio nele que sequer ainda começava a ser sua. E no entanto você já se foi."

(Dos diários de Hope, a personagem nascida no sul)

24/03/2012

Dos diários

"Lembra,  meu amor, de todos os lugares que já visitamos planejando viver em cada um deles, como se pudéssemos viver todas as vidas que temos reservadas em uma só? Uma urgência de querer ser tudo a meio do caminho de ida? Sem pensar em como fazer e já fazendo, num esboço de percurso a traços largos, abertos, amplos, que se constrói só de palavras e desejo e se satisfaz pleno? Você lembra, meu amor, aí onde você está agora?

Como, num dia, a moenda de farinha de madeira antiga plantada no centro de um vale ensolarado, um rio cruzando-o a meio, cão tão branco como a lua atravessando-o para vir ao nosso encontro. Como, num dia, a fábrica de rapadura no centro do sertão queimado, quase abandonada de tão à venda e por tanto tempo. Como, num dia, o boteco à beira mar, na calma das praias abandonadas. Ou a lua alta por detrás de um castelo medieval. A escarpa sanguinária projetando-se sobre o mar. O quintal de alfaces e couves verdes na beira da estrada de muros de pedra, uma senhora de preto acenando que entrássemos. O mercado barulhento a meio do deserto escuro e fundo. A casa abandonada do vigia das ondas do fim do mundo. A enseada tranquila que de repente alguém transforma em cenário de um amor improvável. Ou a dureza da pedra no chão de terra, a vida dupla. Ou a fome. O olhar da desgraça. Todos esses que se fizeram nossos lugares de morada.

Por isso a nenhuma cidade posso ocupá-la como lugar de vida imaginária sem a sua companhia.

As coisas passam por mim e ficam, demoram-se nas perguntas que me fazem, curiosas do reflexo que teriam nos seus olhos, se você aqui estivesse. Como esta feira livre, e o seu mar, as pessoas que compram, planejam, sorriem, falam quase que em outra língua, um novo acento na emoção do tempo. E vejo por dentro como só as solidões como esta que construo com a sua ausência me fazem sorrir os lábios. Ouço as perguntas que você faria, escuto as histórias que descobriria e vejo os caminhos que se abririam só porque somos tão diferentes naquilo que ouvimos, perguntamos, descobrimos. Como dois mundos que se encontraram e se juntaram sem saber mais onde começa um e termina o outro. Nem a ausência, a distância, o som mudo da voz que se cala mudam a vida."

(feira do Brique, em Porto Alegre, onde nasce a personagem)