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30/03/2011

Vidros lavados

Começou com a súbita vontade que me atingiu hoje, de forma extemporânea e urgente, de limpar todas as janelas de casa. Há meses que isso não acontece – nem eu tenho essa gana sintomática, nem as mesmas são limpas. O motivo é simples, ou pelo menos a desculpa: as crianças ganharam de presente canetas de escrever em vidro, e estão todas as janelas decoradas (estavam, a bem da verdade, porque agora eu já passei por elas) com flores, fadas, borboletas, gnomos, estrelas e árvores com balanços.

Mas isso já tinha semanas e mais semanas, e o que sobrava de espaço estava tomado por teias de aranha e seus eloquentes resquícios, dedadas, marcas de bolas que se desviaram do rumo pretendido. Por isso, dispus-me a tornar todas as superfícies transparentes, desejando muito ser como a minha avó, que criava vidros imperceptíveis aos meus olhos de menina. Mas eu não sou a minha avó, e já percebo daqui, de onde estou, uns trechos embaçados.

Era já noite, quando esta vontade súbita chegou. Deixei as luzes de fora todas acesas, como se fosse dia de festa, para poder ver na contraluz os lugares em que, completamente livre de outras coisas, já vive essa minha urgente transparência.

Deixei as cortinas abertas. Gosto delas; muito, até – espécie de barreira que corta o olhar do outro e me oculta quando quero. Mas hoje deixei-as abertas, o respirar da Demétria sossegado vencendo os minutos noturnos. Cortinas diminuem a intensidade com que a luz de fora atinge o dentro, desbota as cores dos tecidos, corrói as duras madeiras de lei que fazem os móveis mais queridos desta casa. Gosto de cortinas, pela proteção, o acalanto, o ninho silencioso que criam ao redor nas noites frias.

Uns meses atrás, outra súbita urgência fez-me fazer as cortinas com que sonhei meses a fio, numa influência clara da coleção de catálogos Laura Ashley herdada. Umas, ganharam pequenas flores; devolvem-me à atmosfera da sala de uma austiniana Elizabeth em pleno Hampshire. Outras, severas, num vermelho escuro de sangue coagulado, lembram-me as da sala de Miss Marple - também ela tinha uma espaçosa janela de vidros grandes na sua sala, seu posto de observação, e também à atenta velhinha as cortinas diminuíam o tamanho da sala. A diferença é que isso era para ela um problema, e para mim é solução: tornam-na do meu tamanho, escurecem as luzes que acendo e recriam o éter de que gosto quando alguém abre o piano e toca.

Isso, na sala. Na cozinha não há cortinas – não porque se engordurem, ou sujem, mas porque as janelas olham em várias direções, e, assim, quem cozinha, descasca, tempera, lava ou seca pode olhar em volta, ver o verde que rodeia e apascenta os olhos nos intervalos da vida lá de fora. Foi pensado, tudo isso, quando nos debruçamos sob a planta desta casa. Porque, quando se cozinha, dá-se vida ao que cogita dentro, num santuário silencioso e solitário. Da cadeira da cozinha onde me sento agora, vigilante às janelas limpas e com o fogão apagado, vejo todas, de todos os lugares, e sinto-me rodeada por tudo o que já foi e tudo o que agora é, duas formas da mesma coisa, numa absurda e concreta diferença.

As janelas limpas e abertas, hoje, provocam um movimento inverso, de clareza e semelhança. Quero poder olhar para elas e através delas, ver a escuridão da noite lá fora, porque já apaguei as luzes e agora são só os reflexos azulados da noite a entrarem pelas pupilas da casa. Cheiram bem, as janelas – a limão, porque o pus na água com que as lavei, e um leve traço de álcool, para o brilho que quis perseguir mas tanto fugiu que desisti.

Não sei como estarão amanhã, mas espero que tanto elas quanto eu mantenhamos o cheiro a limpo e o jeito de quem não estranha o vento que bate, o sol que reflete, a luz que atravessa. Não corro as cortinas para impedir que os vidros fiquem sozinhos do lado de fora, entre elas e a noite que avança, sem poderem ver que eu os olho e os percebo. As estrelas que vejo no céu da minha cama brilham mais por detrás do brilho do vidro. Mas não são elas, percebo, mas o próprio vidro, que afinal consegui que brilhasse como brilhava sob as mãos da minha avó.

27/07/2010

Coisas de internet

Vi-me, outro dia, em meio a uma discussão interessante sobre as virtudes e os defeitos da internet. Não abri a boca, que a discussão não era minha e eu já estava com estas linhas engatilhadas, sem poder distrair-me com o mundo lá de fora, mas fui avançando pela picada que quem conversava abriu. Lembrei-me, dessa maneira estranha que têm as coisas pensadas de se lembrarem umas das outras, que uma destas terças feiras passadas tinha sido o primeiro aniversário da morte de Mario Benedetti.

Não entendi porque raios os meus neurônios tinham fabricado essa ligação, e fiquei com essa guardada num canto da mente, lembrando-me algumas vezes dessa incógnita insistente. Como não encontrei a ponta do fio, decidi terminar o livro da Agatha Christie que comecei há dias, e finalmente chegar ao ponto em que Miss Marple, entre um tricot e outro, descobre que tudo aquilo que não fazia sentido era justamente o que dava sentido à coisa toda. Razoavelmente anestesiada pela escrita de suspense (que aliás é ótima companheira de insônias persistentes), voltou-me o Mario à mente e fui buscá-lo à estante.

A tal conversa sobre as vantagens (ou desvantagens?) da internet não tinha grande preocupação em definir coisa nenhuma, ocupada que estava em basicamente poder usufruir do direito de sentar em volta de uma mesa para conversar. O tema base era a capacidade do mundo virtual de eliminar da face da terra uma quantidade razoável de tarefas mecânicas, e com elas uma profusão de profissionais que ou se desempregaram de vez ou foram criativamente engenhosos e se inventaram noutras profissões – revisores, pastups e cia. estavam no rol dos desaparecidos. As suas vozes, ainda que imperceptíveis, foram de fato sumindo, e hoje os jornais chegam-nos sem as mãos que colavam as matérias, às quais se colavam as letrinhas minúsculas corrigindo os erros que os digitadores tinham deixado escapar e os revisores tinham apanhado antes do fim. Da mão do jornalista à do leitor, muitas outras mãos, que desapareceram e se incumbiram de outras coisas.

Sei que Benedetti em algum momento, como a quase totalidade dos escritores da sua geração e de todas as que se lhe seguiram, trabalhou como jornalista, talvez exercendo por algum tempo uma dessas profissões desaparecidas. O trabalho artesanal manual com a palavra pode ser que abrisse as portas da inspiração. Justamente por ser mecânico e por liberar o território inconsciente, muito embora qualquer manual de escrita alerte logo nas primeiras páginas que não existe tal coisa “inspiração”, “musa” e suas parentes, naquela mesma linha dos “10% de inspiração, 90% de suor”. Adélia Prado, que não tem nenhuma ligação com nada disso a não ser o fato de provavelmente, como as demais pessoas da sua geração, já ter tido a sua fase de ler Agatha Christie e ser poeta como o é Benedetti, retira do cotidiano diário (não é redundância, veja bem) a sua inspiração (é ela quem diz isso, não sou eu que nego a tal história transpirante). Dos movimentos repetidos e monótonos vêm-lhe as palavras parar às mãos, e delas desabrocham os poemas que ficaram escondidos por muitos anos entre as brumas de Divinópolis, sua cidade natal.

Adélia e Benedetti vivem dessas coisas dos seus dias. Um, com a voz uruguaia embargada nas gravações que nos legou (e que a internet, na parte vantagem, coloca à disposição), subverte a dureza das ditaduras com a suave ironia de seu espírito. Junta palavras que nos fazem apenas levantar o canto dos lábios, num esboço de sorriso cúmplice. Adélia retira os pequenos e secretos desejos da vida que parece prosaica, mas não o é. Quase podemos vê-la às margens da sua cidade, em meditação profunda sobre o sentido do seu mundo e da sua vida, numa postura tão suave de levar-se a sério mas nem tanto.

A minha cabeceira divide hoje o seu espaço entre mais um romance policial, a poesia de Benedetti, o dia a dia de Adélia, e um Hesse que insiste em me frequentar, com seus personagens atormentados pelo peso de si próprios. O que mais posso querer?