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11/07/2021

Zé do Laço em noite de Lua Cheia

Zé do Laço, boiadeiro forte e formoso, gosta de noite estrelada. Alumiado pela Lua Cheia, retesa o laço em sua mão e despende golpes certeiros no pasto seco. Grita "Ê boi!" e nada lhe escapa - nem o novilho querendo furar o cerco, nem o boi velho olhando com tristeza o chão onde não se pode deitar. Acorda a boiada e chama os demais boiadeiros - "Vam'bora aproveitar a noite, que a Lua Cheia abençoe e o céu seja o teto de nossas cabeças!"

É noite de São João, também. E Zé do Laço, que nem católico se declara, aprecia os folguedos, gosta da fogueira, entra na roda com assobios e gritos de alegria. Podem parecer de outra feição, mas é de pura alegria. Chega perto dos músicos, gosta do galope que escuta. Seus olhos claros gostam do que é puro, do que é verdadeiro, do que se levanta da mesma forma que se deita. Subterfúgios não fazem parte da sua cartilha.

E se afasta. Dois, três, vinte passos. Corridos e desgalopados, em marcha a ré, vendo sem olhos os tocos de que desvia. Vê o todo, percebe o desalinho de um lado, o encantamento do outro, o despreparo logo ali, a entrega, a presença, a alegria, o pouco ou muito entendimento - com o coração, não com os olhos. "E não é visão", segreda-me ele baixinho. "Isso que tu vês não é visão, é sensação de outro mundo encostando neste daqui. Aprende a ver desse jeito para escapares das mentiras deste mundo. São muitas, e andam te caçando. Reverte teus passos, filha minha, endireita essas costas e dá rédea pra tua cavalgadura. Tem léguas de caminho pela frente, e a escolha tá feita: não é agora que ninguém vai arrepiar caminho. Se botas o olho no atrás, o que vais ver é o atraso em que te ficaste, e ressentir de novo com isso, e perder o alinhamento dos passos."

E repentino se cala, e grita"Ê boi", e corre pra roda, pra apertar o menino que quer se desalinhar na moça. "Fique quieto, seu moço, que ainda não está na sua hora. Cuide de sua montaria, olhe bem o tamanho dos passos: tu tá é querendo dar uns galopes com pernas fracas de criança imberbe. Sossegue, menino, sossegue."

Olha de longe um outro (eu posso vê-lo daqui, seus olhos parecem faíscas), e ao mesmo me pergunto se ainda me dirá alguma coisa, se tem uma coisa que busco sempre é instrução. Foi só pensar. Ele me olha, de um lugar fundo que está dentro de mim mesma, e numa volta rápida de olhos que me desconcerta - o tempo todo, ele me vigia?

"Ora veja. Instrução é todo dia, cada madrugada que tu olha pro céu e vê esse tanto de estrela, que alumia sem se aborrecer com quem aproveita sua luz. Vê tu, filha minha, se as estrelas se ocupassem de quem as aproveita, estavam todas era tristonhas. O importante é brilhar no seu lugar, quieta e fazendo sua parte. De longe, o que nós vemos é a constelação. De dentro dela, é quase nada que se vê. Quando se cavalgam estrelas, é preciso confiar que tem uma porção delas cavalgando junto. Senão, é sentir solidão, ficar acabrunhado, entristecido. E pra quê? Pra descobrir (e isso é só muito mais tarde, na hora do pó chegar) que havia muito mais luz na estrela pequena do que no lampião que ardia em cima da mesa. Sossega tu também, e faz teu trabalho."

Seu Zé do Laço só gosta de trabalhar debaixo de céu. Não entra debaixo de teto nem pra comer, nem pra dormir, nem pra dançar, que é graça que adora. Se lhe dão coberto, desaparece. Aliás, nem aparece. Sua existência é livre e aberta, e é para que saibamos do que se trata que ele vem assim, gritando pra sua boiada, que desce os morros, atravessa os rios, galopa as veredas verdes e abertas. Chega de todo lado, a boiada, e é tanta, mas tanta, que cansa os olhos querer contar as cabeças. De longe, quem vê, é só poeira suspensa no ar. Só um alevante de chão fino que colore o horizonte de laranja. Cor de terra é cor de boiadeiro, e o berrante que ainda não se escuta já se anuncia no longe.

Zé do Laço afirma o cabo e faz relampejar outra vez o couro no chão. Só escuta quem ele permite, e é faísca e relâmpago ao mesmo tempo, o estampido de quem gosta de cortar o mal no primeiro golpe, assim, na raiz, fundo e preciso. Assim se vai, dando passos atrás pra que ninguém lhe ameace as costas. Bate os pés no chão poeirento e manda a tropa subir: pras alturas, minha gente, que os bois já deram dianteira!".


Foto: Beatriz Castilho

22/07/2016

Con-cordar


Desde o dia em que te vi, Juraci
nunca mais tive alegria
Meu coração ficou daquele jeito
Dando pinote dentro do meu peito


Na época em que se falava latim, cor, o coração, era a sede do conhecimento humano. Tudo ali se resolvia e se firmava. Se batia no coração, era porque valia a pena. Se passava por dentro dele, era porque valia a pena. E tudo o que valia a pena se guardava do lado esquerdo do peito. As evidências são muitas, e as que vou apresentar são todas etimológicas (porque, veja: se a Palavra é o dom mais humano, muito divina deve ser toda significação que uma palavra possa ter tido no início dos tempos e em todo o seu transcorrer).

De cor (que era, portanto, coração) surgiu coraticum, coragem, a qualidade que mora no coração. E surgiu também cordatus, que é aquele que tem prudência. E ainda concordare, que são dois corações que estão juntos. Con-cordam.

Poderia você pensar que concordar fosse duas pessoas dizerem sim (ou não, se o caso for de discórdia) para uma coisa. Terem a mesma opinião. A mesma percepção. Concordarem em ir pela esquerda, ou pela direita, ou de mãos dadas, ou fingindo nem se conhecerem. Pois nada disso. Concordar é mais sério e mais profundo. Não vem da razão nem do pensamento. Vem do interior dessa cavidade maltratada que é esse nosso músculo único, de aspecto único, de capacidades únicas. Se o seu, aí dentro do peito dando pinote, está junto do coração da pessoa ao seu lado - é porque bate em sintonia com ele, é porque se reconhece na pele do outro rosto, é porque sem nenhum motivo explicável você sabe que aquilo que o o outro ao seu lado disser, você dirá também. Aquilo que o outro ao seu lado sentir, você sentirá também. Sem pensar nem estabelecer nada. E aí você con-corda com a pessoa ao seu lado, e ela vice-versa, os dois meio abobados pela vida de repente parecer tão perfeita.

Concordar não é concordar (sic) sobre coisas, ou situações, ou opiniões, ou roteiros, ou planos. Concordar é saber que seu coração está junto do coração do outro, e aquilo que você fizer ao coração do outro, fará também a seu próprio coração, porque eles estão juntos, e juntos semearão os campos do futuro. Quando seguem cada um para seu lado, não é que tenham tido ideias contrárias. É que seus corações avançaram por caminhos diferentes, e por isso dis-cordaram.

Agora você pensou poxa que pena? Pois não precisa. Porque nem todos os corações concordam, e aqueles que se "vestem de concórdia" estão apenas vestidos - nada são. Faltou-lhes abrir a porta do sangue, permitir-se todos os ventríloquos. Dessa forma, o melhor mesmo é que discordem. O quanto antes, para que os caminhos fiquem abertos e claros, ainda que distintos.

24/12/2015

Para 2016, com duplo amor

Abro as mãos, e abro os olhos. Por entre os veios de um ano duro, vejo dedos antigos tecendo raízes submersas, erguendo galhos caídos, sustentando hastes quebradas, desviando uivos aflitos. Este ano que acaba é um ano de milagres, desses de todos os dias, desses que, se deixarmos e não olharmos, se despedirão de nós invisíveis. Talvez precisem repetir-se até deixarmos de ser cegos. 

Será preciso redobrar o olhar e o coração. Limpar duas vezes o que não fomos nós a sujar. Brilhar duas vezes na escuridão que se formar. Sorrir duas vezes para quem um insulto atirar. Desfazer nós, embaraços, trabalhos. E acender todas as velas, todos os dias e todas as noites, dentro e fora de casa, dentro e fora do peito, dentro e fora da certeza. A todo custo, e a todo preço, aproximar-se em vez de afastar-se, correr riscos, subir alturas, descer abismos e enfrentar quaisquer feras. Este que começa logo ali será um ano de precisão de força, e só se chamará fraqueza se a ela dermos nome e alimento farto. Venha 2016 limpo e livre, com as escuridões e os tropeços que nos fortalecem, e humanizam, porque tudo, mas tudo mesmo, um dia passa. 

Mas que nada nem ninguém passe impune, nem sem sentido. Que o que passe por nós nos atinja, nos afete, nos torne mais dos outros que de nós mesmos, ainda que derrube nossas proteções, fustigue nossos músculos, triture as nossas vísceras. Que nos sobrem coragem e entrega, e em nós se fortaleça o lugar do não esconder-se. E que ao medo, e à vergonha, e à dúvida, ofereçamos apenas uma palavra: só amor, e mais nada. Só amor, e mais nada.