Tenho várias tarefas pela frente
e todas elas precisam se transformar em escrita. São escrita. É uma bênção uma coisa dessas, poder desligar-me do mundo e mergulhar no que me propõem que escreva. Por dois dias, estou na posição inversa à que costumo estar.
Não preciso preocupar-me com a escrita do outro (não de forma ativa, pelo
menos), e posso aproveitar o que dizem dela (e da minha), absorver cada
comentário e incorporá-lo ao meu arsenal crítico interno. Posso ficar sentada sem dizer uma palavra.
Dos vários exercícios, há um que me
custa. Tenho horas para completá-lo, mas ainda assim. Preciso construir uma personagem com apenas dois dados: 1) um bancário, 2) aflito com o fechamento de seu caixa. Não é pra ser narração; não há história,
trama, enredo – apenas a personagem. Devo fazê-la viver, ganhar corpo, sangue,
concretude, e a partir desses dois dados. E lá vou. Preciso encontrar-lhe um dilema. Pergunto-me se ela não quererá no fundo a demissão de seu cargo, para que a vida lhe seja devolvida com o último contra-cheque.
Decido amparar-me nos
processos de sempre, que se resumem a divagar e a anotar palavras a esmo pelo papel. (Vejo que o professor me observa, lá da sua mesa, por cima dos óculos; professores tendem a achar que não são observados quando observam. Sorrio-lhe de cá, ele sorri sem graça de lá.) Lembro-me da “educação bancária” de Paulo Freire, e a partir dela reconstruo mentalmente aquilo que dizia Walter Benjamin (e que E. Said retomou, segreda-me
o neurônio à esquerda tomado pela variante gaúcha dos meus colegas: naquele livro que tu leu, lembras?): que a barbárie é fruto
da civilização. Bancos pertencem à barbárie ou à civilização? E a aflição do bancário? E o caixa? Vou registrando, depois agruparei de alguma forma as ideias.
Dos pensadores, assim aleatoriamente, volto à
exposição do Bispo do Rosário que visitei de manhã, à mostra de arte
contemporânea logo a seguir e à crise de choro a meio do museu, por
sentir de repente em mim o poder de cura que sei e leio e sinto que a arte provoca. Sento-me de novo, dentro da minha memória, no degrau da escada; como dizem, "lavada em lágrimas"; até que
um dos seguranças, velhinho de dentes tão brancos por trás da pele tão
negra, me traz um copo d’água e me diz que venha ver uma coisa que me fará
sorrir – uma escultura feita de ferro e vassouras verdes, como uma aranha
gigante que tudo varre. E daí me conta de como gosta de trabalhar ali, um lugar
onde as pessoas vêm pra se sentirem felizes e “por isso o copo d’água, porque te
vi dali chorando e fiquei preocupado, não sabia se era de alegria ou de
tristeza. E precisava fazer alguma coisa, né?”. E desculpa-se por não se sentar ao meu lado na escada, mas é que não lhe permitem esse descanso. Fica-se ali, só me vendo, e sem saber me amparando e me trazendo de volta da queda.
O professor vem espreitar o que
escrevo, e sorri quando vê que não é a personagem. Digo-lhe que vou chegar lá, que não tenho nada para fazer até amanhã de manhã. Bate-me de manso no ombro e
deseja-me boa noite – e diz que, como eu, também pretende trabalhar de
madrugada. "O importante é que escrevas, guria." E eu morro de rir desse "guria" que me traz de repente outras pessoas pra dentro do peito.
A volta à vida de um campus, especialmente como aluna, provoca-me
um formigamento interno que faz com que a memória das coisas volte a funcionar. Lembro-me de textos, de autores, de frases, tudo o que estava lá guardado, no fundo do fundo da memória. Quando o inspirador-professor conduz
com maestria o curso das próprias ideias, preciso refrear meu braço para
acrescentar alguma coisa. Hoje, porém, refreio sem problemas, nesse estado de
ensimesmamento em que me recolhi, depois de tomar até a última gota da água de
seu Eusébio, segurança do Museu de Arte Contemporânea de Porto Alegre.