31/03/2010

Aos medos, comê-los

As Berlengas são umas ilhas minúsculas no horizonte da praia que me viu nascer e entrar no mar pela primeira vez. Em dias claros, veem-se com quase nitidez ao longe – estão distantes o suficiente para inspirarem sonhos suspensos em qualquer criança, mas não tanto que as milhas não se possam vencer em uma lancha de médio porte. Povoaram o meu imaginário durante muitos anos, enquanto não lhes pus os pés em cima, e continuaram a fazê-lo depois de as conhecer, por causa do forte que lá existe e da própria paisagem que ali parece ter se deslocado.

Minúsculas, em termos: uma delas chega a ser habitada, tem um farol e até uma fortaleza que hoje é roteiro turístico. Imagino que tenha uma importância biológica razoável, já que descubro que são reserva natural já há muitos anos, sem que eu o soubesse.

Lembrei-me delas porque pus-me hoje a cozinhar um polvo. Venci nestas últimas semanas o horror infantil que tinha a esse bicho cheio de ventosas e braços desarticulados entre si. E as Berlengas estão cheias deles, horrorizando-me com os seus movimentos sinuosos, esgueirando-se por entre as pedras e escondendo-se nas muitas cavernas que esse micro arquipélago tem. São pequenos e escuros, os polvos das Berlengas, e este que comprei, além de claro (provavelmente porque suas células não excretem mais o que antes o camuflava e escurecia), é razoavelmente grande – 1,5 kg, que é como manda a receita.

Meu horror foi vencido à força de garfo. Tive que comer, porque foi uma oferta e já se vê que oferta não se recusa, e como já tenho idade suficiente, não entrei em pânico nem em agonia, e até me dispus a apreciar o que todos me dizem, há anos sem conta, ser uma iguaria. Os que já se foram ficarão satisfeitos se me puderem ver agora, avental vestido, tesoura de corte em punho,a avançar em direção a esse cefalópode pronto a ser temperado e cozido e comido. Além de vencer o medo, aprendi a cozinhar o dito cujo, de uma dessas maneiras simples que tem a cozinha portuguesa, em que não são precisas medidas porque tudo é resumidamente “q.b.” (ou seja, quanto baste) ou “uma pitada”. Ainda bem que estou sozinha em casa, porque a minha intenção é preparar o jantar com carinho e dedicação, pensando nos convidados que aqui estarão logo mais, e desta vez preciso realmente de quietude e solidão absolutas, porque sei que mexo num medo ancestral que me vive dentro. Não sei o que Freud diria, mas acabar com ele desta forma parece bastante convincente. Fico pensando nos outros medos, nos dissabores da vida, e creio que tentarei fazer o mesmo com alguns deles: olhá-los de frente, mergulhá-los na água a ferver, passá-los pelas brasas de um carvão incandescente, espetar-lhes o garfo e mastigar até o fim cada uma das suas fibras rijas. Provavelmente resistirão, meus dentes se fartarão, mas, como a este polvo, quero inseri-los na minha própria carne, fazer-me de cada uma das suas moléculas.

Os convidados chegam e sentam-se. Polvo não é um prato comum, e eu espero que não sejam apenas atenciosos e se sirvam só para não me afligir. Mas não – repetem uma e outra vez, e assim, de vez, o meu medo aos polvos dissipa-se. Dividi-o com os meus amigos, contei-lhes o que se passa, e eles respondem ajudando-me nessa orgia atávica em que se mastigam todos os pavores temperados. Como já imaginava, dormi muito melhor esta noite, desacompanhada de pesadelos.

Um comentário:

  1. Ai meu Deus,

    Se eu soubesse também teria mastigado, junto com o polvo (que aliás estava soberbo), meus pavores, que não são poucos e berram sem cessar suas presenças indesejáveis e eu, como sempre, finjo que não os vejo.

    De outra vez eu vou cozinhar o polvo e minhas amarguras junto com ele. Devoro-as todas de uma vez por todas.

    Iva

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