12/03/2014

sem título




A solidão, fera amansada, pasta amarrada debaixo do meu olhar cauteloso. Afrouxo a corda que a prende quando olha para mim com olhos enxutos, e trago-a para dentro de casa quando escava o chão com as patas duras à procura. Com ela em casa, ninguém entra nem eu saio. Torno-me indisponível a quem me costuma ter, e dedico-me só a ela. Aquece os meus pés à noite e os seus olhos são as sentinelas da minha angústia. Estás bem guardada, dorme sossegada, diz-me dessa maneira que apenas as feras amansadas em casa dizem, isto quando conseguem algo dizer. E porque são as palavras o alimento da minha quietude, e porque ela sabe e respeita essa minha condição de nascença, toda a sua aparência se transforma, e até a sua pelagem, que era hirsuta, e suja, e falha, torna-se uma seda suave e lisa, por onde a minha mão escorrega aliviada. Dormimos agarradas, a besta e eu, e, porque lhe perco o medo, ela perde os modos bestiais.

Quando amanhece, e acordamos ao mesmo tempo, e olhamo-nos uma nos olhos da outra, eu levo-a lá fora, porque já se lhe percebem à flor da pele as saudades da vida livre da corda.

E depois volto a casa. A besta amansada pasta outra vez lá fora como se fosse um ser de lã. Deixo a porta aberta e descerro as cortinas. Estou pronta para aqueles que se sabem convidados. Posso ser-lhes sua outra vez. Assim que entram, talvez queiram saber do tempo, e do espaço, e dos outros mundos que vivem dentro desta casa que tem o meu nome. 

Mas nada será dito, porque se afixou à entrada um aviso perigoso: nada pedirás, nada perguntarás. Ninguém diz quem o pôs, embora se saiba e não seja exatamente um segredo, mas um poço de águas que não têm fundo. Sabe-se porque há um brilho opaco nessas palavras poucas, a esconder a verdade por trás de um traçado simétrico. Mas também ninguém discute, porque bem estão as coisas que estão bem, e esta porta aberta, esta fera amansada e este coração a bater no peito sabem bem. 

E passamos uns e outros pelo aviso, ao entrar e ao sair, e mesmo que se percebam as leves farpas que espreitam das letras, escolhemos nada dizer, porque ao longe cavalga um ser que confia. Ouve-se o bater das ferraduras nas pedras do caminho. Pode-se levantar voo e vê-lo ao longe, no exato momento em que as quatro patas do animal então no ar. Nessa suspensão de tempo, nessa evaporação de espaço, vivem a fera, o amor e a espera. E eu entro, e decido fazer-me parte da paisagem em movimento.


Fotografia: Moreno Ribeiro

09/03/2014

O outro nome


Este amor não é um rio,
tem a vastidão do mar

A ti, antes que a ambos nos alcance a morte

Aqui estou, diante das águas do rio que não é o da tua aldeia. Nem sequer o rio onde gostas de nadar, a mergulhares até quase se perder o ar. Só quase: tu não gostas de perder o ar, talvez porque sejas um ser de terra, ainda que em ti se ergam as forças ígneas, e mesmo que tentes delas fugir, elas correm atrás dos teus rastros.

Mas para além disso, sabes o que vejo, eu que fico deste lado de fora d'água, quando nela submerges? Vejo os pesos do teu quotidiano, dessa tua vida que dizes monótona, de números e parafusos e pequenas retortas que antes fossem, mas não são, de alquimista. Boiam ao redor das marcas que o teu corpo deixa à superfície, que são tantas quanto as das enguias a fazerem o mesmo percurso. As tuas espáduas, já te disse há tanto tempo, são peixes alongados a passear nas tuas costas. Talvez mergulhes na água como desejas mergulhar dentro da mulher que ames.

À distância de tantas ondas, olhos postos no barco ao passar, lembro-me dos teus olhos quando fechados. E levanto-me com vagar, porque os anos já não me fazem saltar como mola do lugar em que me escolho sentar. E vou em direção ao café, este desporto nacional que tanto me agrada. Não sei bem (nunca soube) o que pedir à vida, tanto quanto não sei o que pedir agora ao empregado do café que se aproxima de mim com o guardanapo branco pousado no antebraço como uma gaivota. Olha-me solícito, e não sei se o faz de propósito, mas confunde-me o lapso de tempo que existe entre os meus desejos e o seu atendimento. Que mais é a vida do que uma sucessão aleatória de lapsos de tempo, onde eu ora sou esta pessoa sentada à mesa do café, ora o empregado de gaivotas nas mangas a atender com olhos líquidos o espaço vazio da cadeira que ocupei?

Seja a forma ou o tempo de que disponha, não deixarei de ser desta forma de gente que ora se senta à mesa, ora a atende. Esta forma de gente que não se aflige nem se desconcerta com os silêncios teus, inesperados, com as ausências tuas, que não se anunciam, com as distâncias todas que se materializam porque alguém, não importa quem, se esqueceu, e mais nada. O esquecimento é a lembrança adormecida. Esta vida, tu que talvez já tenhas começado a desfazer-te no poente, nada mais é do que o caminho que se abre entre as mãos que servem e as mãos que pedem. Eu tenho em mim dois grandes pares de mãos.

Volto para perto do rio, porque estar perto d'água é como estar perto de ti. E estar perto de ti é o pedido que me faz o coração, e eu, que nada sou a não ser aqueles que me compõem, posso escolher ter-te perto e estar-me perto. Porque estar perto de ti é ter-me perto dos meus pensamentos, como se fosses o pastor e fosses os montes e as campinas que ondulam dentro de mim, à espera. Ainda que não percorras os vales e as colinas desta vida que nos coube, porque desejas o que não temos, alimentas as paisagens que de dedos enlaçados desenhamos na superfície inventada. E são essas as paisagens que todos os dias, pontuais como a sirene do navio a atravessar o rio de banda a banda, se levantam no horizonte da manhã. E é isso o meu bastar-me, e porque me basta e como me basta, sou, basicamente, feliz.

Poderia ficar-me por aqui, e não dizer-te mais nada, porque de certa forma sei que até isto já é mais do que devia, para quem não quer ouvir nem pensar em nada. Apenas ser, e sentir, e deixar-se levar como as folhas que caem no leito do rio, e querem que se acredite que se deixam conduzir sem espreitarem o para onde vão. Mas devo ainda desafogar mais um triângulo da minha alma. Devo acrescentar ainda a esta dose imensa de exposição de carne e sangue e fluidos e densidades, uma coisa.

Penso que o seres dentro de mim feito de tantas letras faz com que esta cidade, hoje, sussurre esse "sou tua" que me embala até a noite já ser alta e já ser amanhã. Esta condição que crias, com as palavras que despertas neste lugar que só tu conheces em mim, esta condição que crias oferece-me o estares em mim, e este estar em ti que escolho mas não imponho e é agora também condição. E é essa a tua presença constante dentro dos versos das minhas linhas: uma candeia acesa, que não sabe onde os teus pés enterram a força da sua vida, mas a ilumina da mesma forma, refletida nestes meus olhos que olham o rio que não é o da tua aldeia, mas é o rio que circula nas minhas veias e, por condição escolhida e aceite, também nas tuas.

Fica bem. E lembra-te de mim.



Imagem: o Forte de São Julião da Barra, em Oeiras. Aquarela de Filipe Almeida
http://tracoslocais.blogspot.pt/
Versos em epígrafe do "Fado perdição", de Maria Duarte.

O amor é uma companhia

O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.


Lisboa amanhece neste 9 de março fria e cinzenta. E ainda assim, a luz impera. De onde tira esta cidade a luz com que sempre amanhece? Saio de casa disposta a olhar com olhos de ver, ainda com a noite de ontem fresca dentro de mim.

Ouvi ontem, como verdade já sabida, que nada é acaso. A mola propulsora de Fernando Pessoa. E de Alberto Caeiro. E de todos esses irmãos que ele se criou para não ser sozinho, e ser o que todos provavelmente somos: muitos dentro de um mesmo envelope.

Fez ontem cem anos do dia triunfal da vida de Fernando Pessoa. E agora que já não é ontem, mas hoje, fecho os olhos. Estou outra vez, e ainda frescos os sentidos porque foi apenas ontem, dentro da casa onde o poeta viveu por 15 anos. Dentro do quarto que habitou, onde escreveu, onde dormiu, onde se postou à janela para ver a rua lá embaixo. Talvez seja esta a mais alta janela da sua casa, e debruço-me nela para ficar mais perto dele. Fico diante da sua cama, encosto-me a ela, sento-me nela. Seu chapéu jaz aí, displicente, como se ele tivesse acabado de sair e o tivesse esquecido, ou como se tivesse acabado de chegar e o tivesse atirado para cima da colcha amarela de chita de Alcobaça. Também está aqui, na parede entre as janelas, a cómoda alta onde esteve, nesse dia triunfal que hoje faz cem anos, um guardador de rebanhos que nunca os guardou, mas é como se os tivesse guardado, porque a sua alma é um pastor. E tanto faz se são fatos ou ficções, todas aquelas linhas que escreveu a Casais Monteiro tantos anos depois. Nesta noite, que porque nada é acaso posso chamar de sagrada, leem-se os poemas deste pastor, depois de sabermos que quem lhes deu vida dedicou-se a pensar muito mais do que este, que agora ouvimos. Desfiam-se as palavras que não são palavras, mas campinas, ventos, ilusões de letras a marcar a substância concreta do mundo. Em silêncio dentro deste quarto, nós que aqui estamos porque nada é acaso, ouvimos o que foi escrito, e a voz melodiosa da Natália Luíza que os lê, sabe o que está a fazer. Ou talvez não saiba, mas faz como se soubesse. O que me leva a ter certeza de que sim: sabe. Dessa maneira caeira de saberem-se as coisas, que é sabê-las porque sentidas, e não porque sabidas.

E aprendi muitas coisas ontem, desse Fernando Pessoa astrólogo que disse a si mesmo sê vários, mas sê inteiro, e que o Paulo Cardoso apresenta tão leve, tão fácil, tão evidentemente. E por querer ser inteiro não podendo ser único, porque somos tudo menos únicos, fingir ser vários para poder ser autêntico. Como nós, mas ao contrário, a fingirmos sermos um só para não nos perdermos entre os vários que vivem dentro de nós - ou para que os outros não se percam nesses vários que palpitam em nós. É mais provável a segunda opção.

A contraparte de dizermos "nada é acaso" está em "tudo é simbólico". E simbólico é que nesse 8 de março estivéssemos nós que estávamos. E as coisas que aprendi, dessa maneira de se aprenderem as coisas que é sentindo-as sem as pensar, são um tropel de cavalos que agora se me impacientam na alma. Não aceitam rédeas nem sela, e nem sequer que eu me aproxime (ainda) para acariciar-lhes as crinas, olhá-los nos olhos, passar-lhes a mão pela maciez forte dos seus músculos lisos. Só posso admirá-los, assim de longe como se olham as paisagens mais secretas da alma. Assim de perto como olho agora, neste instante que se acaba assim que o escrevo, o encontro entre o rio e o mar. E assim como agora neste instante, porque nada é por acaso e tudo é definitivamente simbólico, entrego à fusão destes dois seres, rio e mar, a marulhar conjuras dentro da minha garganta calada, papeis dobrados em quatro, que as ondas vêm receber, com umas mãos que lembram o fado que me estenderam ao nascer. Agora, neste instante, sinto em mim que o amor é (não posso contestar) uma companhia, e não estou só, porque nunca estou sozinha.


Excerto de "O amor é uma companhia", Alberto Caeiro in "O pastor amoroso".
Fotografia: Ana Mata
Palestra da Paulo Cardoso e leitura dos poemas de "O guardador de rebanhos" na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa.

Na cn

Assim como





Fez ontem
Ontem t
Lis

08/03/2014

A cidade feita de luz

Na cidade mais bonita do mundo há uma quantidade assombrosa de recantos que é preciso explorar. Porque pode-se passar à porta, ou diante dela, e achar-se interessante. Mas se não se entra, com a paciência e o sossego característicos desta capital, e uma dose de entusiasmo explorador marítimo, perde-se. E assombro perdido é assombro perdido.

Praça da Figueira, número 7. Vimos desde o Cais do Sodré à procura do lugar. Antes, é preciso comer as últimas castanhas assadas da estação, beber um café que nunca se bebe no Martinho da Arcada, os dedos encostados ao mármore que viu nascer quem sabe um guardador de rebanhos, e vir pela Rua da Prata acima. É preciso desviar das tentações feitas de bustos de Camões e Camilos Castelos Brancos, dos pequenos Afonsos Henriques com vestes templárias espalhados pelas lojas numa súbita paixão nacional pelo primeiro rei de Portugal. Atravessamos a praça que já foi mercado e aterrissamos em pleno Hospital das Bonecas. O burburinho da cidade submerge no lado de fora.

Aqui, a vida é brincadeira. Brincadeira a sério, como são as verdadeiras. Inaugurada em 1830, a Ervanária Portuguesa da dona Carlota em pouco tempo começou a receber as coitadas das bonecas acidentadas das miúdas que por lá passavam ou por ali viviam. Dizem que vinham com as mães e as avós ao mercado, e ficavam encantadas com as roupas de boneca que a jeitosa da dona Carlota fazia, sentadinha à porta da ervanária, entre um cliente que queria tília e outro que perguntava se havia lúcia lima e o outro ainda que chegava apressado para buscar a sua encomenda de amieiro negro. São lindos, os nomes das ervas.

Hoje é a Marta que está ao balcão. Trago a Rosinha, que coitada perdeu a cabeça. Boneca mais querida de casa, prometi que a traria ao hospital. A expectativa é grande. A Marta abana a cabeça: "Coitadinha...". Olha para mim com um olhar compungido (enquanto o filho adulto ao lado não sabe se ri se chora) e diz: "Olhe: ela vai precisar ficar internada". Pergunto-lhe se vai demorar muito tempo e ela diz-me espantada: "Mas, minha senhora... isto é um caso muito sério! Há de ficar aqui conosco por pelo menos um mês!". 

Fico a pensar na coitada da minha filha que acredita que os achaques de boneca são mais fáceis de tratar que os de gente. Engana-se, e nem sabe disso. Especialmente quando se perde a cabeça, e o mundo obviamente destaca-se da sua ordem costumeira, tanto faz se bonecas, se gente. Não é coisa de poucos dias, e não se tem certeza de como se ficará. Digo-lhe que está bem, o que é que se há de fazer, são as coisas da vida, veja lá se conseguem dar-lhe um jeito ao cabelo, já agora... E ela concorda: "Realmente, este cabelo está a precisar passar por uns cuidaditos... Deixe estar que há de ficar como melhor puder ser!", e começa a preencher a ficha da doente. Ao finalizar (precisa de todos os dados, e eu sequer sei o tipo sanguíneo da Rosinha...) instrui-nos: "Vejam, aqui está o telefone (aponta um número no papel), podem telefonar a informarem-se como ela está. Só é preciso que digam o número da cama"  - e aponta outro número, que qualquer incauto chamaria de ordem de serviço, para logo depois ser expulso dali aos pontapés. A Rosinha, que jazia deitada de olhos fechados em cima do balcão, seguiu para a enfermaria, mas não sem antes se despedir de mim, que entretanto quase me vi a encher os olhos de lágrimas. Até porque o respeito pela internação fez esperar os outros clientes da loja, donos da tal paciência, por quase trinta e cinco minutos. Sem queixas nem perguntas, num silêncio que parecia remetê-los às próprias agruras com a saúde dos entes queridos.

Saímos de lá com a alma a precisar de ajuda. Viramos à direita, e outra vez à direita, e chegamos às Portas de Santo Antão, de onde a "Ginja sem rival", da sua minúscula porta, firme e forte desde 1870, nos chamou sem precisar de insistência. Gosto deste gosto lisboeta de gostar das coisas velhas, satisfazer-se e orgulhar-se delas, e mantê-las iguais e idênticas entre um século e outro. O pequeno copo ali à porta, em pé e ao sol, restabeleceu as forças, indo buscar lá aos fundos da memória a sensação de outras épocas.

E continuamos nas andanças. Para esvaziar a cabeça dos problemas das demais cabeças, sejam elas de pessoas, sejam elas de bonecas. Não há, afinal, grandes diferenças, e o que é preciso é paciência, sossego e uma cidade como esta, cheia de luz, de pedras e de esquinas. Uma cidade a ensinar-nos que, para encontrar a primeira, basta aceitar as segundas, e confiar que as terceiras surgirão a cada momento, dispostas a levar-nos exatamente ao lugar para onde devemos ir.