14/04/2014

De dia, como de noite

Maria Lúcia Bertonelli, nascida a 2 de março de 1912, falecida a 30 de agosto de 1947


Maria Lúcia trabalha há anos na fábrica de camisas. Um emprego bom, cheio de rotinas pequenas e desimportantes que lhe dão sentido à vida. Maria Lúcia cultiva a desimportância. Os botões que se enfileiram diante das pregadeiras, organizados por tons e tamanhos e números de furos. As capas das máquinas de costura, debruadas de vieses no mesmo tom do tecido grosso. À distância de dois palmos, nem se percebem. As coisas da vida de Maria Lúcia estão a dois dedos de distância de seus olhos.

Todos sabem quem Maria Lúcia é, e cumprimentam-na à entrada. Ela é, sempre, a primeira a chegar, e a sentir o ar morno e silencioso do vão aberto. As costureiras enfileiram-se como botões nas suas cadeiras eretas, suas roupas escuras como pontos de bordado, os óculos de aros finos e duros à espreita na frente dos olhos. Escolhem pelo tato o tom, o tamanho e o número de furos dos botões, e pregam-nos sem aproximá-los da vista. Os olhos encontram, às vezes, os de Maria Lúcia. Duros e estéreis, as mãos entrelaçadas escondidas atrás das costas e do sorriso perolado que não se desmancha.

Maria Lúcia não fala com a boca, mas com os olhos. Nem com as mãos, só os olhos. E só à distância. Talvez, no fundo, Maria Lúcia não veja nada à sua frente. Talvez a redução de seu horizonte de dois dedos lhe dê a dureza daqueles que se mantêm ao longe dos outros por terem medo de si mesmos à frente do espelho.

Nem sempre fora assim.

Pequena, sonhara grandezas. Semeara nos colchões das pequenas camas de suas bonecas cada um de seus sonhos maternais. Em cada fita de cabelo das pequenas filhas de sorriso estático, amarrara com firmeza seus desejos e pedidos. Jamais recolheria essa vontade, pensava sem saber que essas eram as palavras do seu pensamento, mas não as de seu destino. Maria Lúcia não sonhava. Maria Lúcia vivia, ali naquele mundo paralelo de quatro paredes forradas, sem saber de que matéria se tece o mundo.

Cresceu e foi à vida. Levou as bonecas dentro dos olhos, as suas particulares lentes de contato para medir a realidade. E a realidade foi-lhe dura e estéril. Maria Lúcia foi recolhendo os olhos, mantendo os sonhos bem perto deles, e pequenos, cada vez menores. Precisou trabalhar, nessa família que não tinha posses. E seu trabalho deixou-se mansamente contaminar por esse gosto incolor pelas coisas todas pequenas do mundo. As grandezas dos sonhos de menina encolheu-se dentro da caixa de botões, imperceptível como o menor dos furos. Estreitou-se por entre as agulhas alinhadas na cartela. Na alfineteira em forma de coração.

Durou pouco, a Maria Lúcia. Um dia escolheu a moldura da sua fotografia última. Quis quatro flores de pétalas ímpares, que brilhassem ao por do sol. A fotografia há de esmorecer, pensou, mas a moldura ganhará distinção, e a impressão primeira dos passantes, em domingo de cemitério, será a da distinção sóbria, e não a da finitude da imagem. Maria Lúcia quis esses brincos e esse broche na eternidade, e o seu sorriso de preferência, a fieira de pequenos dentes perolados, como botões minúsculos das golas das camisas.



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