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19/02/2016

As avezinhas do céu



O sonho desta noite. 

Um caboclo eleva a vista, e a minha segue com ele. Sobe depressa pelos troncos das árvores, e agora já estamos no topo. Há uma mata fechada em volta dos nossos olhos, um rodeio de tapete verde, espesso, cerrado, imenso. Olho em volta pelos olhos do caboclo, sinto as pernas tremer de cansaço. Ele entrecerra os seus olhos e com eles os meus se afinam. Ao fundo há uma planície de água. Ao redor de toda a mata fechada, uma planície brilhante de água.

"Não há nada que dure eternamente", diz o caboclo fechando seus olhos. "Porque te preocupas com o pássaro que tens na mão? O que fazem os que passam voando sobre ti? Não vês que o que seguras é o limite que a ti mesmo impões? Mão fechada diante da maravilha da mata? Abre a mão, deixa o pássaro no voo que é seu. Pousa teus olhos nas asas dos que vivem no alto do céu, e dirige-te nessa sua direção. Não os abatas, para que os possas ter na mão: segue e aprende o caminho do voo. 

As asas do pássaro celeste são caminho do pai criador. Se manténs esse pássaro preso, essa segurança que ninguém pode dar, matas dele e de ti a alma pura, espremes a tua vida e a dele na palma da mão. Vai, afrouxa a tensão dos teus dedos, abre espaço pra vida viver. Deixa que pouse na mão estendida só o pássaro que semente trouxer. Observa o bico certeiro, o olho alerta, as penas do corpo que não é sofredor. E depois vê como eleva seu canto, seu voo deixando ao teu lado um sossego com cheiro de flor."

Acordo pensando em Mateus. "Olhai as avezinhas do céu" diz ele. "Nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros. São como os lírios do campo."

Sinto caboclo e discípulo num só. E sinto, e sinto outra vez: o que mais vale na vida é sentir. 


Revoada de pássaros em Ibirapuera, Araguaia. http://1080.plus/gmXz8C-AqMU.video


28/06/2014

Tempo, espaço e sonho

Mais dia menos dia, serei como essas pessoas que acordam e se lembram dos sonhos, e os anotam em cadernos que mantêm à cabeceira da cama. Por enquanto, fico feliz quando algumas imagens esparsas se agarram aos limites da memória, e, de repente, a meio do dia, no transplante de uma muda, ou no fluxo de água de uma mangueira que rega, beliscam-me com delicadeza o sentido da lembrança. Às vezes consigo deixá-las libertas à minha volta, símbolos que ainda não significam. Não sei então se me lembro ou se me crio, mas parece quase que sonho acordada o sonho que sonhei quando dormia. Num dia como esse de que falo, sonhei que era um cavaleiro andante, parado às margens escuras de um rio de caudal sereno. O cavaleiro que eu era, montado no cavalo que eu era também, virou-se por entre as árvores e disse-me assim:

"O que faço, o mais das vezes, é levar meu cavalo até um destes recantos, para que sacie sua sede e revigore seu espírito. Nada mais faço além: a tarefa desta minha vida é dar de comer e beber a este que em mim se apoia e de quem meu sustento depende. É ele quem decide para onde os nossos passos se encaminham. Anteontem, um moinho. Ontem, a campina vazia. Hoje, vejo ao longe a torre do campanário de uma igreja. Ao contrário do que pensas, os ninhos das cegonhas são recentes e estão vazios, porque o Tempo é fato concreto, e sob ele riscamos passos amplos. Creio que hoje pernoitarei sob um teto.

O dia de amanhã desperta lento. Retorço meu corpo no colchão de palha amarelada. As hastes duras marcaram-me as costas, sinto seus vincos desenhados ao espreguiçar-me. À porta, a fila de sempre. Há sempre quem acredite que por ser cavaleiro, e errante, me engano menos com o que se vê do mundo. Não sabem que eu propriamente nada vejo. Pedem-me conselhos, choram-me temores, entregam-me segredos, procuram-se dentro de mim consolo, esperança, esse brilho que perdem (dizem) a cada trovoada que lhes fustiga as costas.

Também esta é a minha vida. Andar sobre as vidas alheias, desembaraçá-las das teias que o Tempo sem uso vai desenhando nas janelas. É o Tempo que se despreza e ignora que lhes ensombrece as vidas. O Tempo não observado, o Tempo desalinhado, o Tempo que se diz passado quando já é futuro maduro. O que lhes falta, e a ti falta da mesma forma, é entrar dentro do Tempo e deixar-te possuir por ele.

Assim que a fila acaba (nunca haverá alguém que se vá sem ser escutado), olho com demora a minha montaria, a sela surrada, o conforto do trote no couro curtido, os olhos desse cavalo que sou eu e ele num mesmo espaço. Durmo ainda uma noite, se é preciso, ou duas, e faço-me à estrada quando é tempo de ir."


Imagem: Logunan (ou Oyá-Tempo), em http://www.teufilhosdaluz.com.br/