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31/12/2013

A pele das paredes

O ano acaba com a raspagem da pele das paredes. Para que uma nova tinta possa fixar-se. Uso uma espátula, e vou deixando marcas no reboco antigo. Não é toda tinta que sai com facilidade: é preciso energia e determinação. Há trechos que se agarram com afinco, não se deixam retirar. Em outros, a pele de tinta descama-se, em longas tiras, como pele velha de fato, que não resistisse à ação do tempo e se desvestisse de si mesma. As minhas mãos sorriem, quando isso acontece.

As marcas no reboco olham-me através desse tempo longo de silêncio que se constrói entre as paredes que me cercam e eu. As minhas mãos estão ressecadas, o pó de tinta entranhado em cada poro. 

A pele da parede reveste a pele do meu corpo.

Paro para escrever uma palavra aqui, outra ali. Termino uma parede e vou à tinta. Cal de cores que crio sem pensar. As paredes não me dizem da tonalidade que querem. É um exercício de adivinhação e esperança. Vários tons, várias paredes. A pele é imprescindível, escrevo. Nosso ponto de contato com o universo mais interno da estrutura da casa. A pele é o mais profundo, escrevia Valéry. Seu sentido mais extenso. Sua percepção mais nítida. Gosto das marcas do tempo e da vida na minha pele. Pessoas tatuadas em alto e baixo relevo. A pele da parede não tem afrescos. A minha pele tem - não posso retirá-los, são pura obra de arte, recentes e antigos num tempo presente. Como os afrescos da casa de Portinari, escrevo. As estrelas no céu da capela. Acho que amanhã vou a Brodowski, escrevo. Gosto de projetos. Amanhã vou a Brodowski.

É uma responsabilidade e tanto, cuidar da pele-tinta de uma casa. Não sei se estou apta. Olho a tinta da minha própria pele e esboço a dúvida no gesto. Melhor que ocupe as mãos e desocupe o pensamento. Assim como escrever, raspar paredes é um ato de fé. Na própria capacidade de discernir o que é tinta, o que é reboco; o que é pele, o que é alma; o que é próprio, o que não pertence. Qual a medida das coisas. Qual o tamanho das almas. Qual a frequência do toque. Enquanto isso, e nos minutos que inauguro, os pingos de cal grudam o pó da parede à minha pele.

23/02/2013

A pele e o afeto

Num dos comentários a este blog, algumas semanas atrás, uma minha tia muito querida queixava-se, além mar, da minha escrita brasileira, que lhe dificulta a leitura do que escrevo. Concordo com ela, às vezes preciso mudar o meu registro linguístico, porque sei perfeitamente que escrevo mais para o leitor brasileiro do que para o lusitano, o que leva a algumas escolhas. Pode ser que seja um engano, mas assim é. Nesse processo que gravita entre o semântico e o lexical, algumas palavras complicam-me a vida mais do que outras. 

Demorei um tanto de tempo, por exemplo, para me acostumar com a palavra "vivenciar" (portugueses entender-me-ão). Não há como fugir dela ao pensar em educação nos tempos de hoje: na pedagogia waldorf, por exemplo, a vivência das coisas é o degrau a partir do qual se sobe a qualquer lugar. Não sei em que ponto andará este vocábulo pelas areias de Portugal. Houaiss foi de grande auxílio, incorporando-o ao léxico em (creio) 2009. Talvez tenha sido antes. De qualquer forma, meno male.

Vivenciar é coisa diferente de viver. Quem vivencia uma dada situação, deixa-se afetar profundamente por ela. (Quem diz isso não sou eu, é o Houaiss.) Já se sabe que podemos ir pela vida afora sem sermos afetados pelas coisas, muito menos profundamente. Assim, vivendo, simplesmente. Mas é o ser afetado que faz a diferença: o ser quando se imbui de afeto. 

Não à toa, referiam-se os latinos a affectus para indistintamente se referirem a afeto, paixão e amor; entendiam-no como condição, disposição e estado - tudo isso junto ou de forma separada. Para desenvolver afeto, diz-nos ainda a preciosa etimologia, é preciso tanto ser possuído quanto dotado dele. O afeto afeta-nos, permite-nos estados de transformação internos que o cotidiano por si só não permite. O ser afetado é o ser imbuído de desejo, de aspiração - de afeto vivenciado, tudo aquilo que o sujeito torna representativo dentro de si.

Situações às quais nos ligamos através do afeto transformam-se em outras muito diversas. Ontem, só por causa do afeto, terminei o dia numa palestra que chegou sem aviso prévio. Não sabia muito bem do que se tratava, mas minha companhia queria muito assisti-la. Fui, pelo afeto que tenho por ela, e lá estive presente imbuída de afeto, basicamente porque reconheço, cada dia mais e a duras penas, ser condição necessária à minha subsistência.

A palestrante, Marcy Axness, apresentou seu livro (Parenting for peace) e as suas constatações do quanto é necessária uma nova forma de educar para que tenhamos um mundo futuro mais pacífico. Uma nova forma de educar que envolva e parta do mais puro e primordial afeto - aquele que nos faz ir na direção do outro a partir das suas necessidades. Claro que a sua fala não foi essa (quem lá estava talvez não reconheça o que digo!), mas foi assim que a entendi e signifiquei dentro de mim. Colocar-se no lugar do outro, a verdadeira (e única) forma de compreender alguma coisa a respeito dele (e assim ter qualquer papel educador), pode ser um processo impactante e intenso. Se imbuído de afeto.

Paul Valéry dizia que o mais profundo é a pele. Marcy fala de inteligência celular. Localiza-a na membrana, o órgão capaz de dar e receber. Observo-a, na imagem que escolho por entre tantas que o google me oferece, e vejo a pele que nos demarca e contorna, colocando-nos em contato uns com os outros, células de uma vida que não se constrói a sós. Uma membrana tecida com poros como os nossos, que podem oferecer e absorver afeto. Não lhes é uma condição dada, talvez não dependa deles, mas do afeto que colocamos em disponibilidade ao afeto do outro, para sermos ancoradouro e navio ao mesmo tempo. Afinal, para que tudo valha a pena, é imprescindível que a alma não seja pequena.




Interessou-se pelo livro de Marcy Axness?