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03/03/2011

Semiótica no dia a dia


Alguns anos atrás, tive a oportunidade de participar de várias disciplinas graças ao então doutorado em curso. Uma delas, com o prof. Izidoro Blikstein, foi-me especialmente proveitosa. O tema era a propaganda fascista, e o ponto de observação valia-se das teorias semióticas – aquelas que estudam as maneiras como o homem confere significado àquilo que o rodeia.

Temas caros a Blikstein pulavam em todas as aulas – estereótipo, preconceito, manipulação e muitos outros conceitos foram discutidos à exaustão, contrapostos, conferidos. Maioria esmagadora de alunos judeus, criavam-se discussões acaloradas, apresentavam-se argutas leituras dos pequenos sketches de propaganda nazi, assistiam-se filmes memoráveis - por exemplo, “O julgamento de Nuremberg”, versão a preto e branco com Spencer Tracy e elenco de peso, incluindo Marlene Dietrich.

Desse curso, incorporei à minha bagagem (repertório, na linguagem de Blikstein) um olhar interessado em encontrar nas mensagens à minha volta aquilo que dizem sem parecer dizer – o campo da semiótica ganhou um espaço em mim que eu desconhecia. Interessou-me particularmente o mecanismo que nos faz ser engolidos por informações que nos distorcem a visão, embaçando, delimitando, transvestindo a realidade com as cores que convêm ao emissor. Nós, os receptores, se não estamos atentos, somos abalroados e às vezes não nos recuperamos. Como não há como ter controle sobre o emissor (a não ser que sejamos nós mesmos, é claro), melhor será que se desenvolvam capacidades receptoras, a postos para nos auxiliarem a clarear aquilo que vemos. Com tempo e prática, essas capacidades (espera-se) poderiam tornar-se quase automáticas.

A web acumula uma quantidade imensa de informação, nem sempre verídica, nem sempre nas suas reais proporções. Facilmente se deturpam e propagam falsidades, e facilmente se lhes dá cunho verossímil e respeitável. A democratização da informação que proporciona demanda, por outro lado e a passos largos, o desenvolvimento daquelas capacidades receptoras e de uma forma de estado vigilante, que nos impeça de propagar involuntariamente inverdades, tendências, preconceitos.

A petição que circula na internet sobre um suposto filme, com estreia breve na América do Norte, que mostraria Jesus mantendo relações homossexuais com seus discípulos, serve de exemplo acabado. Pede o email que se assine a petição contra “Corpus Christi”, dizendo que “a omissão é uma forma de aplaudir as aberrações” e que “a paródia repugnante de Jesus” precisa ser contida, através de muitos nomes que impeçam a exibição do filme.

Com um pouco de pesquisa (por desconfiar dos termos da petição), descobre-se que nem esse filme existe, nem existiu nem anda em projeto. Existe uma peça (do mesmo autor dos livretos das peças “Ragtime” e “O beijo da mulher aranha”), e um documentário sobre ela – porém, embora tenha causado certa celeuma, apresenta um personagem de nome Joshua que seria uma “atualização” de Jesus – nasce num bairro degradado de uma cidade do Texas, onde convive com mulheres que apanham do marido, sexo pago e outros.

Essa petição circula há décadas pela web – em 1985, primeira ocorrência de que encontrei registro, acumulou um milhão de assinaturas, só nos Estados Unidos. Gerou protestos do movimento gay, assim como de entidades de defesa da liberdade de expressão. E, a cada cinco ou seis anos, reaparece.

O que me fez procurar informações foram justamente as palavras “aberração” e “repugnante” – sinais de que, no contexto, algo subjaz àquilo que o texto diz dizer. Uma leitura mais atenta alerta para a conexão imediata que se faz entre essas duas palavras e as relações homossexuais (supostamente) mantidas por Jesus com seus discípulos. São as relações homossexuais que se pretendem aberração repugnante.

Nenhum de nós está a salvo do engano, como é óbvio; dependemos do nosso repertório, o que inclui nossas experiências de vida, a religião que professamos (ou não), os livros que lemos e os filmes que vemos, as conversas que temos, as viagens que fazemos e, em muito larga escala, as escolas que frequentamos – escolas que com urgência precisam voltar-se para a construção da observação atenta, do discernimento autônomo e da capacidade de nos fortalecermos solidariamente no encontro com o outro.

24/02/2011

Distorções ideológicas


Tive um professor querido de História, muitos anos atrás, que me explicou de forma exemplar o que é ideologia. Ideologia, dizia ele, é o seguinte: você passa muitos e muitos anos (por exemplo) odiando ler, repudiando tudo o que seja matéria impressa; num certo momento, percebe a importância da leitura, e passa entusiasmado ao estatuto de leitor contumaz. Porém, o mundo lá fora, que tudo observa, permanece com o você antigo, aquele que não gostava de ler, e por mais que você diga, prove, leia!, nada convence ninguém de que você mudou, que as coisas mudaram, que agora não só você reconhece o valor e o prazer de ler, mas lê o dia inteiro. Ideologia é isso: a permanência de uma determinada forma de pensar a respeito de uma realidade que,entretanto, já mudou e não é a mesma. Hoje eu sei que ele se apoiou nas reflexões de Marilena Chauí, mas na altura essa explicação me cativou.

O pensamento ideológico tem uma missão importante, ainda que inconsciente: convencer o resto do mundo que a mudança não aconteceu. O pensamento ideológico sai às ruas enérgico para comprovar, constatar, convencer e provar o que lhe parece óbvio: você não lê e não gosta de ler. Os fins, aqui, justificam os meios, e por isso a liberdade é irrestrita para camuflar, distorcer, omitir ou corroer fatos e informações. Vale tudo, porque há uma missão em jogo, há uma luta em campo que não é racional, mas absolutamente passional. O ser humano tem problemas com a desacomodação e a mudança – por isso, mais fácil garantir que nada mudou e que podemos continuar reclamando, eternamente, das mesmas coisas. Ainda que não existam mais. A sorte é que, como agora você gosta e lê, sabe disso e não se incomoda tanto. Até entende, quem sabe se magnânimo...

Os caminhos do pensamento ideológico são muitos, e todos estamos à sua mercê. O email que circula há algum tempo pela internet, com uma redação de uma aluna da UFRJ, pretensa ganhadora de um prêmio concedido pela UNESCO entre outros 50000 estudantes, é uma prova fantástica deste assunto. Ora vejam:

O email em questão conta que Clarice-alguma-coisa, aluna do último ano do curso de Direito da UFRJ, ganhou um prêmio concedido pela UNESCO, pela sua redação sobre o fim da pobreza e da desigualdade. Segue-se o email com o texto na íntegra, e ao final solicita-se que se encaminhe adiante, e assim “aos poucos vamos acordar este Brasil!”

Convém saber que o texto da estudante não ganhou o concurso, mas foi selecionado, com outros 100 textos, para integrar uma publicação da Folha Dirigida em parceria com a UNESCO (ou vice-versa, para não me acusarem de distorção!). Foram 42.000 estudantes, e todos eles brasileiros universitários, porque o concurso, que dá a impressão de ser mundial, aconteceu apenas no Brasil. A publicação tem a data de 2006-2007, e está disponível no site http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001576/157625m.pdf.

A intenção da UNESCO não foi destacar o bom uso da língua, a clareza na exposição das ideias, a articulação equilibrada, a coesão trabalhada. Talvez, se fosse, a estudante de 26 anos tivesse uma nota razoável, apesar de não ser um texto exemplar e de, dependendo do ponto de vista, ter as qualidades necessárias a uma prova de ingresso à universidade e não as que se presumem necessárias a uma já-quase advogada.

A intenção foi justamente dar relevância a boas ideias que combatam e a pobreza e a desigualdade, conforme reza o título da publicação, e não a habilidade para “construir belas frases com palavras simples”, como elogia anonimamente quem coloca o texto em circulação. É claro que vemos e percebemos da realidade aquilo que a nossa percepção e história pessoal informa; é claro que a pluralidade de opiniões é a garantia da nossa democracia. Mas choca-me que a UNESCO consiga entender representativas da realidade brasileira as ideias expressas pela estudante, por muito irrepreensível (e não é) que seja seu texto. Se ainda penso que é uma aluna de último ano de Direito, mais me espanta e incomoda. E quando vejo que é aluna de uma universidade federal, pior ainda.

"Abundância de falta de solidariedade" e "exagero de falta de caráter" (para não passar do primeiro parágrafo) são expressões fortes demais para caracterizar um país onde precisamos de muitos e muitos dedos de muitas mãos para contar exemplos justamente do contrário. Eu sei (e por isso aquela introdução no início deste texto) que dificilmente se constrói um discurso ideologicamente livre, mas há limites, e uma estudante de último ano de Direito deveria ter construído, ao longo do seu tempo de estudo, a capacidade de olhar em volta com os olhos abertos. Seu texto está repleto de lugares comuns e chavões como aqueles que ouvimos repetidamente, que elegem o Tiririca como exemplo acabado do congresso que acaba de ser eleito, ignorando os tantos e tantos deputados capazes e honestos que povoam a Câmara. Joga-se o bebê, a água do banho e a própria bacia. Bastante fácil levantar bandeira por revoluções e reformas estruturais, sem perceber as que estão em curso, e que permitiram, inclusive, que a autora do texto chegasse a seu último ano de um curso de Direito do calibre do curso da UFRJ, "vítima" dos investimentos fantásticos que o Governo Federal fez nos últimos 8 anos no ensino superior público.

O texto de Clarice tem, no entanto, um aspecto positivo, e a sua circulação irrestrita e distorcida pela internet idem: são bons exemplos do que é preciso fazer com textos lidos no ambiente virtual. Por um lado, desconfiar, a partir do exercício do pensamento crítico e da análise da realidade, da veracidade dos fatos que veiculam, confrontá-los e confirmá-los buscando outras fontes; por outro, descobrir a imensa riqueza democrática que esse mesmo espaço virtual carrega em si, acessível por caminhos que lhe são próprios e peculiares e que precisam ser aprendidos e explorados nos últimos anos da educação básica, justamente porque são isso mesmo: básicos. As nossas salas de aula estão repletas de alunos que usam a internet e o universo virtual diariamente, de forma limitada mas muito intensa. Faltam-lhes recursos que lhes permitam dominar as ferramentas de pesquisa, faltam-lhes capacidades para poderem encontrar, nessa gigantesca caixa de Pandora, aquilo que necessitam e aquilo que ainda nem sabem que existe. Quem sabe possamos contribuir para que as próximas gerações de alunos da UFRJ consigam desenvolver textos mais articulados, maduros, reflexivos, inteligentes e bem escritos. O lucro será de todos.