22/03/2012

Um copo d'água no museu

Tenho várias tarefas pela frente e todas elas precisam se transformar em escrita. São escrita. É uma bênção uma coisa dessas, poder desligar-me do mundo e mergulhar no que me propõem que escreva. Por dois dias, estou na posição inversa à que costumo estar. Não preciso preocupar-me com a escrita do outro (não de forma ativa, pelo menos), e posso aproveitar o que dizem dela (e da minha), absorver cada comentário e incorporá-lo ao meu arsenal crítico interno. Posso ficar sentada sem dizer uma palavra.

Dos vários exercícios, há um que me custa. Tenho horas para completá-lo, mas ainda assim. Preciso construir uma personagem com apenas dois dados: 1) um bancário, 2) aflito com o fechamento de seu caixa. Não é pra ser narração; não há história, trama, enredo – apenas a personagem. Devo fazê-la viver, ganhar corpo, sangue, concretude, e a partir desses dois dados. E lá vou. Preciso encontrar-lhe um dilema. Pergunto-me se ela não quererá no fundo a demissão de seu cargo, para que a vida lhe seja devolvida com o último contra-cheque. 

Decido amparar-me nos processos de sempre, que se resumem a divagar e a anotar palavras a esmo pelo papel. (Vejo que o professor me observa, lá da sua mesa, por cima dos óculos; professores tendem a achar que não são observados quando observam. Sorrio-lhe de cá, ele sorri sem graça de lá.) Lembro-me da “educação bancária” de Paulo Freire, e a partir dela reconstruo mentalmente aquilo que dizia Walter Benjamin (e que E. Said retomou, segreda-me o neurônio à esquerda tomado pela variante gaúcha dos meus colegas: naquele livro que tu leu, lembras?): que a barbárie é fruto da civilização. Bancos pertencem à barbárie ou à civilização? E a aflição do bancário? E o caixa? Vou registrando, depois agruparei de alguma forma as ideias.

Dos pensadores, assim aleatoriamente, volto à exposição do Bispo do Rosário que visitei de manhã, à mostra de arte contemporânea logo a seguir e à crise de choro a meio do museu, por sentir de repente em mim o poder de cura que sei e leio e sinto que a arte provoca. Sento-me de novo, dentro da minha memória, no degrau da escada; como dizem, "lavada em lágrimas"; até que um dos seguranças, velhinho de dentes tão brancos por trás da pele tão negra, me traz um copo d’água e me diz que venha ver uma coisa que me fará sorrir – uma escultura feita de ferro e vassouras verdes, como uma aranha gigante que tudo varre. E daí me conta de como gosta de trabalhar ali, um lugar onde as pessoas vêm pra se sentirem felizes e “por isso o copo d’água, porque te vi dali chorando e fiquei preocupado, não sabia se era de alegria ou de tristeza. E precisava fazer alguma coisa, né?”. E desculpa-se por não se sentar ao meu lado na escada, mas é que não lhe permitem esse descanso. Fica-se ali, só me vendo, e sem saber me amparando e me trazendo de volta da queda.

O professor vem espreitar o que escrevo, e sorri quando vê que não é a personagem. Digo-lhe que vou chegar lá, que não tenho nada para fazer até amanhã de manhã. Bate-me de manso no ombro e deseja-me boa noite – e diz que, como eu, também pretende trabalhar de madrugada. "O importante é que escrevas, guria." E eu morro de rir desse "guria" que me traz de repente outras pessoas pra dentro do peito. 

A volta à vida de um campus, especialmente como aluna, provoca-me um formigamento interno que faz com que a memória das coisas volte a funcionar. Lembro-me de textos, de autores, de frases, tudo o que estava lá guardado, no fundo do fundo da memória. Quando o inspirador-professor conduz com maestria o curso das próprias ideias, preciso refrear meu braço para acrescentar alguma coisa. Hoje, porém, refreio sem problemas, nesse estado de ensimesmamento em que me recolhi, depois de tomar até a última gota da água de seu Eusébio, segurança do Museu de Arte Contemporânea de Porto Alegre.

17/03/2012

Promessas


Acabam de me dizer, por telefone, que o óbvio e o sutil são coisas muito próximas. Escrever, às vezes, é uma tentativa de se encaixar a vida no vão que se forma entre ambos. De forma sutil, falar do óbvio. Crônicas usam largamente desse artifício. Da seguinte forma.

Parte-se de qualquer coisa. Por exemplo, da palavra “promessa”. Porque se pensou nela. Porque se tornou semente e ficou germinando por dentro. Porque alguém falou, ou de repente lemos em algum canto. Para se partir de uma palavra assim à toa, um recurso muito útil (e que pode poupar horas e horas de análise) é um bom dicionário etimológico. Ou, enquanto se vence a preguiça de procurar um, pensar em como outras línguas traduzem a palavra. No caso de promessa: promise em inglês, promesso em italiano, promesa em castelhano, promesse em francês. Vê-se que a raiz histórica é a mesma – dá logo vontade de saber mais!

Crônicas nutrem-se da curiosidade e da surpresa. Além do humor, que rezam os manuais devam contemplar, é preciso uma pequena surpresa, filha do movimento curioso. Crônicas, aliás, são coisas que se nutrem de pequenas, ínfimas surpresas, coisas que nos fazem soltar um “ó!” súbito, quase inaudível. Diferentes de coisas mais agudas, como os romances, que nos fazem rir, tremer, chorar, se extasiar, às vezes em doses superlativas. Crônicas, não: são leves, alívios, plumas absolutas no mar estranho que nos rodeia.

A surpresa, então, pode vir do significado original da palavra que se pescou no mar de todas as demais. Promessa, à guisa de ilustração, vem da palavra latina promissus: que significa fluxo, fluir, fluindo. Promessa pode portanto ser aquilo que flui, ou o próprio fluxo. (Vai ficando interessante.)

O acaso (se tal coisa existisse) ajuda bastante a escrita de crônicas. Quase sem querer, deslizando os olhos pelo longo verbete dedicado a promissus, vejo que dele se origina a palavra spondere. Só porque gosto de palavras que começam com encontros estranhos como spon, que se derretem na boca quando começam a ser pronunciados, decido ver do que se trata. E as coisas começam a fazer sentido e a encaixar-se, naquele vão entre o sútil e o óbvio; se eu estivesse à procura de uma explicação para alguma coisa, teria acabado de encontrá-la. Ora veja:

Spondere, além de ser filha de promissus, é parte integrante do nosso verbo “responder”: re-spondere. Considerando que promissus (e spondere por proximidade) significava fluir, e que re é prefixo largamente usado que significa basicamente “de volta”, chegamos à constatação (entre o óbvio e o sutil) de que uma resposta é algo que coloca o “fluxo de volta”. Sem respostas, não há fluxo que se mantenha.

E brinquemos um pouco de mais de prefixar a vida. Corresponder: aquele “fluxo de volta” adquire o fantástico co, que nos acompanha desde que o tempo ainda não era tempo de nada: vem do proto-indo-europeu kom, que significa tanto perto quanto junto quanto com. Ou seja: corresponder trata-se de criar, perto, junto e com alguém, um fluxo que retorna. Só de pensar, a gente se engrandece.

Mas promessa dá ensejo ainda a outras coisas! O verbo prometer, por incrível que pareça, tem um passado histórico muito diferente. O latino promittere tem dois grandes ancestrais (mittere e omittere) e um prefixo que muda tudo (pro). Dando asas à imaginação, posso perfeitamente pensar que, se prometo algo a alguém, envio (mittere) meu desejo, cuidando-o e pondo-o a um lado, para que não se perca (omittere). Para chegar ao nosso prometer, preciso agregar o sufixo pro, que faz com que o futuro se antecipe: envio e cuido, mas antes mesmo que tal coisa possa acontecer. E num átimo aparece-me de novo o prefixo com, que tudo mais uma vez amplia. Quando me com-pro-meto, é porque tudo aquilo (enviar e guardar antes mesmo que seja hora) deu-se com a participação de outro(s). Algo que foi pensado, desejado, querido é enviado, guardado e cuidado – junto, perto e com alguém, antes mesmo que possa ser tudo isso.

Sempre que escrevo, percebo o quanto me com-pro-meto. Ao contrário de Menalton Braff, de quem falava outro dia, não escrevo para mim mesma. Ou talvez no fundo o faça, mas é através do outro que acontece. Porque escrevo para que o outro leia, para que o outro me capte, no óbvio e no sutil, na minha escolha das palavras e nas ideias que talvez aleatoriamente procure para torná-las carne e osso. Porque tudo, na vida, é pretexto de alguma coisa: tudo, na vida, é uma espécie de ensaio daquilo que depois, aqui, será texto, antes que seja passado. As crônicas, são sobre isso. Sobre as respostas que se dão à vida para que o fluxo não se interrompa, e para que o antes não se perca em face do depois, que talvez venha a ser só silêncio.

13/03/2012

Curar panelas: dicas para quem esqueceu


Ao Daniel e à Betina, através das conversas de um dia bom

Quando se compra uma panela de barro ou ferro ou pedra, é preciso curá-la. Prepará-la para ir ao fogo e cozinhar a comida. Há várias maneiras disso ser feito, mas hoje, quando me perguntaram por aqui mesmo como era que se curavam panelas de barro, precisei avisar que há um procedimento básico, sim, mas que cada panela é uma panela. Cada forno é um forno. Cada dia é um dia. 

O básico, conforme já aprendi em mais de um lugar, com variações que percebi serem bastante irrelevantes, daquelas coisas que se inventam e depois se apelidam de “tradição”, é: unta-se com óleo por dentro e por fora e põe-se no forno bem quente durante uma hora. Mais ou menos uma hora. Mais ou menos óleo. Mais ou menos fogo forte. Porque é preciso observar o comportamento das coisas para saber como lhes pôr a mão. Nada é igual a nada. Cada panela pede um amparo diferente. Como as pessoas.

Existem até, por aí, panelas que não precisam de cura – vêm prontas da loja, é lavar e usar. Quase como comprar roupa pronta, sem precisar ver medidas, provas, saborear aos poucos a saia nova que se vai vestir. Há as de alumínio – mas fazem mal à saúde, mesmo aquelas pesadas sem polir, que sujeitos que gostam de conversar vendem pelas ruas nuns carrinhos que equilibram dezenas delas. Há as de inox, também, mas são caras, não é qualquer um que se aproxima. As de ágata eram boas, mas só antigamente, agora vem tudo da China: espirrou, lascou. Todas elas (menos as de ágata, já se vê) duram para sempre, as propagandas frisam bem essa peculiaridade, o que pode ser uma eternidade ou o sopro de um minuto, uma vantagem ou um tremendo de um incômodo – depende muito da relação que se estabeleceu com elas. Como chegaram às nossas vidas. Pelas mãos de quem. Com quais intenções. Como as pessoas.

As de barro, as de ferro, as de pedra não chegam assim tão facilmente, tão óbvias. Tive um caldeirão de pedra por quem me apaixonei certa vez que demorei pra curar: não cabia no forno, de tão grande! Encontrei-o em Varginha, a caminho de Carmo da Cachoeira, escondido atrás de uma estante escura e empoeirada. Fui usando-o bem de levinho; untei-o de óleo dias a fio, fui fervendo um tantinho de água aqui, outro ali, sem chamar muito a sua atenção, pra não acabar trincando. Pesava muito, mas muito; era difícil a operação limpeza. Mas fez muitas sopas boas, generosas, profícuas. Por fim trincou, e ganhou uma planta  verdejante e ampla para recheá-lo. Ficou pra sempre ao meu lado – mas de outras formas, mais sutilizadas, sem a obviedade do cotidiano. Como as pessoas.

Com mais de metade das panelas ainda encaixotadas pela mudança, às vezes sinto falta de algumas delas, e não faço ideia de por onde andam. Gostaria de tê-las por perto, ainda que sequer as usasse porque a cozinha a rigor ainda só existe pela metade. Mas seria bom podermos olhar umas pras outras, respirar o ar de promessas gastronômicas, lembrar das boas coisas que se compartilharam de dentro delas, rir das bobagens que se disseram enquanto se espreitava o que se mexia com a colher de pau. Como as pessoas.

O engraçado é que, às panelas, precisemos curá-las antes de nos tornarmos íntimos. Cuidá-las num antes para que num depois não trinquem. Não percam a sua função suprema. Não nos deixem na mão, deixando derramar seu conteúdo precioso no tampo do fogão. Não queimem tudo o que lhes pusermos dentro. Porque, às pessoas, costumamos na maioria das vezes precisar curá-las depois de as termos descoberto, depois de nos termos aproximado e entrado nas suas vidas, das maneiras mais insuspeitas, depois de as termos usado no bom sentido, permeando-as com os nossos sentidos e os nossos significados. 

Precisamos curá-las porque às vezes elas trincam, elas se ferem, lascam, perdem pedaços entre o armário e a pia, o fogão e a bancada. E nem sempre nos damos conta, e quando percebemos já elas estão a caminho de outra função, porque nos esquecemos ou não conseguimos curá-las a tempo. Bom é quando se encontram pessoas que cuidam da cura e protegem o tempo, alicerçam a aproximação com sutis camadas de óleo, essa matéria densa que flui escorregando, untando - como gostam alguns de dizer, "temperando a vida", com coisas que só a vida dá.

12/03/2012

Questão de entendimento

Tem gente que entende as coisas errado. Ou as traduz sem saber primeiro falar a língua do outro. Ou, pior: decide interpretar o mundo através só e apenas do seu prisma, esquecendo-se de que talvez na língua dos outros as coisas se processem diferentes. Se encontrem diferentes. Tenham significados diferentes. Tanto faz se mais ou menos profundos por trás de palavras que parecem coisas tão simples: são sentimentos que ultrapassam as fronteiras do país da simplicidade. Seja isso bom ou não.

Acontece por todo lado, nos espaços mais insuspeitos. De certa forma, é um alívio, porque afinal constata-se que está arraigado o costume, não é coisa apenas da própria vida ou do próprio círculo.

Basta sair de casa pra ver o fenômeno acontecer. Acho até que saio justamente para que isso aconteça,  e meu coração se aquiete. Só pode ser isso: não é possível que em tão pouco tempo se esparramem exemplos tão palpáveis.

Primeira parada: supermercado. Cai-me um exemplo no colo: é óbvia a boa intenção de quem escreveu, nem é possível achar que foi falta de atenção, percebe-se o capricho. Morri de rir quando li. Mas uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. E às vezes confundem-se as coisas, troca-se uma letra na leitura, outra na escrita, e o resultado não é o esperado. E, aqui, a ordem dos fatores incomoda o resultado. Ainda que a primeira reação seja o riso.
















A seguir, passo no restaurante da esquina. Tradicional, arejado, com cara de estabelecimento antigo onde se comia antes de comer fazer mal. Seus pratos, generosos, servem fácil até 6 pessoas, e ainda se leva marmita porque sempre sobra coisa! O cardápio quer ser internacional, provavelmente porque o dono deseje acolher também os de outros lados do mundo, o que é louvável, aplaudível, uma dose de simpatia extra que se constata assim que se bate um papo com o próprio. Mas lá vem mais um exemplo pra me cutucar e fazer escrever estas linhas, confirmando que a intenção se afasta às vezes (quantas vezes!) do resultado que se deseja. (E mais um ataque de riso.) Porque não se sabe, porque não se perguntou, porque se chegou a conclusões apressadas sobre a forma como os outros dizem (ou seja, sentem) as coisas. Com a melhor das intenções.






Mas pior de tudo, penso conforme desço a escadinha do restaurante, é quando se deve dizer alguma coisa e não se diz. Quando se guardam as medidas e as proporções e se escondem as próprias falhas e mazelas e desejos e dúvidas atrás de um silêncio que é o que menos respeita o outro e as suas diferenças. Porque as toma por incompetentes, incapazes (ainda que a intenção não seja essa). Subestima quem está ao redor. (idem) Desrespeita aquele princípio básico que já a Declaração Universal dos Direitos Humanos consagrou, de que todos nascem iguais (ibidem). Para provar, afinal, que todos nascem iguais, sim - mas uns tornam-se mais iguais do que outros, que assim ficam diferentes e não por isso podem (ou precisam, qual a diferença?!) ser entendidos, ou seja, considerados. Mesmo com a melhor das intenções.

Afinal, sol alto a queimar tudo ao redor, decido guardar a máquina fotográfica e voltar para casa. Antes que fique tarde. Antes que desanime da caminhada que me falta. Antes que decida pedir uma festa de um só e acabe dançando sozinha.

11/03/2012

A saudade


Lembrei-me da Cornélia um destes dias. Uma jersey de olhos quietos e meigos, como os das vacas são normalmente. Um amigo espanhol que me visitou anos atrás fez-me parar vezes sem conta diante de qualquer vaca que nos atravessasse o caminho, fascinado pelo seu olhar tranquilo, paciente, compreensivo. Parado e alheio, de certa forma. Ele não conheceu a Cornélia, mas quando ela veio morar conosco, parei um bom tempo diante dela, e pensei que ele gostaria de tê-la conhecido.

Durante um tempo, Cornélia ficou solta pelo quintal, agoniada que estava com a gravidez no início. Eu também estava no mesmo estado, e talvez por isso tenha ficado sensível ao significado do seu olhar. Acordava-me de manhã dando cutucadas na janela, para que eu levantasse e a ordenhasse. E depois a levasse, pela corda, para pastar em algum terreno onde hoje se construíram casas. Era um mundo de pasto, que eu estaqueei profusamente, para que ela pastasse sem fugir. Ao final de algum tempo, o campo estava todo desenhado de círculos.

Se fecho os olhos, vejo Cornélia diante de mim, ainda noite. O sol querendo levantar-se na minha frente, enquanto a ordenho sentada, o momento mais privilegiado de meditação que me lembro de ter tido, mês após mês, em silêncio. Precisando segurar a minha aflição (quando a havia) para não atrapalhar a descida do leite. O céu tingido das cores do dia a nascer e Cornélia mugindo baixinho e o leite espumando no balde de folha de flandres entre as minhas pernas. Cornélia salvou-me várias vezes do torpor da manhã; fez-me abrir a própria vida para acolher a dela; ao ordenhá-la, é como se ordenhasse (e ordenasse) a minha própria alma, nem sempre leve como a espuma do leite.

Tenho saudades dela. Saudades do levantar do sol no morro da frente. Saudades de ouvi-la mugindo baixinho com a certeza que só as vacas têm de que todo dia amanhece e anoitece, coisa que independe de podermos ou não assistir. Saudades de recolher o leite e transformá-lo em queijo e levar um deles à vizinha do lado. Saudade do cheiro cheio de verdade do estábulo pequenino onde dormia.

As saudades são terreno alagadiço, movediço. Já me afastei e fui afastada de tanta coisa na vida, oceanos pelo meio do caminho, mundos paralelos que se interditam um ao outro, que poderia ter aprendido. Saudade não é terra segura, nem alívio de nada. É condição que aperta o peito e estala as comportas dos olhos – quando estala. Quando não o faz, fica só a agonia, a falta do que se foi, e não volta, e tanto faz se é para sempre ou por algum tempo que o calendário meça. Porque o dia de hoje é o único que compete, e quando o dia de hoje se levanta sombrio, tingido pela saudade do sol que nasce mediado pelos olhos da Cornélia, que já se foi e se voltar não sei se a reconhecerei, resta o que não é lágrima, uma substância densa que amarga o céu da boca. 

Por isso se canta, e por isso se escreve. Para que a saudade, essa traiçoeira companhia daqueles que já viveram, possa ficar liberta no espaço, possa mostrar-nos para onde nossa alma quer voltar, como diz Rubem Alves, ainda que o lugar não exista mais, a pessoa tenha partido, a relação tenha se apagado, o mundo tenha deixado de ser aquele que era até ontem, a vida esteja dividida em duas metades desiguais. Talvez a dor seja essa: a incapacidade de ver através dessa vidraça embaçada que é a saudade sem lágrima, à deriva sem saber que lugar é esse que podemos chamar de nosso. Assim que o choro lavar os vidros, a visão ficará mais clara, e as minhas pernas sairão de onde ficaram presas, emperradas, com uma vontade urgente de se estrelaçarem, e sem o poder fazer. Nessa hora, Cornélia virá ao meu encontro para me puxar pela corda, nós duas em situação invertida, ela sabendo onde estão os prados mais verdes, eu seguindo-a em paz com a sua condução e o sol nascendo à nossa frente, anúncio de dia bom pela frente.

08/03/2012

A cidade nova V - As colunas


Como se fosse a minha própria sustentação, levantam-se quatro colunas nas laterais do que virá a ser a sala de casa – ou melhor, ergue-se a sua dura e rígida estrutura, férrea e oxidada. Olho-a de baixo e fico impressionada com a sua vaziez, a sua paciente espera pelo concreto que a sedimente na sua função e no seu tônus correto. Metros e metros enterradas abaixo do nível em que piso, são as responsáveis pela terra espalhada por todo canto. A mesma terra roxa que coloriu nossos pés como se fôssemos pra guerra e o chão de casa como se cenário antropólogo.

Paro o que faço para observar o esqueleto da coluna. Imóvel, extático, tão alheio a tudo o que parece a vida. Falta-lhe o tendão do cimento, a carne da pedra, o sangue da água que a tudo amalgame. O céu lá em cima assiste impávido, e o ferro sobe, cresce, galga degraus inexistentes e finalmente alcança a laje da casa que já existe. Um novo membro em estado de acolhimento. Dói em quem já estava aqui – há furos pela parede que já existia. Mas não há lamento, tudo é silêncio agora que a marreta, a pá, a enxada se foram. Apenas um incômodo visível, cheio de dores e marcas. Mas a coluna veio pra ficar, para se tornar mais sólida até, para permitir que a vida se amplie e abrace mais espaços, mais seres, que o sol que nasce para todos aqueça também todas as peles.

Valdete demora pra voltar – e as colunas ficam onde estão, à espera desse pedreiro que só vem aos sábados, pacientes e indomáveis como o tempo, resistentes e quase parecendo insensíveis. E eu continuo sentada, olhando a singeleza dessa construção de barras de ferro e arame, querendo ver a obra terminada, a casa limpa, as colunas incluídas para sempre no corpo da minha casa. Ainda que saiba que o sempre é uma categoria relativa, reconstruída a cada dia, cada dia um novo dia.

07/03/2012

"Literatura é palavra"


Só as palavras, dando os nomes, penetram até o fundo e perfuram a casca da nossa consciência?
In Tapete de silêncio


Menalton Braff fez-me pensar, ontem. Gaúcho morando no interior de São Paulo há anos, escreve a tempo inteiro. Vem a Araraquara, entre outras coisas, para lançar seu 18º livro, “Tapete de silêncio” - que eu li hoje de ponta a ponta. Encolhe os ombros se lhe perguntam para quem escreve: “escrevo pra mim, pra meu deleite, porque preciso”. Escreve porque é a sua maneira de problematizar a vida, representar numa história que é sempre a mesma diferentes maneiras de dizer. Porque literatura é palavra, diz. E palavra é linguagem.

Gosto dessa simplicidade nada simples. Faz com que me pergunte, incomoda-me a própria escrita, faz-me remexer na cadeira e querer escrever. Tiro da mochila um dos cadernos-de-anotar-coisas e a caneta: estão chegando ideias, posso senti-las descendo os degraus.

Perguntam-lhe se seus livros se baseiam em fatos reais. Ri-se – vejo-o não tão de perto quanto gostaria, estou sentada a meio do anfiteatro, mas percebo-lhe os olhos vivos que se divertem. Claro, como poderia ser diferente: “você queria que eu me baseasse em fatos irreais?!”. Com o tempo e o andar das perguntas, começa a impacientar-se: “você não acha que o escritor precisa estar a serviço da sociedade?”. “Não, não acho”, e olha para o mediador, encolhe os ombros e arremata: “O que posso fazer? Não acho mesmo.” O inquiridor senta-se, imagino que desalentado, poluído pelos manuais de seu (provável) curso de Ciências Sociais. Menalton sabe o que diz. Presidente da União Brasileira de Escritores, não se afasta da discussão política – e por isso sabe que nunca jamais o escritor pode ou deve estar a serviço de qualquer outra coisa que não seja a própria arte. Nem que seja a sociedade. Oxigênio oxigênio oxigênio.

Mais uma pergunta: “como o senhor fala de alta e de baixa literatura? Isso não é julgamento?” – 1º anista de Letras, desconfio. E lembro-me da resposta que ouvi de Zina Bellodi a uma aluna que fez a mesma pergunta em 199e/alguma/coisa: “falo porque sei, minha filha, quando você tiver lido o suficiente para pensar nisso, também saberá”. E pronto. Nem se respirava mais naquela sala. Menalton é mais brando, mais suave – mas diz quase que a mesma coisa. Eu acho que ele não vê a hora de terminar.

Quando chego a casa, tarde de tudo porque depois do bate papo continuam outros papos, nesta cidade quente onde a noite é uma bênção para degustar fora de casa, espreito a minha própria escrita. Logo vejo tantas coisas que preciso mudar, tantas coisas que de repente me incomodam, porque Menalton disse o que era preciso: as elipses são necessárias. O silêncio significante. Não se pode revelar tudo. Não se pode mostrar tudo. Não se pode antecipar o que no fundo nem se sabe que virá, porque a escrita é rebelde e se realiza de formas diferentes das que se queriam pretender. Sei o que problematizo, se Menalton me perguntasse - na escrita e na vida. Mas calo, porque o que problematizo fala de si sem precisar de mim. E onde de repente eu me descaio e revelo, é aí que a faca precisa cortar a carne.

Olho para as caixas de papelão forradas de esquemas, de desenhos, de rascunhos, descrições de personagens e lugares, de elementos que uso para estar dentro do que escrevo, a ficção tomando conta da minha vida, alterando-me o fôlego quando alterno entre o que sou e o que escrevo nesse terreno ficcional, abrindo-me portas dentro das portas que abro. E sei onde preciso cortar, finalmente. Só não sei a que horas irei dormir, a lua já cheia me alumiando pela janela aberta.

A cidade nova IV - O entulho


(Perguntam-me que história é essa dos morros 1 e 2 de entulho. Além de acrescentar que há um terceiro, incluo duas fotos que os ilustram a todos, para que se entenda, inclusive a evolução dos ditos cujos. Aí estão.)


É um pouco como aquele conto judaico, do bode na sala, sabe qual? Em vez de bode na sala (que por sinal ainda nem existe), tenho morros de entulho que preciso quase que galgar para entrar e sair. Quando chove, então, depois deste último que é só só feito de terra, é uma beleza. Fico imaginando quando tudo isto for um lugar habitável, daqueles que se varrem e limpam e permanecem limpos por pelo menos uma hora – e dá-me um certo prazer antecipar essa visão.

Essa história do bode na sala, conselho de rabino sábio, é uma das preferidas da minha filha mais nova. Passou meses do ano passado pedindo que lha contasse uma e outra vez, e eu cansada querendo avançar para outras histórias, e ela insistindo como só ela sabe fazer, até que eu cedia e contava-a de novo. E de novo. E de novo. Essa minha filha tem um dedo lá na frente, é bom ficar atenta ao que sente. Sobretudo quando insiste.

São coisas assim a que chamam premonições. Quem as tem, diz serem um fardo. Passa-se a vida antecipando o que já se sabe irá acontecer, e depois perde-se tempo decidindo decidir... o que já se sabe. A bem da verdade, um terrível de um contra senso, uma perda de tempo homérica. 

Uns perguntam-me pelo entulho, outros dizem-me que entregue – que na entrega não há sofrimento. Que não tenha medo. E eu nada posso a não ser entregar, e entregar-me, com menor ou maior capacidade dependendo do dia, da hora, do momento; assim que consigo, acontece: um fluxo de escrita percorre-me de cima abaixo, preciso urgentemente sentar-me aqui e destilar todas essas palavras aflitas por saírem de mim. Querem fazê-lo de qualquer jeito, e a minha tarefa é ordená-las. Num todo que despareça caótico, que simule lógica, que faça com que eu mesma leia e me acalme, respire mais sossegada e chegue à conclusão de que tenho algum domínio sobre mim. Só por uma questão de tranquilidade e foco - eu já sei que domínio é outra coisa.

Às vezes, dá-se através da escrita, a premonição. Como uma onda que viesse do futuro, e se captura no presente, indecifrável mas precisa. Como um feixe luminoso, milhões de nós puro brilho, súbito rasgar do véu em que se refugia o Tempo. Como uma rede lançada ao mar, na volta cheia de peixes prateados, que refulgem enquanto estão dentro d’água e assim que saem são espuma a dissolver-se no papel.

De tempos em tempos, relê-se o que se escreveu e descobre-se que já se sabia. E aí é a dissolução num oceano de encantamento, surpresa, incredulidade plena e completa. Ainda assim, os que têm esse dom mantêm que é terrível. Porque a vida vai carregando-os estrada afora, sem que se deem conta, apesar de todos os sinais que recebem. As premonições todas ao alcance, e eles alegres e saltitantes, desavisados como deve ser, para que nada pareça mesmo normal. Porque não pode mesmo parecer normal, senão como administrar, pergunto-me eu?

E é dessa forma que estes morros olham pra mim, e eu pra eles, interrogando-nos mutuamente qual a extensão do que eu já sabia, do que minha filha já sabia, do que todos já sabíamos antes de começarmos novas jornadas, sem saber mas sabendo exatamente aonde nos conduzem. Pisco-lhes o olho, feliz de estar a caminho, de mãos dadas com o destino, entregue e inteira como me pedem que seja e eu mesma desejo, mais do que qualquer outra coisa.


06/03/2012

A cidade nova III - A porta


Minha vizinha, dona S., vem visitar-me. Fez pão de torresmo e aparece quando estou sozinha: “só sobrou um pedacinho, e aqui na sua casa é gente demais. Da próxima vez faço uma receita inteira só pra vocês!”. Curiosa como ela só, transpira vontade de conhecer o lado de dentro desta obra que não acaba, destes vizinhos que lhe caíram na sorte. Cheia de opinião, não entende porque troquei as janelas da frente, menos ainda por que a entrada é por trás. “Mas filha, por trás?!”. E abana a cabeça sem compreender. Nitidamente, a maior desaprovação.

Chegamos à porta e ela estaca. “Linda, sua porta.” E é, de fato, lixada por mãos que a tornam, aos meus olhos, além de linda, preciosa. “Pena essas janelinhas, não?” E eu olho-a incrédula, com uma súbita vontade de que volte rápido rápido pros seus domínios, sua casa, do outro lado do muro. Mas ela já deu a volta ao morro número 2 de entulho e terra e entra pela outra porta, a que um dia será a da lavanderia quando esta última existir e pudermos abrir a outra porta, aquela mesma bonita das janelas, por enquanto interditada pelo morro número 1 de terra e entulho. E entra toda feliz, reparando em tudo. Não me incomoda o seu interesse. Mostro-lhe a casa toda, tarefa que se cumpre de forma bem rápida, e ela tem tantas opiniões fáceis que me deixa zonza. Se a deixo dois milímetros mais à vontade, é capaz de abrir e inspecionar as gavetas!

Assim como chegou, foi-se. E deixa-me olhando para a porta, intrigada com a sua desavença com as janelas. Tão bom, uma porta com janelas. Posso abri-las quando chove. Posso abri-las pra ver o pé de canela lá de fora (aliás, do quintal da dona S., caindo pra dentro do meu com toda a sua opulência). Pra ver a chuva. O vento. O granizo, como o que caiu no sábado, furioso. Olho de longe por entre as aberturas e fico em paz. Provavelmente porque me dê a sensação de que uma porta fechada com janelas permite que espere com mais sossego pela abertura dos portões quando as portas se fecham. Aquelas da vida, pra cumprir a metáfora.

É uma porta sem convicções, talvez: está fechada, mas abre-se. Está aberta, mas fecha-se. Dá-se a todos da maneira como a queiram receber. Só é preciso estar aberto a que as coisas não precisem ser apenas o que parecem, mas possam transcender-se e não se limitar – pra que ser apenas porta, se é possível ser janelas também? E que possam ser aquilo que são, tudo o que são, sem os rótulos que as fechem e prendam, aferrolhem quase. Como acontece com as portas sem janelas, por onde não se pode espreitar as promessas lá de fora, a não ser que se escancarem e assumam a sua única identidade. E, a essas, não é dado o prazer do olhar através – atravessa-se, sai-se ou entra-se. O máximo, máximo, é poder sentar-se na soleira, apreciando o fim de tarde e pensando em como será bom quando se puderem abrir umas janelas e dar a essa porta olhos de ver.