02/04/2010

Oliveiras

Encontrei uma oliveira, num destes dias, das mais velhas e antigas a que já prestei atenção. Tenho dado comigo com apreço mais do que o normal por tudo aquilo que é não obviamente velho. Sei que esta oliveira em questão é antiga pelo estado do seu tronco, retorcido e rasgado, em processo claro de duplicação, fato que às vezes acontece às oliveiras, que entretanto sobrevivem graças às suas tenazes raízes. As torções do tronco, que conectam as oliveiras ao eixo de rotação da terra, encaram tempos que mais parecem eternidades como se fosse o cotidiano do dia a dia. E a separação em si próprias conclui estes milagres chamados oliveiras.


As almas podem ser como as oliveiras quando se separam. Podem torcer-se sobre si próprias, desfazer-se por dentro sem queixar-se, rasgarem-se por fora quando já quase nada parece existir internamente, e assim separarem-se em duas metades, troncos abertos em chaga seca, ligados por raízes que quem vê de fora sequer desconfia.


Com um tempo feito de muitos tempos, distanciam-se estas duas partes uma da outra, mães de si próprias nessa dupla significação que só o passar dos anos dará sentido. Afastam-se, dirigem-se para o vazio do campo em volta, pressentem os metros que construirão e galgarão entre si nos dias que virão.


Almas que são oliveiras criam-se em silêncio. Ninguém dá por isso. Não há caminhantes que à sua sombra queiram refrescar-se, encostados aos seus troncos em mutação. Estão sozinhas num mundo que sabem não lhes pertencer. Toda a sua magia passa desapercebida, porque andam sem serem vistas à flor da terra.


Almas oliveiras dão frutos que sem cuidados são amargos. Precisam ser colhidas, com um afeto às vezes enérgico, feito de sacudidelas que lhes derrubem as azeitonas, e assim dão-se generosas e amplas. Almas oliveiras vivem ao lado das outras almas sobreiros ou azinheiras, solenes nos campos de trigo que a vida doura e o tempo ceifa. Aos sobreiros chagam-nos de tempos em tempos, e às azinheiras esqueceram-se de lhes pentearem os ramos, e nada lhes resta a não ser apresentarem-se assim, cabeças enlouquecidas embaixo do sol abrasador. Só as oliveiras se dividem a si próprias, numa dor inaudível que as faz atravessar milhares de anos, testemunhas do estrago e do milagre das coisas que são eternas.


As almas oliveiras que conheço não me dizem nada, a não ser quando encontro uma destas oliveiras árvores e logo me lembro daquelas, silenciosas nos nossos encontros. No seu âmago vivem as árvores, e talvez seja por isso que através delas lhes veja o interior lentamente a transformar-se em pó.


As almas oliveiras sofrem com a distância que se autoimpoem. Não há o que as salve de si mesmas e do seu destino dividido. Sendo diferente, seriam elas próprias outras coisas, daquelas que menos ainda percebemos, por serem vulgares, comuns, cotidianas.


Gosto dos lados oliveira da minha alma, quando se desdobram e me dão a conhecer muitas outras possibilidades da mesma coisa, quando se ocupam daqueles que chegam depois de muito tempo ausentes, e encontram da minha alma um novo lado, que lhes dá novo alento, dizem, e assim continuam em frente, depois de um breve roçar de braços com leve aroma a passado. Os lados oliveira da minha alma permitem-se inspirar quando uma parte de mim já expira; com eles, vou enquanto volto, e saio ao mesmo tempo em que me aventuro pela porta de entrada. Às vezes quedo-me perplexa, mas dou graças a deus por tudo e por ser assim como é.


Penetro através dos lados oliveira da minha alma no que há de proibido em mim, lugares que impeço conscientemente que outros entrem - para que os lados oliveira da minha alma permaneçam vivos e não sejam impedidos de se dividirem sem que se perceba.


Gosto dos lados oliveira da minha alma, mesmo que lhes perceba o seu lado morte, mesmo que me doa por todos os lados a secura que se demandam para que existam. Gosto desses lados, e quando contemplo esta oliveira árvore diante de mim neste momento, ouço-lhe o murmúrio do desapego de si mesma e até do espaço e do tempo, porque ao abrir-se, ao fender-se, ao retorcer-se, abre a seus pés um abismo que nem o tempo nem o espaço farão diminuir, e as raízes tornarão perpétuo.

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