Mostrando postagens com marcador mar. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador mar. Mostrar todas as postagens

06/02/2014

Insular, verbo feminino




Há palavras que dá gosto fazer passear por dentro da boca. Repare nesta, uma das minhas preferidas. Tão grande que precisa de um parágrafo só para ela.

Insular.

Gosto de pensá-la verbo, e de pensá-la em ação dentro da minha vida. Insulam-se as coisas à minha volta, agora que escrevo. Insulam-se os meus pensamentos: rodeio-os dessa substância chamada Palavra que, além de alimento, é aquilo que não me trai. Insulam-se os meus dias, e torno-me ilha.

Paro um instante, antes de prosseguir, para dizer a palavra em voz alta. Insular: sai-me por entre os dentes, sibilante como um braço de água virgem. Demoro-me nas vogais, para que o vento dessa água possa transportar-se para dentro das palavras escritas. Tenho cada vez mais a impressão de que as palavras nascem de dentro do vento. Tenho um amigo que ouve vozes-vento. Eu insulo vozes nascidas no vento.

As ilhas não são apenas palavras de género feminino: as ilhas são seres femininos. Veem-se ao longe antes de serem tidas de perto. Um assombro, estar-se embarcado durante dias e de repente, em meio ao espelho azul que é o mar, ver surgir a Ilha como que num encantamento. Todo mar é masculino, assim como toda ilha é feminina. 

As ilhas permanecem em meio a vagas e serenos, mares de todos os tipos lambem as suas praias, nuvens de espuma marítima alçam-se na direção dos penhascos mais altos das suas encostas. Nelas, abrem-se grutas secretas, onde só os primeiros olhos conseguem chegar e ver. Há ilhas lisas e calmas: toda a sua extensão se desdobra diante dos olhos sem cautela alguma. Há ilhas escarpadas, arredias, como cervos assustados ao ouvirem o tiro distante. Há ilhas que se dobram sobre si mesmas, reinventam-se a cada estação para não sucumbirem.

E há ilhas que se reconstroem, após a invasão das ondas. Choram as suas dores internas em lugares que ser algum conhece. Curam-se em silêncios de grito engolido. Há ilhas tenazes, persistentes, teimosas. O mar cobre-as inteiramente, quase parecem desaparecer. Mas os mares sempre, sempre refluem, mais dia menos dia. Vão-se em busca do seu tamanho, conscientes da ferida que é a sua natureza aquática. As ilhas reaparecem no lugar onde sempre estiveram. São novas, e são as mesmas.

Há ilhas cheias de remansos e lugares bons para os homens aportarem nas embarcações que usam como cavalos do mar. Baías e enseadas protegidas, o sol a pino a secar os corpos que nadam através das águas salgadas, do barco à praia. Estas são as ilhas lugares de acolhimento. Abrem-se sem conhecerem o que é o pudor. Permitem a entrada àquele que deseja entrar. As suas árvores, os seus arbustos, ainda que precisem de facas que os deitem ao chão, não sabem opor resistência que os homens não possam vencer. E por isso as ilhas são às vezes tomadas, às vezes saqueadas, às vezes roubadas, às vezes invadidas, às vezes magoadas.

Mas há um território inconquistável em cada ilha. A esse território, ninguém subjuga, permanece escondido e protegido e inviolável. Está por baixo dela, na escuridão do mar, espaço único onde ilha e mar são coisa única e se misturam e convivem como se fossem cada um sozinho o mesmo lugar do outro.

Gosto de pensar nesse lado de baixo das ilhas, braços de rocha a estenderem-se numerosos até o fim absoluto da terra. Imaginá-lo cheio de reentrâncias, por onde a água do mar caminha com delicadeza e suavidade, os dedos cuidadosos estendidos na direção dos lugares mais vulneráveis, e proibidos, e sensíveis. Pode haver tempestades à tona d'água: nesse lugar do embaixo, a vida corre em outro tempo, em outro mundo, de outras formas. 

Talvez seja esse o lado mais feminino da ilha: um lado que não é lado mas absoluto todo, um lado iridiscente, a luz própria de toda ilha a iluminar o mundo sem luz do fundo do mar. E o mar, então, azula-se em tons nunca vistos, um passeio do negro mais escuro aos cerúleos, aos cianos, aos marinhos, aos cobaltos, aos cárdeos, aos safiras mais faiscantes. Surgem seres vermelhos, pequenos camarões de grandes olhos, que sorriem para esse mar transfigurado. 

A ilha revela as cores do mar. Amalgama-se às suas pernas, ao seu tronco, a cada uma das partes sem nome que o mar não nos diz ter, para que achemos que ele é apenas uma massa compacta de água, e sal. Mas não: o mar, quando descoberto dentro da luz do lado escuro da ilha, cresce em tamanho e poder, e é verdadeiramente o mar que nasceu para ser. À ilha, basta-lhe insular.


Publicado originalmente em

03/10/2013

Concha, mar e brisa

"A brisa do mar revolto dentro da concha aberta dos meus dedos": não há nada, em toda a minha vida, que me preencha com a verdade que têm as palavras. Tateiam-me por onde eu passo, oferecem-se nas mãos estendidas dos outros, que às vezes sequer percebem a oferta generosa que me fazem. É preciso que lhes agradeça.

Como concha, mar e brisa, esse presente de três palavras que acabo de receber neste instante, e tão simplesmente. Tenho treinado meus olhos para que não lacrimejem onde e quando não devem, porque as palavras fazem isso com eles, especialmente palavras úmidas, tecidas, inflamáveis; palavras que entram como avalanches dentro de mim e passeiam sem decência pelas minhas  mais internas concavidades. Despertam tatos, lugares do coração, do estômago, das veias, da pele. E os olhos querem transbordar a qualquer custo, porque é preciso deixar sair essa água toda que as palavras fazem catapultar dos meus abismos. Serão saudades da praia, da areia do mar, do calor do sol? Não, é mais fundo do que isso, são motivos que nem mesmo têm memória.

Mas não podem meus olhos lacrimejar - estou quase no final de uma aula. Se ainda fosse a meio dela, poderia até acontecer, porque haveria tempo para digerir. Prometo-me escrever assim que acabe (aqui estou em cumprimento ao prometido), para poder viajar em paz logo mais, sem ser sacudida pelas ondas desses mares que desaguam das palavras. Quero ser rio, hoje, e não mar.

Quando escrevo, automática e espontânea, "a brisa do mar revolto dentro da concha aberta dos meus dedos", não penso. São as palavras que me pensam, são as palavras que me guiam, nessa vida própria que têm e me revelam, a mim mesma, o que a tanto custo tento descobrir pensando. Não preciso, basta que escreva. E mesmo não sendo lida, e quando lida não compreendida, e quando compreendida não abraçada, as palavras permanecem, porque a sua essência é a permanência.

14/05/2012

Exercício: as cartas

"Armindo,

Tudo isto que abres em mim, nada mais é do que pura entrega. Porque não cabe em mim tudo o que sinto, preciso entregar-te. Porque não há espaços vazios. Porque as superfícies todas que trago em mim são o teu corpo, o ar em volta é o teu hálito e eu mesma não respiro senão o líquido dos teus olhos. E porque a distância invade-me como as ondas do mar, como a areia da infância a arranhar-me as costas às margens da lagoa, a corrente na direção do mar a querer arrastar-me, e a areia a querer-me manter à margem, na margem, num destino fixo. Como se tivesse combinado algo comigo, mas eu não me lembrasse.

E eu mergulho, e eu deixo-me levar, como folha desfeita, molécula de entregas secretas expostas à água salgada. Todos os dedos que me vibram recobrem-se da tua pele, e nem grito, nem me debato, porque sou em mim o que és. E não sei como conter esta avalanche, e nem quero, e a vida que vivo acena-me de outra cada vez mais longe margem, um eco do que deixo de ser desde que as tuas mãos me erguem cavernas desde então meu refúgio. Diz-me: quem é esta que afloras e não conheço, esta pedra escavada e atravessada de sangue, granito líquido?

Tua,
Isaura"


(Tempestade de neve no mar, William Turner)

26/07/2011

Ver (ou não) as caravelas


Contaram-me um destes dias que quando as primeiras caravelas chegaram à costa brasileira nem todos as perceberam na linha do horizonte; grande parte de quem já estava deste lado de cá percebeu apenas a nova e diferente ondulação das águas do grande Oceano. Daquele grupo que esperou, nas areias da praia, o primeiro desembarque, fariam parte aqueles que as descortinaram ao longe e por isso as foram receber, entre curiosos e temerosos. Ou não, que disso Caminha não nos dá notícia, e é a partir dele que recolho o longínquo acontecimento.

Aqueles que perceberam as velas e seus mastros não o fizeram por terem melhores olhos, mas maneiras particulares de verem “as formas invisíveis na distância imprecisa” – como escreve Pessoa que são os sonhos, aquilo que é sem ainda o ser. Aqueles que perceberam os ventos novos foram em sua direção, enquanto que os outros viram (apenas) no que conheciam um leve agitar-se. Mas, ao que consta, ninguém se incomodou com o que o outro via. E nem impediu que quem visse registrasse que o fazia, muito menos que disso falasse.

Os ventos acompanham-nos, vindos do mar que é o que nos separa e une – como todas as pessoas e coisas que não se limitam a apenas uma possibilidade, mas estão abertas a várias. “Bons ventos” trazem-nos alguém, “novos ventos” reacendem-nos o entusiasmo e a chama que nos mantém de pé. Vemos (e ouvimos e cheiramos e percebemos) o que é novo por um simples motivo: porque temos olhos e ouvidos e narinas e sentidos que nos permitem ver o que outros, às vezes, não veem nem ouvem nem cheiram nem percebem. Porque não podem.

A carta de Caminha é uma crônica de viagem que dá gosto ler – um precioso, aberto e humano relato do encontro dos navegadores com esses novos homens “pardos, todos nus”, que “traziam arcos com suas setas” e que assim que se “lhes fez sinal que pousassem os arcos, eles os pousaram”. Ao recebê-la, o rei de Portugal não teve dúvidas de que aquilo que lia era verdade – que aquelas pessoas e aqueles lugares, aquelas ervas e aquelas paisagens existiam e estavam agora a apenas umas letras de distância. A confiança regia a relação entre o rei e seu cronista. Ainda que lhe pedisse provas: uma pedra, um barrete de penas, outras evidências, todas elas a caminho, provavelmente junto com a própria carta de achamento.

Entre os que ouviram os relatos das grandes navegações, houve aqueles que viram (porque tinham sentidos para fazê-lo), e aqueles que se agarraram às certezas que tinham e não conseguiram ver, a não ser quando a evidência esteve ao alcance das suas mãos. Entre estes últimos, houve aqueles que encolheram os ombros e foram à sua vida, e aqueles que se levantaram indignados de que outros dissessem ver aquilo que eles não viam (ainda). Entre estes últimos, uns discutiram entre si acaloradamente durante um tempo, ocupando-se com novo assunto assim que ele chegou; outros, exigiram providências imediatas, espumando em segredo, saudosos dos bons tempos da abolida inquisição. Entre estes, uns sobreviveram, e vivem ainda entre nós. Outros, também - mas calam-se e esperam com sorrisos falsos pela melhor oportunidade de espalhar o seu medo do novo.

11/04/2010

Bairros, comunidades e recortes afins

Tenho diante de mim, na minha mesa, uma pintura a óleo, feita por uma das minhas tias, que retrata um pedaço do mar da Foz do Arelho, praia da minha infância. Mesmo sabendo disso, transponho essa imagem diante de mim para todos os lugares marítimos que me apraz, e muitas vezes o que vejo é o recorte da janela da casa da minha bisavó na ilha do Faial, nos Açores. Esse recorte serve-me de companhia, invocação mesmo, quando me perco ou preciso ausentar-me do mundo. Não que isso signifique que tenha passado muitas horas à janela dessa janela, nem é o caso, mas a situação que idealizo remete-me a momentos que, se tivessem sido vividos, com certeza seriam preciosos e únicos. Basta-me pensar neles para que de fato existam, a ponto de consolar-me da vida quando entra em estado de insípido desalento.

Recortes assim, da vida e do mundo, são matéria de todos os dias. Esse mar diante de mim não é o mar, mas sua imagem, a imagem que minha tia formou dentro de si e transportou com suas tintas e pincéis para uma tela branca. Tornou sólido o que era líquido. Eu, a  milhas náuticas de distância de tudo isso, mar, tintas, tia e praia, tomo essa solidez e, de certa forma, transformo-a no meu especial tipo de mar. Um tipo sólido de mar. Um estereótipo de mar. Inofensivo.

A formação de estereótipos, aprendi na faculdade há anos, é vital para o nosso processo de comunicação, usada todos os dias, todas as horas, a todo momento. Formamos estereótipos internos do que seja uma árvore, e assim não precisamos descrever à exaustão o conceito “árvore” quando queremos com muita simplicidade dizer a alguém “quem me dera ter uma árvore para ficar sob a sua sombra”. A árvore está lá, ainda que talvez não esteja, e ambos interlocutores podem entrecerrar os olhos e sentir a sombra da árvore inexistente que é a mesma nesse momento para os dois, sem o ser.

Sim, alguém logo poderá dizer (porque esse é o estereótipo da palavra estereótipo), “mas estereótipos criam problemas”. Certamente. Quando o meu “tipo sólido” decide além de sólido tornar-se opaco, e sobrepor-se à translucidez alheia, passa de fato ao estatuto de problema e muda de nome: chama-se preconceito ou discriminação, e age em consonância com a nova denominação. Os efeitos da comunicação de massa, com as suas características específicas de tempo, modo e forma, produzem cotidianamente estereótipos. Alguns geram preconceitos e discriminação, outros formam imagens que aos poucos se tornam verdades, aptas a distorcer a realidade. Ampla e irrestritamente. Com uns, nos identificamos; com outros, nem tanto.

Há uns anos atrás, tivemos na Demétria uma discussão mais ou menos efervescente sobre a propriedade (ou impropriedade) de nos chamarmos “bairro” ou “comunidade”. Talvez, penso eu agora, pelo crescimento exponencial do grupo, e a consequente necessidade de encontrar uma forma que pudesse definir-nos frente ao mundo. Defensores de uma e outra denominação apresentaram aqui e acolá seus motivos e razões, e eu naquela altura nem pensei em ir às origens de ambas as palavras. Graças à reportagem veiculada pela rede Bandeirantes nestes dias, sob o pomposo título de “Famílias mudam de vida e produzem o próprio alimento”, voltou-me aquela discussão à mente, basicamente porque fiquei à procura, na matéria, do que vejo da janela da minha casa. O subtítulo não me ajuda: "Em Botucatu, interior de São Paulo, uma comunidade produz o próprio alimento de forma sustentável".

Aquela discussão acabou elegendo a ideia de “bairro”. Comunidade parecia, a uns, ligada à criminalidade das favelas-valha-nos-deus, a outros dava uma sensação de bicho-grilo-ainda-nos-sessenta, a outros ainda soava estranho, como bairro será mais interessante, diziam, a nossa situação perante o município. Foram muitos argumentos de parte a parte, todos eles amparados e justificados pelo estereótipo interno que cada um, inclusive eu, formou  ao longo da vida sobre cada um desses dois conceitos feitos palavras. O fato é que bairro ficou. E agora, inusitadamente, vira notícia como “experiência comunitária”. Reconheço cada um dos atores presentes nos pouco mais de quatro minutos de matéria, e em todos reconheço parte da “culpa” por sermos o que somos. O difícil é conseguir encontrar-nos por entre as imagens. É claro que ali está uma parcela de nós, feliz ou infelizmente pequena, e o seu dia a dia, só não consigo ver que essa parcela represente, mesmo de longe, o "bairro Demétria".

De vez em quando dou umas voltas por alguns dos atuais meios alternativos, e dos mais emblemáticos como o enca, aos mais focados, como os grupos de parto humanizado e afins, a reação parece-se: abre-se uma boca de espanto e emite-se um “ah” de êxtase ao saber que vivo na Demétria. Da primeira vez achei divertido, da segunda engraçado, da terceira comecei a ficar incomodada. Provavelmente esse mito saia fortalecido com esta matéria da Band, e nós que construímos essa nação sem pátria ficaremos um pouco mais longe de vestir a roupa dos mortais comuns, que veem o Olimpo como se deve: com os pés no chão.

Mas a questão aqui era etimológica, e se eu soubesse disso antes ... Para bairro, bastam dois clicks no google e uma checagem no Geraldo Cunha aqui ao lado: deriva de bárri – o espaço “exterior” dos árabes hispânicos, o "lado de fora", que por sua vez deriva do árabe clássico barri, igual a “selvagem”. Bastam-me os árabes ibéricos, que todo exagero é ruim, inclusive o linguístico - o "lado de fora", portanto. Para comunidade, a formação é mais óbvia: uma "unidade comum", por sua vez trivial, vulgar. Ser “bairro”, ser o lado de fora; ser “comunidade”, ter qualidades comuns e triviais, daquelas que dão a noção de pertencimento.

A minha atenção é chamada (assim mesmo, na voz passiva, porque diante da televisão raramente nos chamamos a atenção, é ela que nos chama, e isto sem julgamento de valor pelo-amor-de-deus) pela constatação de que, de fato, vê-se de nós o que projetamos ao nos assumirmos bairro - o nosso lado de fora, aquilo “que dizemos que queremos ser”, como alguém desabafava neste mesmo alobairro dias atrás, e não o que de fato somos, por dentro. Falta-nos, talvez, a comum-unidade trivial e vulgar que poderíamos ter se pudéssemos de fato olhar-nos com a pluralidade, a abertura, a verdade e a falta de dogmas que as coisas triviais e comuns demandam, se é que se quer que sejam verdadeiras. A menos que já saibamos qual é a unidade que queremos seja comum às pessoas que aqui chegam, e descartemos tudo aquilo que não se encaixe na nossa visão “comum”.

Conversar com quem saiu daqui ao longo dos últimos dez anos tem me deixado um travo amargo na boca, que por falta de melhor palavra traduzo como me disseram outro dia, a respeito desse assunto mesmo: "frustração", seja lá pelos motivos que for. Em outros momentos, ouvi de muitos a palavra “desilusão”,  sentimento quase que inexorável passado o período de tempo de encantamento pelo qual todos os que vimos para cá passamos. O que é normal, comum, trivial, dadas as nossas condições excepcionais de vida, assim como é normal, comum, trivial desiludir-nos, que ninguém merece mesmo viver iludido e a desilusão no fundo é a verdadeira salvação. O que não é normal é que as imagens da band não se pareçam conosco e que as deixemos passar irrefletidamente por nós mesmos.