07/04/2012

Exercício: a carta de amor

"Meu querido Armindo: 

Já a noite vai longa e a lua alta, e eu não consigo aplacar o sono. Escrevo-te, para que quem sabe contigo entre a caneta e os meus dedos eu possa conciliar o cansaço do dia com este sentimento que me agita as entranhas. Sim, as entranhas. Pensaste talvez fosse o coração, a respiração, o seu arfar - mas não, são as entranhas. Onde a vida vive em mim - no oscilar do estômago, nos ácidos que fluem do pâncreas, nas enzimas a decomporem no fígado, em cada tentativa de digestão e apreensão deste remédio amargo e doce que me dás a cada vez que nos vemos.

Sim, repito-te, para que não penses teres-te enganado: amargo e doce. Amargo porque não posso ter-te em mim todos os minutos de todos os dias de toda a minha vida, e ao saber disso, ao escrevê-lo, as mãos tremem-me, diante do inevitável monstro de saudade e perda que assoma no horizonte. E doce, porque posso ter-te quando te posso ter, quando as cortinas se abrem e o quotidiano se transveste de milagre, e as tuas mãos oferecem-se às minhas assim que os nossos olhos poisam uns nos do outro. E o tempo desaparece e somos. Torna-se o doce cada vez mais doce, porque ao seu lado caminha o amargo cada vez mais amargo.

Assim como é o querer dormir e não conseguir; sentir-te as mãos invisíveis a tatearem-me os braços, as pernas, a virar-me na cama para que o teu corpo inevitável e sem peso crave a sua marca no meu. Se me deixo flutuar nesse espaço entre eu mesma e o corpo que não trazes até mim mas eu sinto, desaparece o  quarto, a cama, a janela, a cadeira onde deixei a roupa ao tirá-la - e vai-se o sono. Preciso levantar-me, enfim, para não ser engolida nessa tortura de descobrir o doce que é sentir o gosto amargo de não te ter a escorrer entre os dentes.

E por isso sento-me à escrivaninha e escrevo-te. Tantas e tantas palavras quantas caibam dentro dos dedos que abro para que lambas, para que os impregnes com o teu hálito transparente, que não consigo reproduzir sem que estejas em mim. Por isso escrevo-te, para trazer-te para dentro a cada palavra que sai de mim, olhos fincados no que lerás quando abrires este envelope ainda em repouso na tua caixa de correio. 

Agarra-o, meu amor, e cheira-o antes de o abrires, para que comeces a lembrar-te primeiro pelo cheiro. Tateia depois o papel, conforme o tires de dentro do seu invólucro pardo, como se o despisses, com as gemas mornas dos teus dedos; percebe como em cada dobra estão depostas as curvas que beijas quando enlaças o teu corpo ao meu. E, por fim, entrega-te à leitura. Mas que estejas sozinho, à meia luz, em silêncio - para que nada se interponha entre os suspiros que deixo por entre as linhas azuladas de tinta e os teus olhos. Depois, deita-te à minha espera - e dorme.

A sempre tua,
Isaura"


(A foto da foto: exposição no Museu de Arte Contemporânea do RS, em março deste ano. Sem querer, perdi a referência: nem sequer o nome da autora da intervenção bordada. E não consigo achá-la na internet... se alguém souber, pf, diga!)

7 comentários:

  1. Ana, sua carta de amor me emocionou, sim!, pois vc traduziu a lindeza do amar, do sentir o amar, poeta amada q iluminou minha solidão nessa madrugada pascal.
    saudades e bjs!
    Andrea Morato

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  2. Aninha, poema fantástico!
    Abraço grande!
    Cumpadre Rodrigo :-)

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  3. coisa linda....suspiros de entranhas reviradas.......

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  4. Que intenso!
    Beijos, Cici

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  5. Ana Querida, que riqueza! Escreve, escreve mais e sempre! Sal-da-de-ti.
    Donana

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  6. Não é fantástico exercitar-se? Bravo Ana!

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  7. Que lindo, Ana!
    Antô.

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