23/07/2014

Aporia

Descobri dia desses, numa roda de amigos, uma palavra que não conhecia. Aporia. Ficou vagando por dentro de mim uns dias, e eis que ressurge, querendo respostas. 

Coisa difícil, já que aporia é justamente a impossibilidade de alcançar respostas, de encontrar explicações, e deve ser por isso que ela me cutuca com seu dedo incisivo.

Das suas cutucadas recebo de presente a disposição de ler dois dos diálogos aporéticos de Platão - "Laques" e "Ménon". Um é sobre a coragem e o outro sobre a virtude. Hei de lê-los um dia, ainda mais agora que sei que não haverá conclusões a que possa chegar.

Aporia está ligada ao paradoxo, ao impasse, à dificuldade, à incerteza, às auto-contradições, tudo coisas que impedem que o sentido do texto possa ser fixado. Ou seja: não há um sentido. Os Diálogos de Platão são escritos, os nossos diálogos costumam ser falados: a aporia pode apresentar-se em todos eles. Sabe aquela hora em que, na sua conversa com seu interlocutor, você sente que ele fecha todas as saídas? Esse estado peculiar em que procuramos um ponto de entrada que desmonte/desconstrua a fala do outro? Porque não há maneira de que ela se construa e signifique algo conclusivo? Porque é tudo e nada ao mesmo tempo? Pois bem: você está nesse momento diante de uma aporia. Voilá!

Mas há mais sobre a aporia. Há "Aquiles e a tartaruga", a mais clássica delas. Há a aporia crataegi, uma borboleta europeia. Aporia é gênero de borboletas. Borboletas chamam-se lepidópteros. E lepidópteros é uma palavra grega que significa "asas de escamas". Bonito.

É Carolus Linneus, médico e botânico sueco da primeira metade do século XVIII, que dá nome grego às borboletas e quem nomeia a aporia crataegi. Nem notícia ainda do nascimento de Darwin, e já esse senhor estabelecia a forma de organizar e categorizar o mundo natural, o mesmo que usamos até hoje.

É Linneus quem escreve, em 1753, a obra Species Plantarum. O protagonista de "Figura na sombra", romance do mestre Assis Brasil, lê o livro em sua juventude. Está lá, no primeiro capítulo, essas duas páginas que releio com prazer uma, duas e quarenta e quatro vezes se for preciso. Tão ricas de ensinamentos são para quem escreve. Demoro-me muito tempo nesses parágrafos, gosto de lê-los com meus alunos, de re-re-re-perceber a magia que existe no corte sumário de tudo o que não é essencial. Por isso, por causa do que foi cortado, lembro-me do Species Plantarum. Porque está lá, a meio do romance de Assis Brasil, sem explicações. Seduz justamente porque não está explicado, e porque, se ficou, é porque tem significado.

É claro que me pergunto por que terá dado Linneus esse nome a essa borboleta. Enquanto descanso aporia ao meu lado, vou em busca de crataegi. É o mesmo Species Plantarum  que classifica o Crataegus - um arbusto (família deles) de flores, brancas como as dessa borboleta, que nós conhecemos por pilriteiro ou espinheiro branco. Seu nome deriva do grego kràtaigos, no sentido de força e robustez, característica que talvez se refira à sua dura madeira. Além das flores, o pilriteiro dá umas bagas vermelhas que a medicina tradicional usa desde a pré-história para doenças cardíacas. Eram de pilriteiro as cinco tochas que os gregos faziam arder nos casamentos, para afastar as forças de Artémis, deusa contrária às relações monogâmicas. E era também de pilriteiro a coroa de Cristo.

Entre idas e vindas, penso que talvez Linneus estivesse, no momento em que avistou uma dessas borboletas, afundado num depressão imobilizadora. Talvez não estivesse capaz de sentir. E a visão da que viria a ser a aporia crataegi, sem motivo, sem explicação, um paradoxo vivo esvoaçando ao seu redor, movimentou seu coração - talvez se lembrasse de Artémis, e logo após de Cristo. Talvez pensasse no quanto tudo muda o tempo todo, e que é dessa energia movimentadora da mudança que o nosso mundo se nutre, embora seja sempre o mesmo e em nada se diferencie uma época de outra. As aporias, afinal, aquecem o coração e salvam-nos da normose engessante.

Os motivos que me levam a manter este livro e não aquele no centro da minha alma não são só paradoxos: são aporias. Mantenho os que carregam dentro de si/mim dúvidas e incertezas, coisas e mais coisas inexplicáveis, e que têm nessa inexplicabilidade o seu motivo de existir. Gosto de voltar a eles e descobrir, após a 34ª leitura, que não consigo apreendê-los, não consigo sumarizá-los, não consigo reduzi-los a uma leitura, porque são imensas e infindáveis. E lá vem a pergunta: como assim pedir a alunos aprendizes de leitores que resumam e expliquem uma obra literária? Para matá-la na sua gênese? Naquilo que tem a oferecer? Nas mil possibilidades infinitas?

Aporias são coisas assim: nem se explicam, nem se chega sobre elas a nenhuma conclusão. Um desespero, para alguns. Um desafio, para outros. Incluo-me nestes últimos (nem sempre), e divirto-me nesse movimento interno que busca refutar todo e qualquer argumento que queira fixar um sentido único e conclusivo ao texto que leio, ou ao diálogo que mantenho.


Imagem: Aporia Crataegi
http://eol.org/data_objects/20605909

07/07/2014

Clarice, em carta

Provavelmente porque precisava de quem me oferecesse todos e nenhum caminho de entendimento ao mesmo tempo, fui em busca de Clarice. Porque a força da ficção vive na capacidade de não ser verdade mas poder impor-se como tal, nesse conceito cheio de letras que é a "verossimilhança": um ser semelhante à verdade, que está de acordo com aquilo que poderia ser, ainda que em desacordo com aquilo que se vê normalmente. Aí está uma discussão que adoro: o que é mesmo a verdade do que se vê?

Mas vamos à Clarice. Há uma carta, que se diz ser dela, a uma amiga incógnita, escrita em Berna em 1947. Uma versão conta que a teria dirigido a sua irmã Tânia, entre muitas outras que escreveu a todas as suas irmãs, nos mais de 15 anos que viveu fora do Brasil. Foi Caio Fernando Abreu quem publicou a tal carta, avisando que não tinha certeza de ser da escritora, mas que a ela se atribuía, e assim de fato parecia.

A destinatária da missiva devia passar por momentos de aperto, desses que fazem as mulheres se aproximarem umas das outras em busca menos de consolo que de compreensão. Às vezes, a realidade do mundo sobrepõe-se à verdade que se intui para lá dele mesmo, e é bom uma mão amiga, um ombro aberto, uma palavra de alívio, para que não se sucumba à impressão de endoidecer. Se a carta é ou não verídica, não sei. Mas é verossímil, e por isso leio-a como se de Clarice fosse, como se a amiga e a consequente amizade o fossem também, como se a congruência fosse (é) uma realidade palpável. Berna, 1947, parecia-se a uma fazenda, escrevia Clarice em outra carta, lamentando a falta de paciência para gostar de uma coisa assim. Não lhe foram fáceis esses anos, como não o foram para europeu algum do pós-guerra. Na verdade, não sei se a vida lhe foi fácil ou difícil, porque essa não era uma preocupação que Clarice aparentasse, essa de pensar na facilidade ou na dificuldade das coisas. Clarice era dada a agir sem muito pensar; ainda em outra carta, diz que desse método lucrou meio a meio: metade de fato intuição, a outra metade pura infantilidade. Preciso ser mais madura, dizia ela. Mas tenho medo de amadurecer demais, completava.

Não sei bem se Clarice era dada a aliviar os outros. Creio que não, tanto quanto creio que ela mesma raramente encontrava alívio a não ser na escrita, e ainda assim de forma muito leve. Mas essa carta em especial alivia, como alivia uma conversa em voz baixa à mesa enquanto se divide um jantar. Aquelas coisas profundas e simples que só podem ser entregues ao outro quando há tempo, espaço e interesse. Cartas, na falta de jantares, e quando a distância é marítima, sossegam o espírito.

A meio desses momentos difíceis pelos quais a amiga passa, Clarice aflige-se por vê-la enveredar pelo caminho fácil de ser o que não se é. Porque os outros pedem. Porque os outros suplicam. Porque os outros exigem. Porque todos dizem que. Porque todos fazem. Tanto faz. É preciso ser-se quem se é, e estar atento (não sei se leio ou penso) ao tanto que não se pode levar a alma no caminho da distração de si própria. É preciso estancar o fluxo. É preciso subverter a ordem que chega. É preciso com urgência resgatar os próprios defeitos, e tomá-los nas mãos com o mesmo carinho com que se tomam as virtudes. Clarice alerta: nunca se sabe qual é o defeito que sustenta o nosso edifício inteiro. E por isso cortar os próprios defeitos é ação perigosa.

E por isso é preciso ler Clarice e prestar-lhe atenção, atenção a esse sufocamento acre que lhe sobe pelas letras e nos incomoda os olhos. Que nos alerta para os desvios daquelas que são as nossas necessidades e expectativas, esse desviar-se desatento do caminho que a alma nos grita precisar percorrer. Sem prestarmos atenção equivocada ao que dizem, fazem, pensam, pedem, exigem, esperam, demandam, provocam, precisam - os outros. Ler Clarice volta-nos os olhos para dentro. Desconstrói-nos. E por trás de tanta cortina, lá estão reunidos os nossos esforços em mudar o que somos, esses esforços imensos de emoldurar o quadro que somos e descartar as sobras à sua volta. Como se algo em nós sobrasse.

O custo, às vezes, é alto. Outras, é alto demais. A alma esvai-se pelo meio, atravessa a vida como água que a areia absorve lenta. E perde-se a água, e a areia continua como sempre. Clarice fala da "comodidade da alma" e das concessões que se fazem em seu nome. Quando se abdica de si mesmo, das próprias faltas, dos próprios tropeços. Quando se abdica das necessidades mais básicas, e que são as nossas. Quando se abdica da própria verossimilhança. E quando, por fim, não se é mais nada.


Foto de Claudia Andujar, 1961

03/07/2014

Perseverar, teimar ou persistir?

Para você, que como eu se olha ao espelho, na dúvida cruel entre "será que estou teimando ou sendo perseverante?", duas explicações e uma solução.

Tudo é questão de ser severo, estabelecido ou firme. Simples assim.

Quando se persevera, ativam-se as forças estritas e sérias de severus. Aliás, por causa do per-, ativam-se totalmente. Perseverar é um ato de total seriedade reta. Não há deslizes, nem dúvidas, muito menos falhas. Acho até que há um cenho franzido plantado na testa. Muito arriscado - os cenhos franzidos afastam os outros e criam sulcos que em nada se parecem com as alegres rugas de quem vive a sorrir.

Já quando teimamos, seja lá a respeito do que for, temos um thema - um argumento, uma tese. Quase, quase, coisa de advogado. Partimos de um lugar no qual acreditamos. Nada provado, dirão muitos ao seu redor, mas você responde: você que não vê, tá lá. E podem tentar demovê-lo. Ali está, e ponto. Esse thema é forte desse jeito porque é antigo - antes do latim, já o grego o lançava, com significado levemente diferente: aquilo que se propõe. Portanto, uma proposta. E mais. A sua raiz é tithenai, palavra algo apocalíptica (experimente falar em voz alta), e significa, com uma naturalidade teimosa, "algo estabelecido". O verdadeiro teimoso, o convicto, teima a partir de uma tese proposta e estabelecida, fincada resoluta no chão imortal. Olho para a minha teimosia e dá até cansaço.

Mas, como para quase tudo, há solução. E hoje, agora, a solução que tenho chama-se persistir. Per+sistere. Persiste aquele que se mantém firme e em pé. Totalmente firme e em pé. Podem as tempestades e os raios cair a seu lado, as pedras do caminho serem maiores e mais numerosas que as flores: há aqueles que persistem. Que olham para a vida diante de si e dizem para si mesmos: mantenho-me aqui, porque é o que devo fazer. Com firmeza, em pé, e sempre.


(E as uvas, pergunta você olhando a foto? O que é que têm as uvas com isso? Secá-las, transportá-las ou reidratá-las? Escolha de cada um. De qualquer forma, as uvas se manterão uvas. São as atitudes que constroem as diferenças entre elas.)

30/06/2014

Desapego ou desprendimento?

Ora bem. Depois do post "Ser grato ou obrigado?" pedem-me à distância que escreva algo sobre desapego. Perguntam-me se me sinto desapegada. Se pratico o desapego. Se consigo.

Francamente, nem tento. Não posso. Dentro de mim vive um apego a tudo o que amo. Um apego que (tento) não me machuque quando decide insinuar-se por entre os muitos laços do ego, segredando-me que, se amo, e se me apego, terei. Bobagem. Apenas serei. Tento apegar-me dentro dos domínios da luz, e que essa luz envolva os demais com todas as vibrações que posso enviar de longe porque, afinal, estou apegada - e, por isso, trago o outro dentro de mim a cada instante, faz parte das fibras da minha alma.

A raiz primeira de desapego (antes da junção com o prefixo des-, que significa sempre o negativo daquilo que se diz depois), é apego; este, por sua vez, deriva da palavra pegar - picare em latim: trazer consigo, ter em si e (claro) pegar. Portanto: pratico o apego porque ele me faz trazer comigo tudo aquilo que amo. Graças a esse "a" agregado, o que estava bom fica melhor ainda: trago quem amo junto em mim. A toda hora, a todo momento, em todo lugar. E porque não quero desapegar-me, o que amo cria casa em mim. Habita-me. Entranha-se. Elabora-me. Decifra-me. Quem se apega, chega mais perto do centro.

O impulso de desapegar-se, neste poder etimológico que lhe outorgo, encontra-se de braços dados com a decisão (que vejo ao meu redor com frequência) de não se entregar, de manter a individualidade, de não se perder no outro, manter o controle, ser dono de seus atos. Mas sem entrega, sem comunhão de indivíduos, sem o se perder - como se achar, e como achar o outro?!

A esse amigo querido que de longe se pergunta sobre o desapego, o que posso oferecer é o meu desprendimento. O mesmo des- que negativa, junto ao prehendere latino. Prender significa também pegar, mas com uma pequena imensa diferença: prehendere é agarrar. E agarrar guarda dentro de si, escondida entre duas distraídas letras, uma garra. Uma coisa é pegar algo que chega à sua mão. Outra, diferente, é agarrar. É ser presa. É estar-se preso.

Pego o amor que me dão, e me apego. Quero apegar-me. É uma decisão, esse apego, porque amo o que amo e mantenho-o perto e dentro comigo. Amor não é agarrável. Amor é liberdade em expansão. É tempo fora do tempo. Espaço fora do espaço. Se tento agarrar, ele escapa. Amor só sobrevive ao apego. É o lugar mágico onde se nutre, cresce, transborda - amor é coisa que precisa de transbordamento, sejam lágrimas nos olhos, sejam bênçãos no mundo.

Agarrar responde ainda por ações polares: aprisionar e afeiçoar-se. Se uma palavra pode, ao mesmo tempo, aprisionar e criar afeição, é melhor procurar outro caminho. Apegar-se sem as garras longas que prendem. Por isso, pratico o desprendimento. Deixo solto o que pertence a todos. Deixo solto o que pertence ao outro. Deixo solto o que pertence a mim. Mas dentro, neste lugar onde entram aqueles de passos leves e olhar atento, vivem apegados a mim todos os afetos do mundo.

28/06/2014

Tempo, espaço e sonho

Mais dia menos dia, serei como essas pessoas que acordam e se lembram dos sonhos, e os anotam em cadernos que mantêm à cabeceira da cama. Por enquanto, fico feliz quando algumas imagens esparsas se agarram aos limites da memória, e, de repente, a meio do dia, no transplante de uma muda, ou no fluxo de água de uma mangueira que rega, beliscam-me com delicadeza o sentido da lembrança. Às vezes consigo deixá-las libertas à minha volta, símbolos que ainda não significam. Não sei então se me lembro ou se me crio, mas parece quase que sonho acordada o sonho que sonhei quando dormia. Num dia como esse de que falo, sonhei que era um cavaleiro andante, parado às margens escuras de um rio de caudal sereno. O cavaleiro que eu era, montado no cavalo que eu era também, virou-se por entre as árvores e disse-me assim:

"O que faço, o mais das vezes, é levar meu cavalo até um destes recantos, para que sacie sua sede e revigore seu espírito. Nada mais faço além: a tarefa desta minha vida é dar de comer e beber a este que em mim se apoia e de quem meu sustento depende. É ele quem decide para onde os nossos passos se encaminham. Anteontem, um moinho. Ontem, a campina vazia. Hoje, vejo ao longe a torre do campanário de uma igreja. Ao contrário do que pensas, os ninhos das cegonhas são recentes e estão vazios, porque o Tempo é fato concreto, e sob ele riscamos passos amplos. Creio que hoje pernoitarei sob um teto.

O dia de amanhã desperta lento. Retorço meu corpo no colchão de palha amarelada. As hastes duras marcaram-me as costas, sinto seus vincos desenhados ao espreguiçar-me. À porta, a fila de sempre. Há sempre quem acredite que por ser cavaleiro, e errante, me engano menos com o que se vê do mundo. Não sabem que eu propriamente nada vejo. Pedem-me conselhos, choram-me temores, entregam-me segredos, procuram-se dentro de mim consolo, esperança, esse brilho que perdem (dizem) a cada trovoada que lhes fustiga as costas.

Também esta é a minha vida. Andar sobre as vidas alheias, desembaraçá-las das teias que o Tempo sem uso vai desenhando nas janelas. É o Tempo que se despreza e ignora que lhes ensombrece as vidas. O Tempo não observado, o Tempo desalinhado, o Tempo que se diz passado quando já é futuro maduro. O que lhes falta, e a ti falta da mesma forma, é entrar dentro do Tempo e deixar-te possuir por ele.

Assim que a fila acaba (nunca haverá alguém que se vá sem ser escutado), olho com demora a minha montaria, a sela surrada, o conforto do trote no couro curtido, os olhos desse cavalo que sou eu e ele num mesmo espaço. Durmo ainda uma noite, se é preciso, ou duas, e faço-me à estrada quando é tempo de ir."


Imagem: Logunan (ou Oyá-Tempo), em http://www.teufilhosdaluz.com.br/

26/06/2014

Ser grato ou obrigado?

Muitos dos meus amigos hoje em dia respondem-me pequenos gestos que faço com a palavra "gratidão", em vez do costumeiro "obrigado". Se por um lado me agrada (gratidão é uma palavra bonita, e o sentimento de ser grato colore os lábios de sorriso), por outro me incomoda essa rejeição ao dizer-se obrigado. Triste, quando palavras correm risco de morte.

Gratidão deriva do latim gratus. Uma forma que vem lá de muito longe, quando oriente e ocidente ainda se fundiam na língua indo-europeia. Diziam eles gwer- quando queriam elogiar ou dar as boas-vindas. Gwer- transformou-se em gratus, e seu significado foi se transmutando até gerar o corrente: algo agradável que se agradece. Dá-se as boas-vindas a uma ação do outro que nos é agradável. Por isso o sorriso nos lábios, acompanhado do coração aquecido.

Obrigado também nos chega via latim. Obligare. Palavra composta por ob e ligare. Ou seja: unir (ou atar) a. (Assim como o re-ligare é ligar-se novamente a algo, e dele recebemos como herança a palavra religião.) Quando dizemos obrigado, unimo-nos a alguém, um alguém com quem temos agora uma relação de laço de retribuição. Pressupõe que aquela graça que recebemos (e pela qual somos gratos) se desdobrará em algo que entregaremos nas mãos de quem nos fez bem.

Eu gosto de dizer obrigada. Muito, até. Gosto dessa criação de vínculo, dessa sensação de que algo em mim se liga e ata ao outro, e me faz entrar em relação. Deixo a gratidão dentro de mim, naquele lugar luminoso onde vivem as boas-vindas àquilo que vem por bem, e expresso-a através do meu obrigada, que quer levar até o outro o mesmo bem que ele fez em mim. Ou então dar graças, pela existência minha e do outro, pela possibilidade do encontro - que nos faz criar esse vínculo em que estamos obrigados à construção de humanidade para não sucumbirmos num mundo sem forma. Por isso, em gesto de gratidão, eu digo: obrigada.


Imagem: http://www.imperiodarenda.com/maior-conselho-sobre-ganhar-dinheiro-na-internet/maos-dadas/


25/06/2014

Destinos dados

... mas quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro, brota é depois. (GR)

Facebook, dizia eu hoje a uma amiga, é uma fábrica de neuroses. Nunca se sabe ao certo por que aquela pessoa curtiu aquela sua postagem, ou por que passou por ela ignorando-a. Dentre as pelo menos nove possibilidades, escolhe-se uma, duas, e deduz-se um nunca acabar de motivos para a bendita curtida, ou não curtida. Sobretudo quando a distância é imensa, e separa os olhos dos olhos, criando na sua imprecisão não sonhos, mas fantasmas, essa ferramenta assume o seu lado pactuado com as forças sombrias e invade-nos o dia. Por isso, melhor afastar-se dela, de tempos em tempos, e optar pelo contato que se materialize real, disponível, feito de tato e de afeto.

Porém, justamente essa amiga publica em meu mural um trecho de Guimarães Rosa que me faz levitar para fora da minha infinitamente pequena visão, e dar graças pela existência facebookiana. Desse recorte que ela me oferece, faço eu meu próprio recorte: aquele que abre este texto.Que fala de amor que é destino dado. Destino maior que o miúdo. Um amar inteiriço fatal. Carente de querer. Faceador de surpresas. Amor que primeiro cresce, e "brota é depois".

É Riobaldo quem fala, esse homem tomado de des-serenidade ao perceber-se movido em amor pelo companheiro Diadorim. Depois do espanto, talvez a vontade de correr ao encontro e o movimento contrário, porque esse amor inteiriço e fatal sente-se também proibido (até onde os olhos de Riobaldo ainda alcançam), amor em des-padrão, amor que arrebata e aparece repentino, e não há garantias, nem salvaguardas, apenas caminho a seguir. Isto, quando se escolhe seguir, sabendo que esse seguir demanda ser pleno e inteiro. Se não, é como ser desleal consigo mesmo. Se não, é como dizer-nos a nós mesmos que a vida pequena e sem relevo, do tamanho do miúdo e atrevendo-se aos destinos ofertados pela metade, é a vida que queremos.

Só mesmo lendo Grandes Sertões para saber os caminhos que percorrem Riobaldo e Diadorim, e por quais palavras, sabor e carne e pedra desse homem feito escritor que é Guimarães. Mas esse instante de desatino perplexo, tão imenso e tão libertador, esse reconhecimento de um sentir maior que o miúdo, é um júbilo que quero levar para o meu adormecer. Seja como forma de transcendência. Seja como instrumento de criar humanidade. Seja para salvar-me os sonhos de acordarem enrijecidos pela covardia do mundo. Ou seja para salvar-me a mim daquilo que, ao saber-se diante de algo maior, atrasa seus passos ou revoga o caminhar. Como uma inadvertida curtida de facebook, é difícil saber o que a palavra alheia, sem o contorno dos olhos nem o calor da pele, realmente diz. Ou, como nas palavras de Riobaldo/Guimarães, "como se o obedecer do amor não fosse sempre ao contrário...".




29/05/2014

Emancipar-se

Diz-me um amigo que a doença da sociedade é a sua incapacidade de emancipação, e não as variadas dependências que nos rodeiam. A incapacidade de pensar por si, de tomar posse da própria vida. 

Desconfio que seja uma espécie de semeadura de palavras. Funciona. Como toda semeadura, brota. Multiplica-se em palavras que já li, e em outras que quero ler. Hannah Arendt aparece-me com o seu pensar-condição-humana, essa complexidade imensa tão simples. Aparece-me Steiner e seu pensar-livre. Sócrates com a frase célebre... Vou deixando que se amontoem dentro de mim, sem lugares onde guardar, sem espaços a preencher. Como em receita clássica de bolo, é bom usar os ingredientes à temperatura ambiente. Espero que tudo se acomode a este dia ora quente, ora frio. Tudo isso ainda é só tempero. Faltam os grandes volumes, os espaços solenes.

Não bato demais a massa, esperando que me segrede o que é mesmo que falta. Não falta, diz-me ela, ele já te disse tudo. E tu esqueces-te de que é de uma palavra apenas que necessitas. Sorrio para a massa, pensando eu em outras coisas que precisam apenas de uma palavra. E só por ter me distraído, a palavra que já estava corre atrás de mim.

Emancipar. Ali, logo no começo, antes da poluição do resto, e eu sem dar-me conta. Resisto à vontade de procurar-lhe de cara a etimologia, todo cuidado é pouco ao juntar as claras em neve à massa. Converso comigo, como se conversasse com o bolo pronto fumegando em cima do fogão.

Emancipar, digo-me, pode ser uma extraordinária quantidade de coisas. Pode ser o grito do Ipiranga, o grito de alforria, o quaes-sera-tamen. Um brado, de qualquer forma. Coisa que se dá em um momento. Emancipar pode ser uma ação repousada e cautelosa, uma assinatura em um papel que confere ao outro a liberdade que não tinha. Pode ser desculpa vazia para o (des)encontro com outro: não, não, eu não quero vínculos, não quero amarras. E os braços desfazem os laços, as vozes silenciam as gargantas, os olhos não veem os sonhos, e a liberdade de ação por nós mesmos escorre de uma banheira cheia de possibilidades. Tememos os nós, como se arriscássemos perder domínio próprio, e ficamos nos eus. Todos esses eus que vivem dentro de cada um, lutando pelas suas pequenas sobrevivências. Tudo, como de costume, uma faca de dois legumes.

Agora sim, a etimologia. Suculenta além da conta. Veja: emancipar é uma derivação complexa da palavra mancípio. (Mancípio é uma palavra portuguesa, e significa escravo. Mancípio é também, diz o dicionário, dependente, seja pessoa ou coisa.) Mancípio chega-nos diretamente do latim: é a junção de manus (mão) e capere (tomar posse, agarrar). Sendo assim, um escravo (um dependente) é alguém que foi agarrado, possuído por uma mão que não é a sua. É quando se junta o prefixo ex a mancípio que chegamos a emancipar. Sair, retirar-se. Libertar-se da mão do outro que nos agarra.

Está certo este meu amigo, e pode oferecer comprovação etimológica: emancipar-se é a saída da situação de dependente. Um ato que pode ser brado de um grito só, mas é precedido por um trabalho colossal, doído e desgastante, e seguido por outro de igual tamanho. Porque de uma situação cai-se em outra, e é preciso vigilância para que esse eu que grita por auxílio não nos ensurdeça para o outro. Porque o outro somos nós mesmos refletidos na amplidão do cosmos. É preciso emancipar-se diária e eternamente. Discernir entre o que quer nos agarrar e o que queremos agarrar em nós mesmos, porque é nosso, porque nos pertence, porque em nós vive o conhece-te-a-ti-mesmo como fonte de força e luz, porque é a única forma que temos para nos darmos ao outro da maneira mais verdadeira que podemos. E aceitarmos o que o outro nos dá, sem nos tornarmos escravos, e sem sermos do outro mancípio.

27/05/2014

Saudades de pedra

De todas as saudades, as mais imponderáveis são as que começam quando ainda se vive o que representam. Penso com isso nas flores amarelas das azedinhas nas bermas dos caminhos, nas giestas a anunciarem a primavera nas estradas do Alentejo, nas margaridas-do-mar em sua contemplação indiferente do horizonte atlântico. Como eco de passos nas ruas de um bairro secular à meia noite, entram sorrateiras, estendem-se nas redes que encontram, constroem em silêncio seus caminhos em nós, e tudo isso sem que ainda lhes percebamos a existência. 

Há os silêncios a meio das conversas. E as conversas a meio dos silêncios. O que não é dito porque não é preciso que se diga, e o que se diz porque é preciso o ar encher-se de embriões de saudade.

Mais ou menos como aconteceu em uma tarde, igual a todas as tardes que reaparecem diante dos olhos, não como se fossem ontem, mas como sendo dias do hoje, eternos agora.

Nessa tarde, que já se anuncia distante porque as saudades estreitam os ponteiros do relógio, há uma mulher sentada à sombra dos beirais da casa. Ao seu lado direito, à distância de oito passos, há duas cadeiras de reclinar vazias. O sol atravessa os espaços que formam as folhas da oliveira próxima. As cadeiras murmuram como se preenchidas. As suas vozes trinam nos bicos dos pássaros acima delas. Brilham no reflexo do sol nas nuvens. Tornam-se matéria na linha do queixo da mulher sentada ao lado da mulher que vê. Na linha do queixo, na curva dos lábios, abertos nesse grito a dizer que nem mesmo quando morremos nos vamos. 

A mulher que vê, por não conseguir ver o que vê, fecha os olhos, e deixa que lhe suba garganta acima uma lágrima chamada gratidão. Nada lhe transborda os olhos, porque não sabe se o mundo terá tamanho para o tamanho do que vê. Nessa linha de queixo, nesses lábios em curva, vive ela mesma nas feições da outra, e nesta vivem as feições de quem partiu anos antes. Nesse encontro de tão poucas palavras há um apertar de mãos que as dispensam. São como eternas companheiras, com nada que haja além delas mesmas. Existem sem palavras neste espaço que, tanto quanto as separa, tanto as entrelaça. 

Esta é a terra que se agarra à mulher primeira com a força mais tenaz. Porque a quer para si, e porque ela morre-se por dentro em partes. Logo há de atravessar o oceano com o sabor do luto por entre os dentes, um luto que é antes de ser anunciado. Despedaça-se em aberturas d'água, porque é o fim de um começo novo, porque se afasta, dessa cidade e desse mundo que é tão seu que não o consegue conter dentro de si. Afasta-se do rio que a reflete, do mar que a acolhe, da luz que a ilumina, impalpável sobre essa cidade única que alcança o mundo da sua sombra.

E enquanto fecha os olhos e tenta medir o tamanho das coisas inalcançáveis, o tempo que se encolhe e escapa das suas mãos (umas vezes é muito, outras escasso), pede que a vida seja simples, e mais nada. Que as raízes se agarrem ao solo que se tenha sob os pés. Quer seja rocha, quer seja areia, quer seja água, quer seja qualquer coisa onde a vida germine quando parecer terminada.


Imagem - Margarida Pereira

19/05/2014

Malabarismos


Estou desde cedo à procura de um rumo de prosa, por entre a procissão de momentos grávidos de crônica que me acompanharam no fim de semana. Há uma multidão de palavras nascendo à minha volta, e para alinhavá-las procuro-lhes os elos. Em todas, a plasticidade com que se trata a vida. A disposição de mudança constante. A metamorfose ambulante. O moldar do cotidiano pelas mãos, como se a vida nos ofertasse vida sem jamais cansar-se.

Para começar, o filme curto (está logo a seguir a este texto) de Eric Aberg, e os Cubos Fantasmas que se transformam a partir dos movimentos das mãos. Mudanças de forma e de aspecto, parecem essências plasmadas em formas regulares. Eric é sueco, e parece entender e gostar bastante de malabarismo. De dentro de seus vários trabalhos, pesco alguém que se chama Paul Cinquevalli. Um polonês-alemão nascido Paul Kestner em 1859. Descoberto aos 12 anos numa apresentação de ginástica por um trapezista já famoso (de quem adotou o sobrenome artístico), Paul juntou-se à companhia, a despeito da vontade de seu pai de que fosse músico. Deduzo que fugiu. Vítima de um acidente no trapézio, que o deixou inapto para as façanhas aéreas logo aos 18 anos, Cinquevalli desviou-se na direção do malabarismo. Transformou-se em um dos primeiros malabaristas a se apresentarem em salões e teatros manipulando objetos do dia a dia, ora prosaicos, como garrafas, guarda-chuvas, pratos, copos, ora estranhos e pesados, como banheiras familiares, cadeiras, mesas. Em 1885 já fazia enorme sucesso em Londres (chegou a apresentar-se diante da família real), onde acabou por se fixar; lá morreu em 1918, no ostracismo que lhe rendeu a sua cidadania alemã. Eric Aberg dedicou boa parte de seu tempo à pesquisa sobre Cinquevalli. Proferiu inúmeras conferências e palestras a seu respeito. Esse, abaixo, é Paul Cinquevalli, fotografado em 1873.

Talvez seja a mobilidade aquilo que os une e que chama a minha atenção. A paixão por transformar o cotidiano e seus objetos e condutas em matéria plástica e moldável. Na mão de Aberg, cubos fixos e sólidos deslizam como água sobre si mesmos, como se a ousadia adormecida nas coisas fosse despertada pela vontade do homem. Desconfio que a máxima de Cinquevalli deva aplicar-se a Aberg também: "para ser malabarista, só existe uma maneira e uma regra. E a mesma coisa se aplica, tenho visto, a qualquer outra coisa na vida: quando a sua mente decidir fazer alguma coisa, mantenha-se nela até que seja feita."

O que poderíamos chamar de persistência ou perseverança. Algo que, de certa forma, nos impele na direção da esperança (isto é, de que os esforços empreendidos deem certo), o que por sua vez nos faz dar entrada nos domínios da fé. Essa, que move montanhas, é a que é capaz de nos fazer duvidar de nossas próprias dúvidas, e por isso mesmo nos mantemos nessa que, segundo o mestre malabarista, é a única regra e a única maneira: persistir até conseguir. Nada mais atual: nesses tempos de overdose de experiências e sensações e possibilidades, persistir e resistir à desistência é coisa vital.

Persistir une a raiz sistere (ficar firme, ficar de pé) ao prefixo pre (totalmente). Persistir é ficar totalmente firme, totalmente de pé. O tempo inteiro. Claro que cansa, claro que é preciso insistir, que nada mais é que repetir um esforço anterior. Perseverar junta o mesmo prefixo à raiz severus, que responde por sério, estrito. Seja nas coisas fáceis, seja nas difíceis, todas as palavras que contêm em sua formação essa raiz firme e de pé, sistere, são quase que imprescindíveis.

A intolerância, em todas as suas formas, põe à prova a nossa persistência, a nossa perseverança, a nossa fé. Está em todos os lados, dos mais expostos aos escondidos. Nasce da ausência do sentimento da fraternidade, da ausência do reconhecimento de nós todos como um único, um único cujo princípio é a existência da diferença como qualidade primordial. Como se eu aceitasse o outro ser igual a mim mesmo justa e especificamente por ser diferente de mim e eu dele. Quando tolero, recebo um estímulo e não tenho para com ele uma reação alérgica. Aceito-o e processo-o. Persisto na percepção da diferença do outro como garantia da minha própria diferença. Como se decidíssemos ler pelo avesso as palavras de Krishnamurti, aquelas em que ele diz que, ao nos nomearmos indianos, ou muçulmanos, ou europeus (ou corinthianos, ou evangélicos, ou umbandistas, ou cariocas, ou antropósofos), promovemos a nossa separação do resto da humanidade, e, ao nos separarmos dos outros por crença, nação, tradição ou ideologia, alimentamos a violência implícita de nos sentirmos em lugar distinto dos outros que não são ou pensam ou creem como nós. Delimitamos e isolamos o nosso espaço quando o nomeamos, e deixamos de pertencer à humanidade, porque a humanidade deixa de pertencer ao nosso espaço, ocupado tão somente por aqueles que são ou pensam ou creem como nós. Na realidade, quando restringimos o nosso espaço, restringimos a presença do outro em nós.

Uma mesa deixa de ser tudo o que poderia ser quando eu a nomeio: mesa. Da mesma forma, assim que me nomeio como forma definida, retiro de mim a existência de tudo que não nomeio para mim mesmo. Reflito-me num espelho esquecendo de que ele é apenas isso (um espelho), e de que apenas todos os espelhos, conectados e permeados uns pelos outros, revelam a humanidade à qual pertenço, e que, portanto, pode me definir. O que permeia os espelhos, e os conecta uns aos outros, é a essência onde se ancora a fé. A fé que persiste na capacidade da humanidade transformar-se a si mesma, a seus rumos e a seus paradigmas. A fé em que consigamos receber os estímulos uns dos outros reagindo a eles de formas novas e multiplicadas. Sem programações antigas e obsoletas, que nos limitem os caminhos de encontro que temos abertos à nossa frente. Todos eles.






Sobre Eric Aberg, além do filme ao lado: http://erikaberg.com/info/
Uma matéria sobre Paul Cinquevalli de um jornal inglês de 1897:
http://www.juggling.org/fame/cinquevalli/strand.html
Mais sobre Cinquevalli:
http://www.jongle-story.fr/jongleur.php?id=21
http://www.vam.ac.uk/content/articles/p/paul-cinquevalli/
A foto que abre o texto é de autoria de Ade Zeus, e encontrei-a no Flickr:
https://www.flickr.com/photos/ade_zeus/4660453343/

05/05/2014


Apareceu profunda, ampla e ritmada. Um útero quente. Desdobrou-se em vogais e consoantes, cor de comida recém feita. De fruta madura. De cheiro de mata nas mãos que colhem as ervas.

Segredou em silêncio. Disse do cuidado. Da atenção. Do não resvalar pelas curvas desenhadas o despreparo e a desatenção. Disse da verdade, a própria, a de cada um, intransferível e autêntica. Tudo em segredo, como se soubesse que, se dito em voz alta e ouvido em som breve, o mundo é uma filigrana de neve.

O segredo foi coisa sabida. Mas a neve derrete sem contenção diante dos que não podem ouvir. O segredo em seu assomar mergulha de olhos fechados. E se as palavras roucas rebatem em ouvidos moucos, para que gastar a garganta?

Calou-se, portanto. E no silêncio tornou-se decálogo. A Palavra feito razão. A razão feito ensinamento. A razão como motivo. A palavra quando Palavra.

Nada de profundidade para quem nada à superfície.
Subtrair o peso é cultivar a leveza.
Para não morrer afogado, lavar a alma em solidão.
Espremer a vida quando a extração valer a pena.
Dentre as almas grandes, atenção nas que são pequenas.
Em tudo há o que precede e o que sucede.
Vestir-se de prata e ouro, todos os dias.
Ajustar-se quando não for usurpado.
Respeitar os segredos do silêncio da alma.
Revelar naquilo que se faz atento.




01/05/2014

Os meus primos

Os meus primos foram, durante anos, os irmãos que ainda não tinha. Preencheram as lacunas desses tempos infantis em que as pessoas próximas são a nossa própria vida. Aguardava com entusiasmo e ansiedade a chegada das férias, dos fins de semana, do Natal, o dia iluminado em que eles chegavam e transformavam a minha vida em algo a mais do que apenas a minha vida - inauguravam-se os dias da "nossa vida". Mas a vida tomou os contornos daqueles que se afastam, e afastou-nos uns dos outros, a ponto de parecer que sequer nos reconhecemos.

Mas apenas parece. Porque a mesma vida, nessas maneiras estranhas que tem de nos mostrar abrupta o que é óbvio, sentou-me por estes dias lado a lado com os meus primos, estes meus primos que já não são só crianças e têm vida de adultos, eles próprios como eu a gerarem crianças que em adultos se tornam quando menos esperamos.

O meu pensamento senta-se nesse mesmo lugar nesta madrugada fria e eu estou outra vez sentada ao redor dessa mesa familiar quente, abrigada e segura. Onde as travessas se passam e os talheres se entrechocam e os copos se enchem e esgotam como se não existisse fim e onde há um silêncio por onde se podem ver as almas quando comungam. Há muitos anos não me sentava eu ao redor dessa mesa. E de forma abrupta, diante de mim o óbvio: essa intensa felicidade que vive no podermos voltar, sempre, ao que já se foi, porque não há nada que exista em nós que possa em tempo algum morrer. Somos eternos naquilo que vivemos. E infinitos nesta nossa finitude, porque essa coisa pequena que somos está por todos os lados rodeada de luz que não tem fim.

Devo ao Francisco este almoço. Devo ao Francisco esse tempo pleno, o tempo daqueles que se resgatam naquilo a que sempre pertenceram. E eu, que não lhe soube agradecer quando podia ter certeza de que me ouvia, agradeço-lhe agora, e em dobro: como mais uma prenda que desembrulho num dia d'anos, preciso acrescentar à minha voz a certeza de que ele continua a ouvir-me.

As pessoas começam a ir-se, e a povoarem o espaço do céu. A cada um que parte, invoco a presença dos que já se foram, e como se fossem contas de um rosário, ou convidados de uma festa de boas-vindas, medito em oração cada um dos nomes que tiveram enquanto estiveram entre nós. De olhos fechados, perco-me nesse mundo que sei existir fora do tempo e do espaço. Apenas por efeitos didáticos dividimos o tempo. Não há ontem e nem amanhã no hoje que nos reúne a todos neste espaço absoluto, em que desligo também a distância entre o lá e o aqui.

É esse espaço absoluto que me faz estar agora em Évora, nutrida pela tenacidade das coisas que lá vivem. A tenacidade que nos soergue a cada derrocada, a tenacidade que nos alivia a cada sufocamento, a tenacidade que nos ilumina a cada pedaço de treva que nos ensombrece o céu. Como o tronco que se agarra ao esteio, e por ele sobe, na direção do céu que colheu o Francisco.

É essa tenacidade construída de espírito e alma encarnados que eleva e deposita Francisco em segurança à entrada das portas do céu, sem saber ele que lá atrás, em festa, há uma família à sua espera. Salve Francisco, salve a sua passagem e salve todos nós que ficamos ainda deste lado, sem saber onde e como guardar a memória, a saudade e os tempos todos em que a ausência, como disse a minha tia, for ainda tão presente.


22/04/2014

Mãe de abril

25 de abril de 2014

Mãe:

Este dia, mais do que qualquer outro, é teu. Mais do que o dia dos teus anos, ou o dia de Natal, ou as tantas datas que aprendi a festejar pelas tuas mãos. Este dia, dia maior, devo-o a ti. 

Devo-te também o gosto pela preparação das festas, mais do que o gosto pelas festas em si. O gosto pelos livros, e o gosto pelo cheiro dos lugares onde se guardam: as livrarias, as bibliotecas, as salas de leitura, os chãos dos corredores empilhados de livros órfãos de prateleiras. O gosto pelas Ilhas, incomensuráveis dentro do teu coração. Devo-te o gosto de inclinar-me sobre o fogão a pensar nos outros, o gosto de ir às compras a pensar nos outros, o gosto de, antes de em ti, pensares nos outros. Devo-te uma generosidade única, sem medidas nem limites. Essas medidas e limites que às vezes (uns mais que outros, mas todos) não sabemos como medir e limitar dentro de nós. Essas medidas e limites que ora apertam ora afrouxam com exagero. Essas medidas e limites com que te ocupaste a vida toda, e foi nas faltas, nas falhas e nos descompassos que mais me foste ensinamento de entrega e presença. Sem medidas, e sem limites.

Dentro do avião, ao teu encontro há algumas semanas, pensava no quanto quisera ser-te o que me tens sido. Mas agora, hoje, à beira dos 40 anos desse dia de Liberdade que me ensinaste a cantar com os olhos em luz, penso que te sou exatamente o que me foste. Sou aquilo que me desejaste, ainda que, à distância desse desejo, possas olhar-me com olhos inquietos, e não entenderes porque caminhos andam os passos que já não guias. Li e fiz carne da minha carne todas as tuas lições de liberdade, e engendrei dentro de mim uma face que não esmorece, nem se cansa, mas é capaz de dizer chega quando o fim se anuncia. Isso, no lugar que me cabe, é ser livre a olhos plenos.

Talvez te dissesse hoje que terias feito melhor se pensasses mais em ti do que nos outros, mas que sei eu dos caminhos que nos levam aos lugares onde é suposto irmos? Sei, ao ler esta carta da Clarice Lispector que me caiu nas mãos por estes dias, que é tarefa delicada mexer sem cuidado naquilo que somos, ainda que não nos agrade ou ainda que não saibamos o que fazer com essas coisas desconhecidas que assomam dentro de nós sem aviso nem pedido. Dizias-me, da última vez, coisa semelhante. E o teu olhar refletia-se sério nas paredes imaculadas à nossa volta.

Dizias-me, com palavras do teu âmago, isto que me diz Clarice: até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual é o defeito que sustenta o nosso edifício inteiro. Não sei quais defeitos quiseste cortar em ti, e talvez tenhas pensado, num súbito, que o teu amor pelas festas, e pela sua preparação, o amor pelos livros e pela face livre da verdade, esse amor pelos outros antes que o amor por ti mesma, fossem defeitos. Mas pergunto-te, como sei terás perguntado ao espelho diante de ti: será em algum tempo o amor defeito?

Talvez possas ainda ter pensado que o teu amor à liberdade pudesse revestir-se dessas peles com que se aderem os defeitos, e talvez tenhas pensado que deverias ser e viver como outras mulheres viviam e davam de crescer a seus filhos. Talvez pensasses não ser aquilo que esperavam de ti. E talvez não fosses. Talvez nunca tenhas sido. E eu agradeço-te por, mesmo a meio desse meio em que não te decidiste a ser o que querias ser, teres me legado esta sensação interna que me diz "sê"  antes de me dizer "considera".

25 de abril, sempre.


Foto de Moreno Ribeiro


20/04/2014

Re-nascer-se


Renasço hoje cedo vendo uma entrevista antiga do Laerte. Não andava à procura de nada em particular, um clique levou a outro e o último à tal entrevista. E gostei, gostei demais, e recomendo. A entrevista é do começo de 2012, pouco depois do célebre incidente do banheiro da pizzaria.

Laerte escolhe roupas de mulher para se vestir. Dizia aqui à minha filha menor que, a rigor, é mais ou menos como acontece com ela, que gosta de usar roupas de equitação. Cada um escolhe aquilo de que gosta, e eu me emociono (ela percebe) com esse presente de manhã de Páscoa de um homem que não desiste de si mesmo e nem de ser, a cada momento, aquilo que é. Veja: não é só abdicar de ser os que os outros gostariam que você fosse, mas abdicar de ser hoje o que se foi ontem, e saber que amanhã poderá existir-se de nova ou velha forma. Essa liberdade interna, que ele resume na frase "não quero me proibir de nada", é um renascer-se diário. Bom pra ver neste domingo de Páscoa. Laerte vive em coragem. Há um tipo de dor que faz a espinha dorsal dobrar-se sobre si mesma. E a meio da dor resistir. Essa é a coragem do processo e eu ouço-me em algumas das suas palavras. E sinto que, além de processo, a vida é sobretudo encontro.

Minha filha, aqui do lado, acha "esquisito". Gostaria de ajudá-la a construir-se mais despreconceituada. Mas o mundo às vezes pode mais, e por isso fico feliz de que esteja aqui junto a mim, enquanto assisto esse homem lúcido que distingue sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual, e distingue para saber o que escolhe e por que escolhe. Não que ela preste atenção em nada disso (nem precisa), mas eu presto, e, porque eu presto, ela percebe que há espaço para todos em todos. Mesmo não ouvindo, quando olha de soslaio para a tela, percebe essa calma na fala, essa calma no gesto da mão, essa calma  no olhar - e talvez no seu íntimo registre tudo isso como "calma na alma". A calma na alma de um homem que gosta de se vestir como uma mulher, e se veste, porque se sente no direito genuíno de ser e fazer aquilo que faz sentido para si. Quem sabe essa calma na alma tatuada na sua própria alma dilua os preconceitos que o mundo queira impor a minha filha, como esta impressão de "esquisito" que não é dela, mas do mundo. Este homem vestido de mulher é apenas um homem vestido de mulher, na busca do ser si mesmo, sentado diante de uma mesa e de uma câmera, em fevereiro de 2012. Oferece-me, de bandeja à distância de um ano, a dose de coragem, beleza e integridade que eu precisava neste acordar de Páscoa.



O link para a entrevista é https://www.youtube.com/watch?v=uxD1xXvQWYM
e a tirinha encontrei-a no blog que publica as tiras diárias, o Manual do Minotauro


14/04/2014

De dia, como de noite

Maria Lúcia Bertonelli, nascida a 2 de março de 1912, falecida a 30 de agosto de 1947


Maria Lúcia trabalha há anos na fábrica de camisas. Um emprego bom, cheio de rotinas pequenas e desimportantes que lhe dão sentido à vida. Maria Lúcia cultiva a desimportância. Os botões que se enfileiram diante das pregadeiras, organizados por tons e tamanhos e números de furos. As capas das máquinas de costura, debruadas de vieses no mesmo tom do tecido grosso. À distância de dois palmos, nem se percebem. As coisas da vida de Maria Lúcia estão a dois dedos de distância de seus olhos.

Todos sabem quem Maria Lúcia é, e cumprimentam-na à entrada. Ela é, sempre, a primeira a chegar, e a sentir o ar morno e silencioso do vão aberto. As costureiras enfileiram-se como botões nas suas cadeiras eretas, suas roupas escuras como pontos de bordado, os óculos de aros finos e duros à espreita na frente dos olhos. Escolhem pelo tato o tom, o tamanho e o número de furos dos botões, e pregam-nos sem aproximá-los da vista. Os olhos encontram, às vezes, os de Maria Lúcia. Duros e estéreis, as mãos entrelaçadas escondidas atrás das costas e do sorriso perolado que não se desmancha.

Maria Lúcia não fala com a boca, mas com os olhos. Nem com as mãos, só os olhos. E só à distância. Talvez, no fundo, Maria Lúcia não veja nada à sua frente. Talvez a redução de seu horizonte de dois dedos lhe dê a dureza daqueles que se mantêm ao longe dos outros por terem medo de si mesmos à frente do espelho.

Nem sempre fora assim.

Pequena, sonhara grandezas. Semeara nos colchões das pequenas camas de suas bonecas cada um de seus sonhos maternais. Em cada fita de cabelo das pequenas filhas de sorriso estático, amarrara com firmeza seus desejos e pedidos. Jamais recolheria essa vontade, pensava sem saber que essas eram as palavras do seu pensamento, mas não as de seu destino. Maria Lúcia não sonhava. Maria Lúcia vivia, ali naquele mundo paralelo de quatro paredes forradas, sem saber de que matéria se tece o mundo.

Cresceu e foi à vida. Levou as bonecas dentro dos olhos, as suas particulares lentes de contato para medir a realidade. E a realidade foi-lhe dura e estéril. Maria Lúcia foi recolhendo os olhos, mantendo os sonhos bem perto deles, e pequenos, cada vez menores. Precisou trabalhar, nessa família que não tinha posses. E seu trabalho deixou-se mansamente contaminar por esse gosto incolor pelas coisas todas pequenas do mundo. As grandezas dos sonhos de menina encolheu-se dentro da caixa de botões, imperceptível como o menor dos furos. Estreitou-se por entre as agulhas alinhadas na cartela. Na alfineteira em forma de coração.

Durou pouco, a Maria Lúcia. Um dia escolheu a moldura da sua fotografia última. Quis quatro flores de pétalas ímpares, que brilhassem ao por do sol. A fotografia há de esmorecer, pensou, mas a moldura ganhará distinção, e a impressão primeira dos passantes, em domingo de cemitério, será a da distinção sóbria, e não a da finitude da imagem. Maria Lúcia quis esses brincos e esse broche na eternidade, e o seu sorriso de preferência, a fieira de pequenos dentes perolados, como botões minúsculos das golas das camisas.



12/04/2014

Bala de canela

Para a minha xará tão querida

Virgílio fez ontem 54 anos. Viúvo, grisalho, envelhecido, olhos encovados pelo peso das contas da mercearia. Vende de tudo. Ou vendia. Caixinha de fósforo, batata, Tubaína, pão francês fresquinho que o menino vai buscar ao forno antigo de dona Bastiana. Na prateleira mais lustrada, dentro de vidros leitosos, sonhos de valsa a granel para os gulosos e balas de canela, vermelhas e redondas. Como os calos novos nas mãos antigas de Virgílio.

Ciça vinha só de férias. Tinha a vida noutro canto, mas de vez em quando aparecia, e Virgílio espreitava pelo canto da porta. O carro cor de rosa em que todos reparavam. Ciça vinha à janela, o cabelo escuro ao vento, os olhos curiosos à procura dos olhos morenos na esquina da mercearia tosca. O rapaz descia os dois degraus com a pressa de quem sabia que o tempo é justiceiro cruel, e corria atrás do carro, a mão agarrada ao pacotinho marrom recheado do que Ciça mais gosta. São as balas de canela, e o punhado de sonhos de valsa.

Os vidros grossos de tampas de latão estão lá, com as balas e os sonhos de valsa sem envelhecer. Não mudaram de lugar, e nem Ciça e Virgílio se casaram. Virgílio acertou-se com a filha de dona Bastiana, e a mercearia fundiu-se com a padaria. Ciça ficou na cidade grande, onde a família lhe desenhava o futuro. A alegria de encontrar os olhos de Virgílio sucumbiu diante das luzes do longe. E Ciça não voltou mais, e nem Virgílio a foi procurar. Nem quando Bastiana morreu, e o sonho do carro virando a esquina lhe atravessava os dias, o cabelo ao vento, os olhos úmidos de saudades.

Hoje cedo, ao café com que a surpreendem na cama ao acordar, um pacotinho marrom faz o coração de Ciça parar de valsar dentro do peito: os sonhos estão ali dentro, agarrados às balas de canela que existem só pra disfarçar. Ciça tem os olhos cheios de água, esse amor que atravessa o tempo, e ele, ali, tão fresco e recente, sequer deve ter reparado.

12/03/2014

sem título




A solidão, fera amansada, pasta amarrada debaixo do meu olhar cauteloso. Afrouxo a corda que a prende quando olha para mim com olhos enxutos, e trago-a para dentro de casa quando escava o chão com as patas duras à procura. Com ela em casa, ninguém entra nem eu saio. Torno-me indisponível a quem me costuma ter, e dedico-me só a ela. Aquece os meus pés à noite e os seus olhos são as sentinelas da minha angústia. Estás bem guardada, dorme sossegada, diz-me dessa maneira que apenas as feras amansadas em casa dizem, isto quando conseguem algo dizer. E porque são as palavras o alimento da minha quietude, e porque ela sabe e respeita essa minha condição de nascença, toda a sua aparência se transforma, e até a sua pelagem, que era hirsuta, e suja, e falha, torna-se uma seda suave e lisa, por onde a minha mão escorrega aliviada. Dormimos agarradas, a besta e eu, e, porque lhe perco o medo, ela perde os modos bestiais.

Quando amanhece, e acordamos ao mesmo tempo, e olhamo-nos uma nos olhos da outra, eu levo-a lá fora, porque já se lhe percebem à flor da pele as saudades da vida livre da corda.

E depois volto a casa. A besta amansada pasta outra vez lá fora como se fosse um ser de lã. Deixo a porta aberta e descerro as cortinas. Estou pronta para aqueles que se sabem convidados. Posso ser-lhes sua outra vez. Assim que entram, talvez queiram saber do tempo, e do espaço, e dos outros mundos que vivem dentro desta casa que tem o meu nome. 

Mas nada será dito, porque se afixou à entrada um aviso perigoso: nada pedirás, nada perguntarás. Ninguém diz quem o pôs, embora se saiba e não seja exatamente um segredo, mas um poço de águas que não têm fundo. Sabe-se porque há um brilho opaco nessas palavras poucas, a esconder a verdade por trás de um traçado simétrico. Mas também ninguém discute, porque bem estão as coisas que estão bem, e esta porta aberta, esta fera amansada e este coração a bater no peito sabem bem. 

E passamos uns e outros pelo aviso, ao entrar e ao sair, e mesmo que se percebam as leves farpas que espreitam das letras, escolhemos nada dizer, porque ao longe cavalga um ser que confia. Ouve-se o bater das ferraduras nas pedras do caminho. Pode-se levantar voo e vê-lo ao longe, no exato momento em que as quatro patas do animal então no ar. Nessa suspensão de tempo, nessa evaporação de espaço, vivem a fera, o amor e a espera. E eu entro, e decido fazer-me parte da paisagem em movimento.


Fotografia: Moreno Ribeiro

09/03/2014

O outro nome


Este amor não é um rio,
tem a vastidão do mar

A ti, antes que a ambos nos alcance a morte

Aqui estou, diante das águas do rio que não é o da tua aldeia. Nem sequer o rio onde gostas de nadar, a mergulhares até quase se perder o ar. Só quase: tu não gostas de perder o ar, talvez porque sejas um ser de terra, ainda que em ti se ergam as forças ígneas, e mesmo que tentes delas fugir, elas correm atrás dos teus rastros.

Mas para além disso, sabes o que vejo, eu que fico deste lado de fora d'água, quando nela submerges? Vejo os pesos do teu quotidiano, dessa tua vida que dizes monótona, de números e parafusos e pequenas retortas que antes fossem, mas não são, de alquimista. Boiam ao redor das marcas que o teu corpo deixa à superfície, que são tantas quanto as das enguias a fazerem o mesmo percurso. As tuas espáduas, já te disse há tanto tempo, são peixes alongados a passear nas tuas costas. Talvez mergulhes na água como desejas mergulhar dentro da mulher que ames.

À distância de tantas ondas, olhos postos no barco ao passar, lembro-me dos teus olhos quando fechados. E levanto-me com vagar, porque os anos já não me fazem saltar como mola do lugar em que me escolho sentar. E vou em direção ao café, este desporto nacional que tanto me agrada. Não sei bem (nunca soube) o que pedir à vida, tanto quanto não sei o que pedir agora ao empregado do café que se aproxima de mim com o guardanapo branco pousado no antebraço como uma gaivota. Olha-me solícito, e não sei se o faz de propósito, mas confunde-me o lapso de tempo que existe entre os meus desejos e o seu atendimento. Que mais é a vida do que uma sucessão aleatória de lapsos de tempo, onde eu ora sou esta pessoa sentada à mesa do café, ora o empregado de gaivotas nas mangas a atender com olhos líquidos o espaço vazio da cadeira que ocupei?

Seja a forma ou o tempo de que disponha, não deixarei de ser desta forma de gente que ora se senta à mesa, ora a atende. Esta forma de gente que não se aflige nem se desconcerta com os silêncios teus, inesperados, com as ausências tuas, que não se anunciam, com as distâncias todas que se materializam porque alguém, não importa quem, se esqueceu, e mais nada. O esquecimento é a lembrança adormecida. Esta vida, tu que talvez já tenhas começado a desfazer-te no poente, nada mais é do que o caminho que se abre entre as mãos que servem e as mãos que pedem. Eu tenho em mim dois grandes pares de mãos.

Volto para perto do rio, porque estar perto d'água é como estar perto de ti. E estar perto de ti é o pedido que me faz o coração, e eu, que nada sou a não ser aqueles que me compõem, posso escolher ter-te perto e estar-me perto. Porque estar perto de ti é ter-me perto dos meus pensamentos, como se fosses o pastor e fosses os montes e as campinas que ondulam dentro de mim, à espera. Ainda que não percorras os vales e as colinas desta vida que nos coube, porque desejas o que não temos, alimentas as paisagens que de dedos enlaçados desenhamos na superfície inventada. E são essas as paisagens que todos os dias, pontuais como a sirene do navio a atravessar o rio de banda a banda, se levantam no horizonte da manhã. E é isso o meu bastar-me, e porque me basta e como me basta, sou, basicamente, feliz.

Poderia ficar-me por aqui, e não dizer-te mais nada, porque de certa forma sei que até isto já é mais do que devia, para quem não quer ouvir nem pensar em nada. Apenas ser, e sentir, e deixar-se levar como as folhas que caem no leito do rio, e querem que se acredite que se deixam conduzir sem espreitarem o para onde vão. Mas devo ainda desafogar mais um triângulo da minha alma. Devo acrescentar ainda a esta dose imensa de exposição de carne e sangue e fluidos e densidades, uma coisa.

Penso que o seres dentro de mim feito de tantas letras faz com que esta cidade, hoje, sussurre esse "sou tua" que me embala até a noite já ser alta e já ser amanhã. Esta condição que crias, com as palavras que despertas neste lugar que só tu conheces em mim, esta condição que crias oferece-me o estares em mim, e este estar em ti que escolho mas não imponho e é agora também condição. E é essa a tua presença constante dentro dos versos das minhas linhas: uma candeia acesa, que não sabe onde os teus pés enterram a força da sua vida, mas a ilumina da mesma forma, refletida nestes meus olhos que olham o rio que não é o da tua aldeia, mas é o rio que circula nas minhas veias e, por condição escolhida e aceite, também nas tuas.

Fica bem. E lembra-te de mim.



Imagem: o Forte de São Julião da Barra, em Oeiras. Aquarela de Filipe Almeida
http://tracoslocais.blogspot.pt/
Versos em epígrafe do "Fado perdição", de Maria Duarte.

O amor é uma companhia

O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.


Lisboa amanhece neste 9 de março fria e cinzenta. E ainda assim, a luz impera. De onde tira esta cidade a luz com que sempre amanhece? Saio de casa disposta a olhar com olhos de ver, ainda com a noite de ontem fresca dentro de mim.

Ouvi ontem, como verdade já sabida, que nada é acaso. A mola propulsora de Fernando Pessoa. E de Alberto Caeiro. E de todos esses irmãos que ele se criou para não ser sozinho, e ser o que todos provavelmente somos: muitos dentro de um mesmo envelope.

Fez ontem cem anos do dia triunfal da vida de Fernando Pessoa. E agora que já não é ontem, mas hoje, fecho os olhos. Estou outra vez, e ainda frescos os sentidos porque foi apenas ontem, dentro da casa onde o poeta viveu por 15 anos. Dentro do quarto que habitou, onde escreveu, onde dormiu, onde se postou à janela para ver a rua lá embaixo. Talvez seja esta a mais alta janela da sua casa, e debruço-me nela para ficar mais perto dele. Fico diante da sua cama, encosto-me a ela, sento-me nela. Seu chapéu jaz aí, displicente, como se ele tivesse acabado de sair e o tivesse esquecido, ou como se tivesse acabado de chegar e o tivesse atirado para cima da colcha amarela de chita de Alcobaça. Também está aqui, na parede entre as janelas, a cómoda alta onde esteve, nesse dia triunfal que hoje faz cem anos, um guardador de rebanhos que nunca os guardou, mas é como se os tivesse guardado, porque a sua alma é um pastor. E tanto faz se são fatos ou ficções, todas aquelas linhas que escreveu a Casais Monteiro tantos anos depois. Nesta noite, que porque nada é acaso posso chamar de sagrada, leem-se os poemas deste pastor, depois de sabermos que quem lhes deu vida dedicou-se a pensar muito mais do que este, que agora ouvimos. Desfiam-se as palavras que não são palavras, mas campinas, ventos, ilusões de letras a marcar a substância concreta do mundo. Em silêncio dentro deste quarto, nós que aqui estamos porque nada é acaso, ouvimos o que foi escrito, e a voz melodiosa da Natália Luíza que os lê, sabe o que está a fazer. Ou talvez não saiba, mas faz como se soubesse. O que me leva a ter certeza de que sim: sabe. Dessa maneira caeira de saberem-se as coisas, que é sabê-las porque sentidas, e não porque sabidas.

E aprendi muitas coisas ontem, desse Fernando Pessoa astrólogo que disse a si mesmo sê vários, mas sê inteiro, e que o Paulo Cardoso apresenta tão leve, tão fácil, tão evidentemente. E por querer ser inteiro não podendo ser único, porque somos tudo menos únicos, fingir ser vários para poder ser autêntico. Como nós, mas ao contrário, a fingirmos sermos um só para não nos perdermos entre os vários que vivem dentro de nós - ou para que os outros não se percam nesses vários que palpitam em nós. É mais provável a segunda opção.

A contraparte de dizermos "nada é acaso" está em "tudo é simbólico". E simbólico é que nesse 8 de março estivéssemos nós que estávamos. E as coisas que aprendi, dessa maneira de se aprenderem as coisas que é sentindo-as sem as pensar, são um tropel de cavalos que agora se me impacientam na alma. Não aceitam rédeas nem sela, e nem sequer que eu me aproxime (ainda) para acariciar-lhes as crinas, olhá-los nos olhos, passar-lhes a mão pela maciez forte dos seus músculos lisos. Só posso admirá-los, assim de longe como se olham as paisagens mais secretas da alma. Assim de perto como olho agora, neste instante que se acaba assim que o escrevo, o encontro entre o rio e o mar. E assim como agora neste instante, porque nada é por acaso e tudo é definitivamente simbólico, entrego à fusão destes dois seres, rio e mar, a marulhar conjuras dentro da minha garganta calada, papeis dobrados em quatro, que as ondas vêm receber, com umas mãos que lembram o fado que me estenderam ao nascer. Agora, neste instante, sinto em mim que o amor é (não posso contestar) uma companhia, e não estou só, porque nunca estou sozinha.


Excerto de "O amor é uma companhia", Alberto Caeiro in "O pastor amoroso".
Fotografia: Ana Mata
Palestra da Paulo Cardoso e leitura dos poemas de "O guardador de rebanhos" na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa.

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Assim como





Fez ontem
Ontem t
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08/03/2014

A cidade feita de luz

Na cidade mais bonita do mundo há uma quantidade assombrosa de recantos que é preciso explorar. Porque pode-se passar à porta, ou diante dela, e achar-se interessante. Mas se não se entra, com a paciência e o sossego característicos desta capital, e uma dose de entusiasmo explorador marítimo, perde-se. E assombro perdido é assombro perdido.

Praça da Figueira, número 7. Vimos desde o Cais do Sodré à procura do lugar. Antes, é preciso comer as últimas castanhas assadas da estação, beber um café que nunca se bebe no Martinho da Arcada, os dedos encostados ao mármore que viu nascer quem sabe um guardador de rebanhos, e vir pela Rua da Prata acima. É preciso desviar das tentações feitas de bustos de Camões e Camilos Castelos Brancos, dos pequenos Afonsos Henriques com vestes templárias espalhados pelas lojas numa súbita paixão nacional pelo primeiro rei de Portugal. Atravessamos a praça que já foi mercado e aterrissamos em pleno Hospital das Bonecas. O burburinho da cidade submerge no lado de fora.

Aqui, a vida é brincadeira. Brincadeira a sério, como são as verdadeiras. Inaugurada em 1830, a Ervanária Portuguesa da dona Carlota em pouco tempo começou a receber as coitadas das bonecas acidentadas das miúdas que por lá passavam ou por ali viviam. Dizem que vinham com as mães e as avós ao mercado, e ficavam encantadas com as roupas de boneca que a jeitosa da dona Carlota fazia, sentadinha à porta da ervanária, entre um cliente que queria tília e outro que perguntava se havia lúcia lima e o outro ainda que chegava apressado para buscar a sua encomenda de amieiro negro. São lindos, os nomes das ervas.

Hoje é a Marta que está ao balcão. Trago a Rosinha, que coitada perdeu a cabeça. Boneca mais querida de casa, prometi que a traria ao hospital. A expectativa é grande. A Marta abana a cabeça: "Coitadinha...". Olha para mim com um olhar compungido (enquanto o filho adulto ao lado não sabe se ri se chora) e diz: "Olhe: ela vai precisar ficar internada". Pergunto-lhe se vai demorar muito tempo e ela diz-me espantada: "Mas, minha senhora... isto é um caso muito sério! Há de ficar aqui conosco por pelo menos um mês!". 

Fico a pensar na coitada da minha filha que acredita que os achaques de boneca são mais fáceis de tratar que os de gente. Engana-se, e nem sabe disso. Especialmente quando se perde a cabeça, e o mundo obviamente destaca-se da sua ordem costumeira, tanto faz se bonecas, se gente. Não é coisa de poucos dias, e não se tem certeza de como se ficará. Digo-lhe que está bem, o que é que se há de fazer, são as coisas da vida, veja lá se conseguem dar-lhe um jeito ao cabelo, já agora... E ela concorda: "Realmente, este cabelo está a precisar passar por uns cuidaditos... Deixe estar que há de ficar como melhor puder ser!", e começa a preencher a ficha da doente. Ao finalizar (precisa de todos os dados, e eu sequer sei o tipo sanguíneo da Rosinha...) instrui-nos: "Vejam, aqui está o telefone (aponta um número no papel), podem telefonar a informarem-se como ela está. Só é preciso que digam o número da cama"  - e aponta outro número, que qualquer incauto chamaria de ordem de serviço, para logo depois ser expulso dali aos pontapés. A Rosinha, que jazia deitada de olhos fechados em cima do balcão, seguiu para a enfermaria, mas não sem antes se despedir de mim, que entretanto quase me vi a encher os olhos de lágrimas. Até porque o respeito pela internação fez esperar os outros clientes da loja, donos da tal paciência, por quase trinta e cinco minutos. Sem queixas nem perguntas, num silêncio que parecia remetê-los às próprias agruras com a saúde dos entes queridos.

Saímos de lá com a alma a precisar de ajuda. Viramos à direita, e outra vez à direita, e chegamos às Portas de Santo Antão, de onde a "Ginja sem rival", da sua minúscula porta, firme e forte desde 1870, nos chamou sem precisar de insistência. Gosto deste gosto lisboeta de gostar das coisas velhas, satisfazer-se e orgulhar-se delas, e mantê-las iguais e idênticas entre um século e outro. O pequeno copo ali à porta, em pé e ao sol, restabeleceu as forças, indo buscar lá aos fundos da memória a sensação de outras épocas.

E continuamos nas andanças. Para esvaziar a cabeça dos problemas das demais cabeças, sejam elas de pessoas, sejam elas de bonecas. Não há, afinal, grandes diferenças, e o que é preciso é paciência, sossego e uma cidade como esta, cheia de luz, de pedras e de esquinas. Uma cidade a ensinar-nos que, para encontrar a primeira, basta aceitar as segundas, e confiar que as terceiras surgirão a cada momento, dispostas a levar-nos exatamente ao lugar para onde devemos ir.