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24/12/2015

Para 2016, com duplo amor

Abro as mãos, e abro os olhos. Por entre os veios de um ano duro, vejo dedos antigos tecendo raízes submersas, erguendo galhos caídos, sustentando hastes quebradas, desviando uivos aflitos. Este ano que acaba é um ano de milagres, desses de todos os dias, desses que, se deixarmos e não olharmos, se despedirão de nós invisíveis. Talvez precisem repetir-se até deixarmos de ser cegos. 

Será preciso redobrar o olhar e o coração. Limpar duas vezes o que não fomos nós a sujar. Brilhar duas vezes na escuridão que se formar. Sorrir duas vezes para quem um insulto atirar. Desfazer nós, embaraços, trabalhos. E acender todas as velas, todos os dias e todas as noites, dentro e fora de casa, dentro e fora do peito, dentro e fora da certeza. A todo custo, e a todo preço, aproximar-se em vez de afastar-se, correr riscos, subir alturas, descer abismos e enfrentar quaisquer feras. Este que começa logo ali será um ano de precisão de força, e só se chamará fraqueza se a ela dermos nome e alimento farto. Venha 2016 limpo e livre, com as escuridões e os tropeços que nos fortalecem, e humanizam, porque tudo, mas tudo mesmo, um dia passa. 

Mas que nada nem ninguém passe impune, nem sem sentido. Que o que passe por nós nos atinja, nos afete, nos torne mais dos outros que de nós mesmos, ainda que derrube nossas proteções, fustigue nossos músculos, triture as nossas vísceras. Que nos sobrem coragem e entrega, e em nós se fortaleça o lugar do não esconder-se. E que ao medo, e à vergonha, e à dúvida, ofereçamos apenas uma palavra: só amor, e mais nada. Só amor, e mais nada.



31/12/2013

A pele das paredes

O ano acaba com a raspagem da pele das paredes. Para que uma nova tinta possa fixar-se. Uso uma espátula, e vou deixando marcas no reboco antigo. Não é toda tinta que sai com facilidade: é preciso energia e determinação. Há trechos que se agarram com afinco, não se deixam retirar. Em outros, a pele de tinta descama-se, em longas tiras, como pele velha de fato, que não resistisse à ação do tempo e se desvestisse de si mesma. As minhas mãos sorriem, quando isso acontece.

As marcas no reboco olham-me através desse tempo longo de silêncio que se constrói entre as paredes que me cercam e eu. As minhas mãos estão ressecadas, o pó de tinta entranhado em cada poro. 

A pele da parede reveste a pele do meu corpo.

Paro para escrever uma palavra aqui, outra ali. Termino uma parede e vou à tinta. Cal de cores que crio sem pensar. As paredes não me dizem da tonalidade que querem. É um exercício de adivinhação e esperança. Vários tons, várias paredes. A pele é imprescindível, escrevo. Nosso ponto de contato com o universo mais interno da estrutura da casa. A pele é o mais profundo, escrevia Valéry. Seu sentido mais extenso. Sua percepção mais nítida. Gosto das marcas do tempo e da vida na minha pele. Pessoas tatuadas em alto e baixo relevo. A pele da parede não tem afrescos. A minha pele tem - não posso retirá-los, são pura obra de arte, recentes e antigos num tempo presente. Como os afrescos da casa de Portinari, escrevo. As estrelas no céu da capela. Acho que amanhã vou a Brodowski, escrevo. Gosto de projetos. Amanhã vou a Brodowski.

É uma responsabilidade e tanto, cuidar da pele-tinta de uma casa. Não sei se estou apta. Olho a tinta da minha própria pele e esboço a dúvida no gesto. Melhor que ocupe as mãos e desocupe o pensamento. Assim como escrever, raspar paredes é um ato de fé. Na própria capacidade de discernir o que é tinta, o que é reboco; o que é pele, o que é alma; o que é próprio, o que não pertence. Qual a medida das coisas. Qual o tamanho das almas. Qual a frequência do toque. Enquanto isso, e nos minutos que inauguro, os pingos de cal grudam o pó da parede à minha pele.