16/05/2010

Viagem de ônibus pelo Rio de Janeiro

Recebi um email hoje de manhã que me perguntava “Ouve lá... o que achas mais inteligente, o livro ou a sabedoria?”. Diverti-me um bom bocado (estou divertida até agora, aquela espécie de diversão abençoada), imensamente recompensada pelos encontros linguísticos que permeiam a vida. Repararam? O “ouve lá” é obviamente lusitano, induz-me a ouvir atrás dele o “psiu...” lisboeta com que tantas vezes um amigo comum da mesma pessoa que me escreve me chamou quando podíamos nos ver ao vivo. Já a pergunta, que por acaso sei de onde vem, põe-me o Rio de Janeiro diante dos olhos, e não qualquer Rio, mas o que me acolheu quando pus os pés no Brasil. Duas cidades lado a lado, com suas palavras, acentos, curvas e pessoas. E já que hoje é domingo, às vezes dia de ficar aqui observando sem pressa os próprios pensamentos, eu vou responder com gosto à pergunta. Ainda por cima, acho que o tema combina mesmo com o domingo.

É de José Datrino, que nasceu em 1917 em Cafelândia e aprendeu em criança a amansar burros, que o email simpático da Nita, uma portuguesa que vive em Famalicão e eu só conheço virtualmente, me fala. A Nita é poeta, e leitora de poesia. De vez em quando trocamos poemas. Às vezes ela manda-me coisas que descobre do Brasil, para ver se eu conheço e se sei mais do que ela descobriu. Vamos construindo, Nita e eu, uma relação baseada no crescimento mútuo – assim de longe, eu digo-lhe o que acho de seus poemas, ela diz-me o que pensa dos meus. Há dias em que põe o dedo na ferida, e eu olho para o que ela escreve desacreditando que ela tenha me dito o que me disse, será que não vê que assim me faz sofrer? Sentir-me idiota? Querer desistir de escrever? Leitora crítica, sem dó de mim, esquarteja-me os versos para me fazer ver o quanto tantas vezes são pueris, óbvios, presos à abstração que não quer afundar os pés na concretude das coisas. Algo da poesia de Nita é concreto e duro por demais, faz-me lembrar às vezes uma Orides Fontela nos idos da infância – e ela não deve gostar também quando lhe digo isso, com provas circunstanciais ainda por cima. Mas é por isso que nossa correspondência cresce, porque é uma sorte termo-nos uma à outra assim, leitoras em construção de uma amizade que impede que coisas maiores nos magoem com mais força; encontro na Nita o espaço de exposição segura da minha alma., e cuido para que a dela não fique desamparada. Mesmo quando não me diz nada, eu sei que algo prepara, porque nunca a Nita me deixará sem resposta, perdida no universo da indiferença que me abate. A Nita pode ser cruel, mas nunca infiel. Quando demora, é porque está a pensar.

Voltando ao José Datrino. É provável que qualquer um saiba sem saber que saiba de quem se trata. Digo a Nita que ela precisa ouvir a Marisa Monte cantando a pergunta que ela me fez, e bem rapidamente estamos as duas com a tela do youtube aberta, e decidimos contar “um, dois, três e... já!” para entrarmos juntas na viagem de ônibus entre o cemitério do Caju e a rodoviária NovoRio. Consigo ver ao longe as lágrimas que se formam nos cantos dos olhos de Nita ao passar pelas pilastras que seguram o viaduto graças às palavras que  as colorem e resignificam, quando o movimento que a câmera faz lhe descobre as flores distribuídas, o amor em ação pelas ruas da capital carioca. Conheço a canção de todos os cantos, porque gosto dela e de ouvi-la, mas nunca antes lhe prestei uma atenção desta natureza, com uma companhia ao longe que sabe que eu vejo e sinto os mesmos caminhos que seus olhos e coração veem e sentem.

É claro que a pergunta que ela me fez foi apenas um convite a estarmos juntas, um pretexto para reacender o diálogo, porque às vezes são precisos pretextos para reencontrar coisas perdidas que não queríamos ter perdido, pessoas que correm o risco de se esfumaçar no tempo se não inventamos as perguntas que as concretizam novamente à nossa volta. É claro que ela já tinha encontrado e sabia quem era Gentileza, o profeta que nasceu José Datrino, na Wikipédia, no youtube, no cifras.com e em mil outros lugares que oferecem o que quisermos se soubermos procurar. Faltava-lhe encontrar o nosso espaço comum, a nossa amizade feita carne, sangue, ouvido, boca, a alegria de poder viver com o outro o que lhe nasceu de repente numa manhã. O meu domingo, deste lado do atlântico, com sol e silêncio ao redor, no meio de uma trégua decidida entre as dúvidas da semana que se inicia, ganhou firmeza e verdade, ausente da solidão que ataca e desconstrói as nossas melhores disposições de gentileza. Como já dizia o profeta: “Amor, palavra que liberta”.

Que profeta? Este!

Um comentário:

  1. Olá, Ana! Como vais? Tuuuuudo bem! Muito bons os textos do teu blogue!!!!! PARABÉNS! Sucesso!
    Bj, querida e volta quando quiseres!
    Tê!

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