14/03/2016

Coração em aberto


Coração aberto, sensibilidade à flor da pele, delicadeza e noção exata da preciosidade do amor: pré-requisitos do encantamento amoroso.

Tenho o livro de Vinícius dentro das mãos. É ele quem diz essas coisas sobre o amor, não eu. Maria Letícia encontra-me na escada onde me sentei. Colega de faculdade, está guardada naquele lugar vago que chamamos de lapso de memória. Estou sentada com o livro de Vinícius nas mãos, porque tenho uma aula a dar, e é sobre ele, e convém que me prepare.

Demoro a lembrar-me da Maria Letícia – o que tanto significa que possa demorar-me em sua pessoa, detendo-me e olhando-a atenta, quanto que tarda a lembrança a aflorar do subterrâneo da história. Não lhe digo, porque a magoaria.

O maior solitário é o que tem medo de amar, de ferir e ferir-se (...) Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno.

É a memória seletiva, essa que me salva das coisas que não têm por onde escapar desta vida para outro lugar qualquer. Às vezes, é vantagem. Não faço esforço para lembrar-me, porque nem sei que tenha do que lembrar-me. As pessoas aproximam-se (como Maria Letícia neste lance de escada) e, porque não tenho o que resgatar, nenhuma imagem anterior, nenhum comentário que a tenha eternizado dentro de mim (realmente não me lembro), posso olhá-la com olhos virgens, sem nenhuma desconstrução a fazer que me deixe mais honesta diante dessa que pode haver (terá) se transformado no correr dos anos. Fresca novidade, a Maria Letícia.

A maior solidão é a do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana. A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo, o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro.

E ela sorri, enquanto acena (ela sobe o lance de escadas para alcançar-me) e grita de lá: “Te reconheci pelo livro!”. E lembra-me, ato contínuo e já ao meu lado, do seminário apresentado em Literatura Brasileira II, das frases que recortei desse mesmo livro que tenho dentro das mãos, e que ficaram dentro dela vibrando semanas a fio. “Comprei esse livro por tua causa”, diz mais baixo. “Ajudou-me a atravessar momentos difíceis”.

O amor exige a exposição ao sofrimento e um tipo especial de coragem.

Eu lia Vinícius um tanto à toa. Esperava o fim da aula de vôlei da minha filha, e o livro estava ali, pousado no banco, perdido, ao meu lado. Mergulhei nessa insensatez que o Poetinha propõe e foi de repente, eu que não me lembro da Maria Letícia, muito menos da Literatura Brasileira II. Sou engolida por essas palavras que julgava nunca ter lido. Sento-me no degrau mais alto da escada, para que o mundo fique longe e não se intrometa, Maria Letícia ao meu lado, e lemos uma à outra os trechos que, nesse exato momento (farei força por não esquecer nunca), aquecem as duas almas como se fossem gêmeas, e dissolvem esse sentimento insuportável de não pertencer. Como um voo rasante de pássaro, o sentido passa por nós, e se materializa adiante, e logo passa, e já somos só nós, outra vez, sentadas no degrau mais alto de todos, onde chegam finalmente os gritos das meninas do vôlei, como estilhaços de vidro quebrado contra o concreto.



(Os trechos em itálico são de “Para viver um grande amor”, de Vinícius de Moraes e poderiam ser bíblia para aqueles que não têm ideia do que seja, de verdade e com consistência e força, amar.)

19/02/2016

As avezinhas do céu



O sonho desta noite. 

Um caboclo eleva a vista, e a minha segue com ele. Sobe depressa pelos troncos das árvores, e agora já estamos no topo. Há uma mata fechada em volta dos nossos olhos, um rodeio de tapete verde, espesso, cerrado, imenso. Olho em volta pelos olhos do caboclo, sinto as pernas tremer de cansaço. Ele entrecerra os seus olhos e com eles os meus se afinam. Ao fundo há uma planície de água. Ao redor de toda a mata fechada, uma planície brilhante de água.

"Não há nada que dure eternamente", diz o caboclo fechando seus olhos. "Porque te preocupas com o pássaro que tens na mão? O que fazem os que passam voando sobre ti? Não vês que o que seguras é o limite que a ti mesmo impões? Mão fechada diante da maravilha da mata? Abre a mão, deixa o pássaro no voo que é seu. Pousa teus olhos nas asas dos que vivem no alto do céu, e dirige-te nessa sua direção. Não os abatas, para que os possas ter na mão: segue e aprende o caminho do voo. 

As asas do pássaro celeste são caminho do pai criador. Se manténs esse pássaro preso, essa segurança que ninguém pode dar, matas dele e de ti a alma pura, espremes a tua vida e a dele na palma da mão. Vai, afrouxa a tensão dos teus dedos, abre espaço pra vida viver. Deixa que pouse na mão estendida só o pássaro que semente trouxer. Observa o bico certeiro, o olho alerta, as penas do corpo que não é sofredor. E depois vê como eleva seu canto, seu voo deixando ao teu lado um sossego com cheiro de flor."

Acordo pensando em Mateus. "Olhai as avezinhas do céu" diz ele. "Nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros. São como os lírios do campo."

Sinto caboclo e discípulo num só. E sinto, e sinto outra vez: o que mais vale na vida é sentir. 


Revoada de pássaros em Ibirapuera, Araguaia. http://1080.plus/gmXz8C-AqMU.video


15/01/2016

Brain damage

You lock the door
And throw away the key
There's someone in my head but it's not me
And if the cloud bursts, thunder in your ear
You shout and no one seems to hear
And if the band you're in starts playing different tunes
I'll see you on the dark side of the moon



Ligação na madrugada. Amiga aflita. O que faço é sair da cama, entrar no carro e ir até sua casa. Faz frio, está escuro e chove. A porta está aberta quando chego, a entrada molhada, a mesma escuridão dentro que fora. Entro muito rápido, agarro-a por um braço e arranco-a de dentro. 

Tem uma hora, digo eu a ela, que é preciso fechar a casa, trancar e jogar a chave fora. Deixar tudo lá dentro como está, não trazer nem uma agulha sequer, nem uma poeira. Nada. Porque há casas que são assim, como essa sua onde você veio se meter: inutilidades completas, cheias de pormenores irrelevantes feitos só e apenas para confundir a sua cabeça, dando a entender, fazendo de conta, parecendo que... e nada. É só vazio. A única coisa que tem dentro dela são as coisas que você construiu. As prateleiras esculpidas na parede para guardar lembranças de viagem. Os armários à espera das colchas tecidas, dos fios trançados. As panelas e os pratos e os talheres aguardando o almoço feito por alguém que não você. Você não vê?

All that you touch
And all that you see
All that you taste
All you feel
And all that you love
And all that you hate
All you distrust
All you save

É nada. Você não vê?

Vamos até o ponto mais alto da cidade, o vento fazendo seu serviço do lado de fora do carro. Ela se encolhe no banco. Não me ouve, só olha pra dentro de si mesma. A casa está dentro dela. Este é o lado escuro da lua.

Digo-lhe as palavras óbvias: melhor (claro) é não se ocuparem nunca jamais casas assim. Não se permitir a morada em mofo pintado pra parecer reformado. Mais tempo, menos tempo, o mofo aparece, junto com a sua pestilência. Mas às vezes entra-se numa, porque era preciso, não tinha jeito, faz parte e esse longo etcetera que seus amigos (eu incluída) tentarão usar para consolo, embora todos eles e você mesma saibam, de antemão, que não passam de desculpas pra aliviar a alma. E nessa hora de agora, essa hora precisa, aqui paradas dentro do carro em frente ao abismo de pedra: não é alívio. É tormento. Seus olhos dizem-me isso. E eu calo-me.

Quero dar-lhe a mão. Abraçá-la. E só quando percebo que é a chave da casa que ela tem na mão é que me dou conta. Por isso a casa dentro dela. Por isso seus olhos as janelas escancaradas gritando crueldade em silêncio. O sangue escorre por dentro dos seus olhos, e eu não consigo estancá-lo. E dói, como se fosse em mim, esse sofrer calado. Digo-lhe: entregue-me. Eu jogo. Lá do fundo do seu olhar alguém se contorce dizendo não. Alguém dentro dela luta. Quem é essa, que diz não à salvação?

Largue essa chave. Pare de procurar luz onde a escuridão cravou sua garra. Você não vê? As janelas não abrem, a porta é emperrada, essa casa que você insiste em querer arejar está cheia de pregos e tábuas, como cidade abandonada no velho oeste saqueado. São só restos, amiga minha. Só restos de mil vidas mal vividas, todas elas lado a lado, todas elas estendendo mãos e recebendo facas. E quando digo "mil vidas", quando a olho do fundo dessas mil vidas, seus olhos se espantam, e as mil vidas se espantam neles, e a mão abre-se por fim.

Agora, não a vejo, junto ao abismo. A neblina acompanhou-a até à borda. Percebo um movimento da sua sombra na direção do vazio. Uma luz brilha um instante e cai. Espero que seja a chave, digo em voz alta. Abro os olhos, e acordo.




Pela janela

Foi dessa janela, numa tarde de junho. Sabe aquelas tantas coisas que ela lhe dizia? Escaparam-se pelo flanco dessa cortina branca. Tanto tempo guardadas, com fome de ouvir, com fome de ser. Tanta fome, tanta. Cansaram-se, perderam o timbre, o brilho, o frescor juvenil dos encontros.

E ela foi-se, com as palavras, sem esperar sequer que eu lhe abrisse a porta. Disse-me, antes de passar a segunda perna pela abertura na parede, "portas? são espaços traidores". E é ao meio termo que ela se referia (já tínhamos conversado sobre isso): portas entreabertas. Coisas assim. Não, não deixe de ouvir o que mais ela disse antes de sair e deixar a cortina impecável, branca, na parede branca, essa paz pintada para enganar os trouxas.

Daquelas coisas que ela lhe dizia, veja: arrependeu-se de várias. Em segredo, sei que saiu para erguê-las do chão onde ficaram caídas (as coisas que lhe disse), como pérolas opacas, órfãs de ostra e colar. Deve estar, neste momento em que falamos, tentando reerguê-las, limpá-las, acalentá-las, dizer-lhes: "não fostes vós, mas a falta de dedos". Não sei se pérolas voltam à vida depois de esmigalhadas.

Ela lamenta, deixou escrito aqui num papel. Lamenta como um pássaro colhido dentro da gaiola, um pássaro a quem lhe cortaram as asas, um pássaro atingido pela pedrada sádica. Deixou as caixas todas em cima do armário. Vazias. Acho que ela não lhe deixou nada.

Só quero dizer-lhe, agora, que a vida é bem maior. E depois dissp saiu cantando. Disse que a terra é profunda. E eu me lembrei: a cova pode ser rasa. A terra é profunda.


Foto: Não é, mas podia ser do Antonio Claret, que foi quem a trouxe.


28/12/2015

O império do eu


Jonas voltou pra casa arreliado com a placa. Até fotografou. Ficou matutando no erro que tinha ali, e Maria dizendo deixa disso, tem erro não, vem deitar que eu faço você esquecer essa confusão, vem.

E Jonas nada. Encasquetado.

Sentou na cozinha. Acendeu a luz por cima da mesa. Passou um café.

Tentou discriminar, como lhe dizia seu primo Beto que devia fazer na vida. Botar as coisas certas de um lado, as erradas de outro. Assim, bem preto no branco e branco no preto. Ficou lembrando das palavras da placa. O café queimando na xícara de esmalte.

Meu Deus.

Já começava assim de um jeito que incomodava, essa mania das coisas serem minhas/nossas, tuas/deles. E Deus lá gosta de ser propriedade de alguém? Tomou mais um gole, apoiou a cabeça na palma da mão, deu um suspiro, olhou pra porta entreaberta do quarto.

Meu Deus.

Importante era o EU, assim nessa letra garrafal, dava pra ver de longe, maior que tudo. E do lado o motociclista, estendido ao comprido, dando mesmo a entender que era Outro, e não EU. EU estava passando por baixo da placa, aliviado que fosse Outro e não EU estatelado no asfalto. Com vida ou sem ela. A placa fazia prever o pior.

Podia ser EU.

Mas não era, e assim (mesmo Jonas) passara com alívio por baixo da placa, tomando cuidado para não ser ele o Outro na próxima esquina.

Lembrou-se do Beto. Com a mão, colocou um Deus invisível de um lado da mesa (esse é o lado certo, falou pra xícara). Do outro, o Meu. Do lado certo, o podia ser (porque tudo Deus pode, e por isso tudo podia mesmo ser, pensou mas não disse). E, do outro, Eu.

Depois trocou. Mesmo ele ficou arreliado do Eu ficar do lado do errado. Manteve Deus do lado certo, metade por teimosia, metade por fé. E trouxe o Eu pro lado dele. Deixou o podia ser do lado de lá, e levou o meu pra acompanhar. E antes mesmo de terminar o café já tinha formado uma nova frase.

Eu, Deus, podia ser meu.

Maria nem abriu os olhos quando Jonas se deitou, num abraço desmanchado em sorriso horas depois.


24/12/2015

Para 2016, com duplo amor

Abro as mãos, e abro os olhos. Por entre os veios de um ano duro, vejo dedos antigos tecendo raízes submersas, erguendo galhos caídos, sustentando hastes quebradas, desviando uivos aflitos. Este ano que acaba é um ano de milagres, desses de todos os dias, desses que, se deixarmos e não olharmos, se despedirão de nós invisíveis. Talvez precisem repetir-se até deixarmos de ser cegos. 

Será preciso redobrar o olhar e o coração. Limpar duas vezes o que não fomos nós a sujar. Brilhar duas vezes na escuridão que se formar. Sorrir duas vezes para quem um insulto atirar. Desfazer nós, embaraços, trabalhos. E acender todas as velas, todos os dias e todas as noites, dentro e fora de casa, dentro e fora do peito, dentro e fora da certeza. A todo custo, e a todo preço, aproximar-se em vez de afastar-se, correr riscos, subir alturas, descer abismos e enfrentar quaisquer feras. Este que começa logo ali será um ano de precisão de força, e só se chamará fraqueza se a ela dermos nome e alimento farto. Venha 2016 limpo e livre, com as escuridões e os tropeços que nos fortalecem, e humanizam, porque tudo, mas tudo mesmo, um dia passa. 

Mas que nada nem ninguém passe impune, nem sem sentido. Que o que passe por nós nos atinja, nos afete, nos torne mais dos outros que de nós mesmos, ainda que derrube nossas proteções, fustigue nossos músculos, triture as nossas vísceras. Que nos sobrem coragem e entrega, e em nós se fortaleça o lugar do não esconder-se. E que ao medo, e à vergonha, e à dúvida, ofereçamos apenas uma palavra: só amor, e mais nada. Só amor, e mais nada.



23/12/2015

Museus e palavras

Não sei se o mais impressionante foram as chamas avançando sobre a torre da estação da Luz ou as imagens aéreas do prédio do Museu da Língua Portuguesa e os destroços queimados do seu telhado. Como muitos, fiquei sem palavras - todas elas arderam dentro da tela do meu computador.

Tive o privilégio de visitar várias vezes o Museu. A sorte de apresentá-lo a muitas pessoas queridas, filhos, alunos, amigos, conhecidos. Tornou-se roteiro obrigatório nas idas a São Paulo. 

Da primeira vez, fui sozinha, desconfiada dessas manobras com que a nossa civilização gosta de ensombrecer as coisas: colocá-las dentro de caixas para podermos tê-las sob controle. Mas me rendi, logo no primeiro andar, diante daquele "Grande Sertão: Veredas" aberto como flor para tirar o fôlego (de novo), reinventando Rosa de um jeito que (desconfio) ele gostaria. Elevador acima, mais uma rendição diante do corredor plural de imagens e sons e gentes. Como andar sem parar? Foi preciso sentar. Muita informação. Muita. Disponível e em forma de encantamento, parecendo depender das nossas mãos para se abrir. Pra lá e pra cá, grupos de estudantes com roteiro de visita a tiracolo, não sei se ajuda ou impedimento. Para onde foi a experiência primeira, sem mediações, das coisas? pensei eu. E sorri pra eles e arrisquei um "deixa o roteiro pra lá, se encante sozinho".

Como um amor que pede tempo, frequência, profundidade, foi preciso revisitar. Encontrar pretextos. Tropeçar sem querer na estação errada de metrô e decidir que já que chove, já que venta, já que muito sol, já que quase cedo, já que ainda tarde: ir ao Museu outra vez. E, em todas essas vezes, mil temporalidades surpresas, de Machado a Cora, de Oswald a Pessoa, de Jorge Amado às mídias em encontro e à provocação do "menas". Tudo sempre diferente e tudo sempre igual.

E, ainda por cima, e literalmente por cima, o terceiro andar, essa invasão inesquecível de som, escuridão e palavras, esse universo chamado palavra que é onde mais gosto de morar. E eu acostumei-me a começar a visita antecipando o gozo final, essa certeza de que o amor está onde o vimos a primeira vez, e também por isso garantindo a dose de lágrimas quase rotina. Como chegar ao lugar de pertencimento, e nele mergulhar e ser chamada, conduzida, levada. 

Da segunda vez, com um grupo muito querido de alunos, misturou-se isso ao privilégio de poder levar os outros a esse mesmo lugar, e abrir ao amor essa porta do compartir. E como choro se contagia, éramos um ônibus inteiro emocionado. Esse ritual do choro permaneceu até há poucas semanas atrás, numa que afinal foi a última visita, com amiga que nutre pela palavra amor aparentado.

O Museu deu-me respostas. Abriu-me indagações. Estendeu-me tapetes e tapetes de motivos para escrever. Guardo uma porção deles, detalhes daqui e dali, dispersos por cadernos que não sei onde guardei. Talvez não vejam a cor do dia, mas são testemunhos do poder do que não é matéria. Mais que um museu com coisas, um museu feito de palavras, essas que se reinventam e se escrevem, e depois se apagam e se tornam a escrever. Porque a rigor, se for pensar bem, a palavra é chama e precisa arder. Continua onde sempre esteve, e onde sempre está, nesse mesmo lugar de onde tentamos arrastá-la e deixá-la presa, fixa, ao alcance das nossas mãos terrenas. Porque dispersa e livre é mais difícil de se relacionar, mas é onde é mais e maior.

Rodeada pelas águas do rio Capibaribe dias atrás, debruçada na amurada de um barco, procurava o perfil de João Cabral na margem como se dele dependesse a minha sanidade inteira. Tanto as águas quanto as chamas passam. E eu (descubro) só tenho em mim as palavras que teço. Não importa se para quem as escrevo as lê. Nem sequer se a quem pertencem as percebe. Palavra é universo feito liberdade, avesso às paredes de quartos e salas, tecido escorregadio e invisível. Não são precisos museus para guardá-la, nem dinheiros que lhe paguem a existência. É ela quem nos guarda. E é com ela que guardamos.

02/11/2015

Uma longa história sobre a sombra

Bom dia, este, para pensar no após-a-vida. Onde estão, de uma forma ou de outra, todos estes que se festejam hoje, ou se lembram, ou se homenageiam. 

É provável, penso eu, que um período escuro atinja quem passa para o outro lado. Como quando se fecham os olhos ao dormir, e tudo fica escuro. Considera tu que lês que o sono é uma pequena morte, e terás diante de ti a dimensão da falta de luz.

Ou pensa no parto. Nesse que nos nasce do lado de cá, enquanto morremos do lado de lá, esse lugar de onde vimos antes de atravessarmos as cortinas aquáticas da vida terrena. E para onde voltaremos (proponho eu que assim consideres) quando atravessarmos de volta essa mesma fronteira, esse limite entre estados.

Pois bem. Em algum ponto dessa passagem está o mundo da sombra. E é dele que me aproximo, com cuidado para não despertar-lhe vontades vorazes de perceber onde estou. Como veremos, a sombra não descansa.

É longínqua, a origem dessa palavra. Longínqua e testemunha da riqueza da nossa língua.

Situa-te, por favor, em 1100 a.C. Estás a bordo de um navio feito de cedro-do-líbano, madeira de fibras homogêneas e aromáticas, com um sem fim de usos mágicos e litúrgicos ao longo da história. Carregaste-o na tua cidade-estado natal, Biblos, e dentro dele disputam espaço peças de tecido, caixas de porcelanas, vidros bem embalados... A um canto, vinho grego para os egípcios; a outro, papiro egípcio para os gregos. Biblos, essa tua cidade, será imortalizada em breve pelos teus compradores gregos. Byblos, foi como os gregos batizaram os papiros que lhes levaste, os melhores dentre os melhores. Nós, aqui, tantos séculos depois, dizemos "biblioteca" e dizemos "Bíblia". Nada escapa à história das palavras. E toma nota: és fenício.

Navegas com vento sobranceiro junto à linha costeira, a meio caminho entre Grécia e Inglaterra, suprindo as mais de 300 colônias que teu povo formou, sem guerra nem conquista, antes conversas consentidas. Chegas por fim ao extremo da costa sul da península onde habitam, entre outros, os íberos. Lá, o teu foco é a pesca e a salga do que pescas, e depois comerciarás em algum outro ponto da tua rota. Trocas as tuas peças por estanho, por prata, por cobre. Conversas e escreves, nos papiros que trazes, aquilo que a memória não pode trair. Contigo trazes um presente inestimável.

A tua escrita. O teu alfabeto fenício, o primeiro desta península. Vinte e duas letras, todas consoantes, primas próximas do hebraico, do aramaico, do assírio, do acádio, essas línguas que floresceram nessa região que hoje chamamos Líbano. É de lá que vem o teu navio fenício.

Deixas com a tua escrita algumas marcas - e falo-te agora de uma, apenas. 

şl 

Essa é a palavra fenícia que pronuncia aquele à procura de sombra e proteção. Corresponde mais ao objeto que produz a sombra, do que à sombra em si mesma. Estás em busca de um teto que te abrigue num dia quente do fim de agosto, ou talvez à procura de uma tenda que proteja o peixe que salgaste, ao cair da tarde de um mês de outubro. Deixas-te descansar quando a encontras. E passam os anos às dezenas.

Quando acordas, o mundo é outro. Está tomado por um povo conquistador; agrupam-se ao teu redor legiões, coortes, centúrias, soldados. Tudo isso te é estranho, mas vês que procuram algo, e quando te ergues perguntam: 

Umbra?

O que eles procuram é um lugar à sombra. Não lhes interessa tanto aquilo que a provoque, apenas querem esse território fora do sol, protegido, em que possam repousar e descansar de talvez uma longa batalha.

Deste lugar em que te escrevo, tantos séculos já passados, a palavra que quero apresentar-te é um raro caso da tua palavra fenícia em junção à palavra latina deles:

soombra

dissemos durante anos. E, agora, dizemos

sombra.

E quando sombra dizemos, estamos atentos aos dois vossos legados: queremos o território que nos protege, e queremos também saber o que é que provoca esse espaço fora da luz do sol. Algo, nesse passado em que estás, nos alerta. Toda sombra tem motivos, e é da qualidade do objeto que a produz que os deduzimos e percebemos.

Tantos motivos tem a sombra, que me dedicam um tempo para entendê-la em profundidade. Não mais te ocupes, diz-me aquele que vive lá e cá, da sombra que te oferece a copa das árvores do quintal. Agora, a sombra tem maiúscula. Essa Sombra não descansa, ao contrário do que se pensa, e é especialista em se fazer passar por outras coisas. A raiz do seu espaço é profunda e imersa; não é lugar de visita, nem de descanso e repouso, nem sequer onde se tentem abrir os olhos. O ideal, ao que entendo, é passar longe dela e saber de quem se valer se for preciso interceptá-la.

A Sombra procura sem cessar. Nada deixa escapar, nem ninguém. O caminho de quem tem dentro de si a centelha (e todos a têm, criados que foram a partir da essência divina que tudo criou) é a evolução, e evolução é o caminho em direção à luz. Por isso, a sombra não sossega, esteja ela no limiar ou no abissal.

Entre aqueles que ocupam, por merecimento, vontade ou escolha, os lugares à sombra da luz, há aqueles que os patrulham, e há aqueles que neles se afundam. Os primeiros assumem o papel de guardiões; em vigília constante, mantêm a sombra dentro de seus domínios. Os segundos, pelas próprias ações, ocupam as regiões mais escuras, e dirigem seu olhar para o terreno da luz, que invejam, desejam, querem e tudo fazem por possuir.

Deste nosso lado da existência, onde procuramos sombra que nos abrigue, é preciso saber qual objeto (ou força) a produz. Aqui, encarnados, nadamos em nosso próprio e livre arbítrio. Da observação das forças em movimento deverá vir essa escolha livre, e entre nós estão aqueles que ligam as suas almas às dimensões sombrias. Por descuido, por interesse, por desejo, por desaviso - em algum ponto, sempre, há a escolha. 

Não descansam, nem os uns nem os outros. Alertas sempre, estudam e mapeiam os terrenos iluminados. É esse o seu alvo, o fruto mais vivo do seu desejo e é porque não lhes pertence que não descansam nunca. 

Quem pensa que amor e bem sempre vencem, se equivoca. Porque o ódio, a raiva, o ciúme, o mal... O mal jamais descansa - em agonia constante por não alcançar a luz, entrega-se ao domínio sem sono. A luz pode repousar em si mesma, abandonar-se à vibrante irradiação de completude que é sua essência final. A sombra, jamais. E por isso o perigo e o alerta: aqueles na luz, orai e vigiai, permanecei alerta, em atenção serena aos desdobramentos sombrios que tudo manipulam e revertem.

Não se subestime o poder (e a constância) das forças da Sombra. Separe-se a sombra que se projeta sobre o solo, do objeto que a faz nascer. Examine-se. Discrimine-se. Saiba-se quem é uma, e quem é outro. A quem servem. Da confusão entre as forças da sombra, no relevar o dano que causam, nasce seu filho mais triste. A treva. A noite eterna. A escuridão sem luz.




Imagens
"Estrela urbana", de Giovani Ferreira
Alfabeto fenício, wikipedia
Fontes 


18/10/2015

Águas sagradas


Domingo, primeiro dia da semana, é boa oportunidade para banhos que abram caminhos. O que está estagnado, impedido, cerceado em seu andamento, beneficia-se de ervas que dissolvam impedimentos. Para abrir as portas desta semana com novos horários, logo lembrei de peregun.

A farmacologia medieval, e antes dela a antiga ciência herborista chinesa, já conheciam a família das dracenas. A mais renomada era a draacena draco, conhecida pelos chineses como xue jie. Nativa das Canárias, a resina da também chamada sanguis draconis (ou sangue-de-dragão) foi um importante produto de exportação do arquipélago de raiz africana e colonização espanhola. A forte oxidação da resina quando em contato com o oxigênio rendeu-lhe o nome avermelhado. Nos Açores é conhecida como Dragoeiro, e de lá nos vem a informação das suas propriedades também tintureiras. Tendo a achar que as ervas usadas em tinturaria têm uma forte presença naqueles momentos em que é preciso mudar a coloração e, por isso, considero-as importantes coadjuvantes nos processos de transformação interna.

Na farmacologia chinesa, o sanguis draconis é indicado como erva para revigorar o sangue e dissolver estases (ou seja, estagnação de líquidos vitais, como o sangue, ou a linfa); estanca sangramentos, se aplicada topicamente; e protege a superfície de úlceras, regenerando os tecidos. E, de uma forma ou de outra, a família das dracenas carrega em si essa capacidade primordial de dissolver lugares onde algo estagnou. A energia que contêm em seu interior abre, liberta e gera potência.

Há, entre nós, dezenas de dracenas - e todas elas parecem seres mitológicos, brotando com facilidade e crescendo com pujança. A que costumamos ter no jardim, ou mesmo dentro de casa, é a draacena fragrans (o nosso "pau d'água"), que nos chega diretamente da África. É uma das principais ervas rituais do candomblé e, entre as religiões ligadas aos Orixás africanos, é conhecida como peregun. Também na umbanda é uma das ervas sagradas, indicada para abrir caminhos - especialmente caminhos internos. 

Em iorubá, peregun junta as palavras -, que significa chamar, e egun, que significa espírito. É por isso uma erva fundamental na chamada dos espíritos à terra, assim como no desenvolvimento mediúnico dos filhos-de-santo. Em algumas regiões da África, como no distrito rural de Bushenyi, em Uganda, o peregun é usado para induzir o trabalho de parto, abrindo as portas para a chegada de um novo espírito à Terra. 

O orixá Ogum é o primeiro a permear o peregun com a sua energia de abertura de caminhos, de dissolução de impasses. É a ele que o peregun de folhas inteiramente verdes se consagra. A variedade verde-e-amarela impregna-se da irradiação de Iansã, que atua em tudo aquilo que está estagnado - varre com seu vento e modifica com a sua tempestade as situações e as pessoas imobilizadas, travadas no seu agir. Para os chineses, o sanguis draconis atua nos meridianos do coração e do fígado - o sangue, veículo da nossa individualidade, e o fígado, onde se reúnem e se processam (ou não) todos os nossos conteúdos emocionais.

E por isso penso que o domingo é um bom dia para um banho de peregun. Um banho preparado com a maceração de três ou cinco de suas grandes folhas, em água fria, mentalizando e invocando a irradiação do qualidade divina daquele que abre caminhos. A água logo se colore de verde forte, e o ar com o cheiro da mata, materializando a presença de Oxóssi e das suas bênçãos, agregando à dissolução de impasses a chama sagrada da criatividade e do conhecimento.

Os meus olhos perdem-se no verde aquático, e sei que os olhos de Vó Chica me acompanham, conduzindo os meus movimentos, o meu sentir e o meu pensar. Nela, recolho-me. Nela, aquieto-me. Nela, aprendo que só nesse recolhimento as ervas se abrem e se oferecem. Em silêncio e em oração internos. Não há melhor maneira de começar a semana.





Fontes:

http://www.cefimed.com.br/arquivos_formulas/pdf/formulas.pdf
https://ocandomble.wordpress.com/2015/05/29/peregun-a-folha-ancestral/
Imagens: 
Dracena Draco: divulgação
Dracena fragrans: Mário Franco