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14/10/2013

Ouvir, conhecer, aprender


Tudo isso, numa única palavra. Discere. A raiz de disciplina. Ouvir, conhecer e aprender aplica-se a quase tudo. Quem não ouve, não conhece. Quem não conhece, não aprende. Quem não aprende, não ouve. E assim tudo outra vez de novo, porque a vida gosta do que é cíclico. E é a essas três palavrinhas brincando em círculo que nós, nos dias de hoje, damos o nome de disciplina.

Não pode ser coincidência que discere se pareça tanto com dicere, e ao mesmo tempo seja tão diferente. Dicere é a raiz do nosso verbo dizer, e regia-se pelo sentimento de lançar o que se diz de forma solene. Imagino que, antigamente, se discere mais que dicere. Ouvia-se (conhecia-se, aprendia-se) mais do que se dizia. Nesse dizer que tinha a marca do solene, devia haver mais disciplina e com ela mais consistência.

Ontem foi um dia de manhã de mata. Domingo de cachoeira. Entre gente boa. Povo luminoso. Agora que a noite já passou sobre a minha casa, seu silêncio de estrelas espreitando por entre as cortinas, a manhã parece uma anunciação. Os meus dedos correm pelas palavras, como numa urgência de que esta alma que me habita, essa aragem com ar de pluma, não se perca, não se dilua, não se vá. 

Voltei da mata com a alma leve - cansada, mas leve. Sensação de haver-se limpado boa parte do que me rodeia, do que me acompanha, do que às vezes se interpõe a meio do meu caminho. As distrações do dia a dia. A falta de sono. As presenças alheias. Tudo a água levou. Sensação também de vida aberta. De nova força. Do sorriso de Deus sobre mim. Deixou-me um brilho feito de palavra ressoando nos ouvidos: redução. Mais uma dessas palavras que sei ser preciso explorar para clarear a vida, essas palavras que ouço para poder conhecer e aprender. É essa a disciplina da minha vida.

Penso na redução ao abrir o armário da cozinha, agora cedo. Vou pensando, enquanto faço as dobradiças se movimentarem, no quanto algo que se reduz ganha condensação, mas perde fluidez e com ela liberdade. Deve ser por isso que os meus dedos encostam no vidro de vinagre balsâmico reduzido, aquele tempero agridoce para saladas. Numa materialização do que pensava, esse vinagre balsâmico reduzido que tenho nas mãos é mais doce, mais intenso, mais concentrado naquilo que dele restou, mas é também mais denso e viscoso. Escorre com lentidão, mais presa do ar e do limite do espaço do que a sua versão líquida, que flui sobre as folhas de rúcula no prato sem se lhes colar pegajosamente. Gasta-se mais devagar: a redução dura mais tempo que o líquido original. Seu gosto é mais intenso. Nada fica no prato depois de comida a salada e seu gosto permanece na boca do comensal por mais tempo.

Reduzir reduz volume, tamanho, quantidade. Elimina uma parte para que sobre o que, ao olhar, parece essencial. Para onde irá a vida líquida do vinagre em estado bruto e aquoso? O que sofre, na matéria, o efeito da redução? Volátil, espalha-se na atmosfera, funde-se ao nada e torna-se sua partícula. Irrecuperável.

Pessoas, que não são vinagre, não podem ser reduzidas. Precisam de todas as suas partes essenciais; ao contrário do que pensamos não são uma, mas várias. E precisam também de todas as outras, as não essenciais, essas que por vezes parecem tão menores, ou tão maiores, que chegam a assustar os outros.

A manhã de ontem firmou o meu espírito sem reduzi-lo. Devolveu-lhe a luz e o brilho que é dele mesmo, porque provém de onde provém. Deve ser por isso que a minha alma ficou tão leve, tão presente em si mesma. O que mais fazer, a não ser agradecer a semana que vem pela frente, pronta a ouvir, a conhecer, a aprender, sem precisar reduzir-me nem reduzir a vida ao meu redor?


Foto: Joaquim Luiz Nogueira


15/09/2011

Anatomia

O melhor de tudo é quando alguém nos inspira. Quando alguém se insinua e nos provoca. Quando alguém nos seduz e incendeia.

O texto abaixo é fruto de uma inspirada provocação sedutora assim. Ganhei-a hoje pela manhã (a inspiração), resposta a uma que mandei, que nem se pretendia tanto. Veio na forma de um pequeno filme com música. Vi, ouvi – e troquei de pele, precisei criar palavras que me reconformassem. Se alguém quiser seguir o que me fez começar, ouça e leia em voz alta, com a melodia como referência. (E se depois quiser compartilhar o que sentiu, eu vou agradecer, e meu correspondente também, porque lá de longe ele cria ondas e sincronias onde parecem apenas existir corpos paralisados.)

De Ludovido Einaudi (considere a versão sem a repetição, comece a ler a partir do 3o acorde e use fones se tiver!)


Anatomia - ou das estruturas que compoem os seres vivos

a Palavra, salvação. reelaboração diária, no desenho das letras, no som das palavras, no embate, no gargalo estreito, no despedaço. através da alma, demoradas num dos ventríloquos, translúcidas diante dos olhos fechados. enclausuram-se e abrem espaço e quando se descolam outra vez, é o mundo radiante à minha volta.

a Palavra, proteção. a minha e a alheia. as que me vêm de longe e sobrevoam os mares, as que me vêm de perto sem sobrevoar nada e estão mais longe, inalcançáveis, inacessíveis. respiro, em alívio, pela Palavra viva entre nós, seja qual for. nada outra coisa importa. um som, um ah, um brotar de sentido por entre as coisas escondidas do corpo, aquilo que o ouvido ouve e o coração estremece. e torna sozinho.

a Palavra, mergulho. no levantar das próprias cinzas, a nova Palavra. montanhas e ilhas e minha vida em silêncio. o vento e os mares e as curvas ensurdecem-me, e eis que me devolvo à Palavra. entro pelos caminhos turvos das minhas veias, faço-me água dentro do sangue, transubstancio-me naquela que sou antes disto agora. sou um estado novo.

a Palavra, reencontro. o sentido do estar, agora, sendo. as areias quebradas quando me recolhem.  passam por mim e sequer as sinto. sou a perspectiva do alto. as rochas de que sou feita são apesar do vento tempestade vulcão vivo dentro de mim, cercada. e quero fugir fugir fugir fugir nesse teclado piano, cada tecla uma nota, cada nota um som, cada som um tom a mais no meu dia eterno.

a Palavra, refúgio. as Palavras amplas, construídas no interior do oxigênio, pelas mãos que se abrem e abraçam o tejo o mar os açores a praia estendida um cravo a serra alhambra as vielas a lua um quarto de hotel o riso um parto uma avó em terço os livros os dedos uma morte - as eleições de uma vida reunida nas Palavras, ossos construtores, nas Palavras, sustentação de pé dentro do meu ser líquido indestrutível diante da tempestade. rocha em todas as línguas e formas que podem escrever-se as rochas as pedras  a beira da loucura à beira da paixão presa inconsolável da fonte que não se cala não se dá não se pede não se fecha não se dobra não se abala não renuncia nunca. a ser Palavra.

(O filme? Era este:


11/08/2011

Saraus

Na época em que eu fumava, tive um amigo que me apresentou a uns cigarrinhos curtos e finos que vinham da Índia, num pacotinho pequeno em forma de cone. Nada mais eram que uma folha de tabaco enrolada e presa com um fiozinho de linha colorida, esses "beedies" que na altura se compravam em Marrocos. Foi uma época intensa, essa. Por obra do destino, eu me via junto a um grupo de pessoas que se reunia para ler e ouvir poesia, e que, a meio dessa atmosfera densa, enfumaçada e sombria, fazia silêncios que duravam a eternidade que nos separa dos bandos de cavalos soltos pelas praias da península ibérica. Não sei do que eu mais gostava, se das palavras ou se do silêncio que ampliava o que elas diziam. Ouvia-se o riscar dos fósforos, o gorjeio das garrafas quando se esvaziam, e de repente mais uns versos de tantos poetas que, reparo, não me couberam na memória. João Cabral vem-me daquela época, em alguns poucos versos que, quando reaparecem, trazem de volta, como um presente, todos os encontros em um só, e eu agora sozinha, porque todos quase já se foram, ou porque se foram de fato, ou porque eu me fui deles e não posso mais reencontrá-los. Reinvento-os na solidão da minha mesa, cada um de seus olhares de pálpebras fechadas.

 Esse amigo, que se foi há anos, lia Lorca e Valéry como se lhe habitasse as veias, e a mim me acontecia aquilo que alguns chamam de alumbramento. Alumbravam-me as rimas, o ritmo, as palavras de escolha certeira, os que avançavam pelo que era concreto e os que se perdiam no que não era. Apareciam os surrealistas, não se discutiam nem se interpretavam. Vinham os imagéticos, os duros como pedras, os incisivos como tempestades de areia dentro dos olhos.

Ficou-me dessa época a vontade de ouvir e não dizer nada, essa substância volátil que em nossos dias é tão rara, que são os silenciamentos da alma que foi e se sabe tocada. Relendo João Cabral, descubro-lhe novos poemas, novos versos, novas imagens, percebo-lhe a tarefa imposta – a mais dura, a mais difícil. E penso em como será que sobreviveríamos se eles não estivessem em guarda para nos salvar da torpeza que é a insensibilidade humana.

Não havia convites, nem saraus a serem combinados, arranjados, preparados. Era a palavra pura que se capturava num instante para soltá-la logo a seguir. Um dia certo na semana, uma casa onde ir, e mais nada. De onde apareciam todos aqueles amantes da poesia, ou como, eu não sei – talvez combinassem, afinal, eu era menina demais para perceber o que a vida adulta demandava, tinha todo o tempo do meu mundo ao meu dispor e hoje vejo como nada disso era fácil, ainda que parecesse. Mas a lembrança ficou dessa forma, ela própria também um alumbramento, e acompanha-me nesta tarde, que prepara o derramar-se de hoje à noite, quando João Cabral nos visitar e com ele a legião de poetas que vivem do outro lado à espera de que os chamemos. Em silêncio, com cuidado, de olhos fechados e alma aberta.

18/04/2010

Entre o ver e o ouvir

Uma das vantagens da audição é poder ouvir o que dizem de nós, nesse movimento que alguns gostam de chamar de “espelhamento”, o saudável exercício de refletir, observar, pensar, especular afinal. Quando o espelho não é baço, encoberto e acinzentado pelo tempo, ou alterado pelo desgaste dos produtos que usamos, querendo deixá-lo insana e artificialmente brilhante e reluzente, é ótimo. Quando o momento de espelhar está bem determinado, e se limita àquilo que compreende a função para a qual se usa o espelho, ótimo também, e o mesmo acontece quando o olhar que desdobramos na direção do outro está permeado de amor e compaixão, na sua forma concreta que não quer despertar dores desnecessárias das quais nada sabemos. Com condições assim ideais, podemos confiar na imagem refletida como sendo, de fato, parte da nossa própria reflexão, e aproveitar-lhe todos os momentos para ir e voltar e ir uma vez mais à morada da nossa própria percepção.

Gosto por demais dessas oportunidades, até pela dedicação que, de um jeito ou de outro, pressupõe o movimento do outro especular sobre nós mesmos olhando em nossos olhos - o que nos permite, a nós os  observados, conhecer os outros através daquilo que eles dizem ver. A especulação bem formada engrandece o que especula e o especulado, e cria um entendimento profundo e verdadeiro entre almas. A reverberação dos sons que os outros escolheram para definir o que veem como nosso reflexo abre caminhos dentro de nós, suaves ou agrestes, enevoados ou luminosos.  Nem todo espelho reflete o mesmo lado de nós mesmos, e provavelmente por isso alguns nos percebam as curvas sinuosas, outros as planícies serenas, outros o mar em fúria, outros o espaço aéreo entre as falésias e as ondas, e outros ainda duas ou três dessas paisagens ao mesmo tempo, seja porque estão por perto há mais tempo, seja porque a história nos antecede a todos e alguns sabem disso sem saber e sem se lembrar.

Nesse espelhar do outro, há quem prefira não abrir os olhos, furtando-se a ter o outro refletido em seu cristalino. Pode ser que receie encontrar-se naquilo que reflita, o que pode ser um problema, e assim olha-se só para dentro de si próprio e confunde-se a própria imagem com aquilo que era suposto refletir. E outros, ainda, decidem observar o que lhes interessa e aquilo que vai ao encontro de seus desejos e propósitos e, por eles, quaisquer observações cabem e valem. Mas estes são entre nós muito raros, quase inexistentes, e não vale a pena oferecer-lhes muito do nosso tempo.

Nesses processos, pode ser que às vezes ouçamos falar do nosso avesso como se ele fosse o direito, e como se devesse transformar-se e viajar para os lugares onde outros acreditam estar o que é direito. Imagens de que gostamos, e cultivamos, aparecem repentinamente transvestidas com as peles do desequilíbrio, da instabilidade, da insatisfação, da ausência. Estivessem esses olhos abertos, talvez conseguissem ver como se mergulha até o fim dos poços da vida, e se bate o pé no fundo e se volta à tona com o diamante que com esse mergulho arriscado conseguimos abraçar e trazer lá de baixo conosco. Mas, penso comigo, talvez só nos sonhos de Alice os espelhos mergulhem sem antes garantir seu tubo de oxigênio, numa entrega que não se preocupe em dividir quantos lances de escada se vencem a cada dia. 

Imagens projetadas, e não mais refletidas, provocam o desconforto do próprio movimento. A projeção agudiza a consciência dos tentáculos por trás das superfícies espelhadas das paredes do poço em que se mergulha, estreitando-se para não deixarem passar aquilo que de fato somos. Na escuridão que essas superfícies formam, há aquilo que deixa de valer a pena, ainda que resistamos em manter acesa a luz que nos permita encontrar a saída e, com ela, o caminho que nos leve ao nosso destino.