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07/07/2014

Clarice, em carta

Provavelmente porque precisava de quem me oferecesse todos e nenhum caminho de entendimento ao mesmo tempo, fui em busca de Clarice. Porque a força da ficção vive na capacidade de não ser verdade mas poder impor-se como tal, nesse conceito cheio de letras que é a "verossimilhança": um ser semelhante à verdade, que está de acordo com aquilo que poderia ser, ainda que em desacordo com aquilo que se vê normalmente. Aí está uma discussão que adoro: o que é mesmo a verdade do que se vê?

Mas vamos à Clarice. Há uma carta, que se diz ser dela, a uma amiga incógnita, escrita em Berna em 1947. Uma versão conta que a teria dirigido a sua irmã Tânia, entre muitas outras que escreveu a todas as suas irmãs, nos mais de 15 anos que viveu fora do Brasil. Foi Caio Fernando Abreu quem publicou a tal carta, avisando que não tinha certeza de ser da escritora, mas que a ela se atribuía, e assim de fato parecia.

A destinatária da missiva devia passar por momentos de aperto, desses que fazem as mulheres se aproximarem umas das outras em busca menos de consolo que de compreensão. Às vezes, a realidade do mundo sobrepõe-se à verdade que se intui para lá dele mesmo, e é bom uma mão amiga, um ombro aberto, uma palavra de alívio, para que não se sucumba à impressão de endoidecer. Se a carta é ou não verídica, não sei. Mas é verossímil, e por isso leio-a como se de Clarice fosse, como se a amiga e a consequente amizade o fossem também, como se a congruência fosse (é) uma realidade palpável. Berna, 1947, parecia-se a uma fazenda, escrevia Clarice em outra carta, lamentando a falta de paciência para gostar de uma coisa assim. Não lhe foram fáceis esses anos, como não o foram para europeu algum do pós-guerra. Na verdade, não sei se a vida lhe foi fácil ou difícil, porque essa não era uma preocupação que Clarice aparentasse, essa de pensar na facilidade ou na dificuldade das coisas. Clarice era dada a agir sem muito pensar; ainda em outra carta, diz que desse método lucrou meio a meio: metade de fato intuição, a outra metade pura infantilidade. Preciso ser mais madura, dizia ela. Mas tenho medo de amadurecer demais, completava.

Não sei bem se Clarice era dada a aliviar os outros. Creio que não, tanto quanto creio que ela mesma raramente encontrava alívio a não ser na escrita, e ainda assim de forma muito leve. Mas essa carta em especial alivia, como alivia uma conversa em voz baixa à mesa enquanto se divide um jantar. Aquelas coisas profundas e simples que só podem ser entregues ao outro quando há tempo, espaço e interesse. Cartas, na falta de jantares, e quando a distância é marítima, sossegam o espírito.

A meio desses momentos difíceis pelos quais a amiga passa, Clarice aflige-se por vê-la enveredar pelo caminho fácil de ser o que não se é. Porque os outros pedem. Porque os outros suplicam. Porque os outros exigem. Porque todos dizem que. Porque todos fazem. Tanto faz. É preciso ser-se quem se é, e estar atento (não sei se leio ou penso) ao tanto que não se pode levar a alma no caminho da distração de si própria. É preciso estancar o fluxo. É preciso subverter a ordem que chega. É preciso com urgência resgatar os próprios defeitos, e tomá-los nas mãos com o mesmo carinho com que se tomam as virtudes. Clarice alerta: nunca se sabe qual é o defeito que sustenta o nosso edifício inteiro. E por isso cortar os próprios defeitos é ação perigosa.

E por isso é preciso ler Clarice e prestar-lhe atenção, atenção a esse sufocamento acre que lhe sobe pelas letras e nos incomoda os olhos. Que nos alerta para os desvios daquelas que são as nossas necessidades e expectativas, esse desviar-se desatento do caminho que a alma nos grita precisar percorrer. Sem prestarmos atenção equivocada ao que dizem, fazem, pensam, pedem, exigem, esperam, demandam, provocam, precisam - os outros. Ler Clarice volta-nos os olhos para dentro. Desconstrói-nos. E por trás de tanta cortina, lá estão reunidos os nossos esforços em mudar o que somos, esses esforços imensos de emoldurar o quadro que somos e descartar as sobras à sua volta. Como se algo em nós sobrasse.

O custo, às vezes, é alto. Outras, é alto demais. A alma esvai-se pelo meio, atravessa a vida como água que a areia absorve lenta. E perde-se a água, e a areia continua como sempre. Clarice fala da "comodidade da alma" e das concessões que se fazem em seu nome. Quando se abdica de si mesmo, das próprias faltas, dos próprios tropeços. Quando se abdica das necessidades mais básicas, e que são as nossas. Quando se abdica da própria verossimilhança. E quando, por fim, não se é mais nada.


Foto de Claudia Andujar, 1961

25/08/2011

Sem título, por opção


Há tempos que ando com vontade de escrever a respeito de uma palavra que me abalroou uns meses atrás – fiquei atônita olhando para ela, mal acreditando no que me fazia pensar. Chegou-me às mãos via os gregos e chama-se sphalmatos. Associada a perigo, aplica-se (ou aplicava-se) às situações de caída ou desgraça.  E isto a propósito de que? De duas coisas.

Uma, a crônica de Clarice Lispector que decidi reler um dia desses, uma das suas mais bonitas: “Estado de graça”. Deu-me a ideia, há alguns anos, de um daqueles exercícios que por mais que se repitam mais prazer dão: neste caso, ir ao encontro de palavras derivadas a partir de uma determinada raiz, descobrindo às vezes parentes e significados ímpares, num brainstorming linguístico que adquire maior sentido à medida que avança no espaço. Como o tal estado de graça, que os gregos readquiriam, para evitar a queda (ou a desgraça), somando à palavra o prefixo a, que tudo nega. Portanto , asphalmatos – aquilo que impede a queda ou a desgraça.

“Desgraça” faz parte do campo semântico que se abre com a palavra “graça”, um espaço de limites longínquos, cheio de sutilezas e encantos. Graça é aquilo que criança faz, e nos faz sorrir (mais do que rir); graça é aquele presentinho simpático que recebemos de quem menos esperávamos, e que nos provoca o “que graça!”. "Graça" oferece-nos palavras tão diferentes quanto gracioso e engraçado; gratidão e ingrato; agradecido e desgraçado. Estar em "estado de graça" é um pouco levitar do duro chão da existência, ser alçado àquelas alturas a que as paixões às vezes nos remetem (e das quais, quando caímos em desgraça, ganhamos um tombo proporcional ao grau anterior do estado oposto).

As coisas que são "de graça", contrariando todas as lógicas capitalistas, inclusive as bem intencionadas, são aquelas que não têm preço e que por isso mesmo nos deixam a alma naquele já dito estado de levitação. Aquelas coisas que chegam assim, do nada, sem que se esperasse ou previsse, e de repente se nos oferecem, leves, lisas e ternas. Um brinde da vida.

Pois os gregos sabiam disso. Usavam tanto asphalmatos que, por economia da língua, tornou-se asphaltos, acabando por batizar aquilo que, para dezenas de civilizações, dos próprios gregos aos sumérios, passando pelos assírios, pelos babilônios e pelos egípcios, serviu para impedir que as coisas caíssem (literalmente) e se desgraçassem. Noé usou asphaltos para calafetar sua (nossa) Arca. Literalmente, ainda em grego, está cunhado como “aquilo que evita a caída”.

Isso fez-me pensar, e num volteio repentino fiquei matutando se não nos estará faltando justamente aquilo que negamos tanto tempo – no plano concreto, palpável, o sempre-dito asfalto (assim, na grafia que conhecemos, sem o ph que o original grego oferece), aquilo que pode impedir que os nossos caminhos se desintegrem, se esboroem, criem buracos e levantem poeiras que nos intoxicam e nublam a visão clara do que está à nossa frente - ou às nossas costas. No plano das ideias e dos afetos, que foi para onde esta história me catapultou de fato, é como se nos escapasse o estado de graça, porque negamos, através do distanciamento, a nossa proximidade; porque perdemos a cordialidade; porque entendemos que a luta precede o entendimento e que a construção do nosso sentido parte da negação do sentido alheio, e não do seu caráter complementar.

Sinto falta, nestes últimos tempos, não só de conhecer as tantas diferentes pessoas que moram hoje à minha volta, e encontrá-las nas festas simples onde dinheiro não era moeda, mas também de re-conhecer aquelas que já estão aqui há muito – sem que a falta de tempo, de espaço, de disponibilidade ou de desprendimento nos impeçam de levitar, achar graça sobretudo em nós mesmos e ser gratos. Clarice, nos momentos da depressão que sucedeu o incêndio que quase a matou, queixava-se da solidão das coisas do mundo, e refugiou-se nessa solidão que ajudou a construir. Não gostaria que lhe repetíssemos esses passos.