16/08/2016

O bode atrás da cerca

Quando Leonardo Boff publicou "Igreja: carisma e poder" em 1981, a pena a ele imposta pela Santa Fé foi a do "silêncio obsequioso". Ou seja: não mais ele poderia publicar, lecionar ou fazer qualquer pronunciamento público. 

Curioso como as palavras oferecem sinuosidades. Tudo diria que "obsequioso" se parecesse com dádiva, oferta, presente. Mas não - a pena católica é bastante dura, e tenta o mais que pode remeter o destinatário dela ao anonimato e à inexistência. No caso de Boff, não deu muito certo, porque em vez de ser efetivamente silenciado ganhou notoriedade, e com ele a revolucionária Teoria da Libertação.

Pior quando esse "silêncio obsequioso", que nos torna inexistentes, parte de dentro de nós mesmos. Em tempos líquidos, como diz Bauman, tornamo-nos gasosos quando decidimos calar. Voláteis. Sem peso nem consistência.

Como tudo tem muitos lados, e a diversidade impera, e é preciso respeitar tantos tudos que nem sabemos por onde começar, e porque seria terrível ofender alguém, a ponto de gerar indisposições... calamo-nos. E dizemos, do alto de uma benignidade mal vestida, que é preciso considerar as variáveis, respeitar processos, construir pontes entre desiguais em termos de maturidade.

Ora convenhamos.

Silenciar é muito conveniente, mas bastante ineficaz. Tanto quanto relativizar a discussão, que é uma forma mesquinha de desautorizar o discurso do outro, partindo do princípio de que tudo tem mesmo peso, sabor e espaço. O silêncio é em si uma forma de discurso, e as tentativas de justificá-lo mais ainda. E toda forma de discurso carrega em seu bojo uma ideologia, inevitavelmente ligada ao nosso particular sistema de valores e crenças que é muito, mas muito menos benigno e elevado do que gostaríamos que fosse.

Por trás dos nossos "silêncios obsequiosos" ora mora a covardia, ora o desinteresse pelo outro, ora o interesse por si próprio, ora a vontade dúbia de mediante palavras avulsas fazer chegar ao destinatário o que não teríamos coragem de pronunciar abertamente.

Um pouco como Duvivier, ando cansada desses tempos de correção em que nos eximimos de mostrar com clareza ao mundo quem somos e a que viemos. Cansada de ser levada para dentro de discursos pretensamente neutros, que, se de um lado defendem, de outro podam a livre expressão justamente dessa pluralidade que dizem defender, limpando-a dos ombros como se limpa a poeira suja dos caminhos.

Como filhos, netos e bisnetos de uma sociedade pautada e marcada pela castração e pela individualidade; pelo privilégio de poucos contra a necessidade de muitos; pela supremacia do branco, rico, culto e hetero em detrimento do não-branco, não-rico, não-culto, não-hetero,  dividimos, ainda quando não queremos, e nem sequer nos apercebemos, o mundo em alto e baixo, direita e esquerda, bem e mal, contra e a favor - mesmo que não queiramos, mesmo que nos revoltemos, mesmo que neguemos.

Recusando e abortando espaços para a exposição dessas nossas mazelas e escuridões pessoais e sociais, a única coisa que fazemos é instituir uma bula papal para a nossa vida. De nada adianta a grande reclamação da corrupção e da falta de transparência das altas esferas. As mudanças começam dentro de casa, e é lá nos cômodos que incomodam, e que se tornam mais visíveis se, por acaso, assumimos um lugar de destaque, poder ou comando. Esses cômodos, quando abertos ao público, revelam o ar que se respira lá dentro, e mesmo que se retirem móveis, cortinas, palavras, e optemos pelo silêncio, pela equanimidade, pela imparcialidade, por uma forma educada e circunstancial, todos os nossos lados, mais dias menos dias, aparecerão na sua imperfeição e falha. E inevitavelmente o bode espreitará por trás da cerca, com seu claro olho acusador.


Imagem: O Zé, em clique de Tai Ribeiro


15/08/2016

Atrás dos óculos

Atrás dos óculos, via a vitrine vazia. Um ponto, o caos, a vista embaçada. Atrás dos óculos, via as lágrimas como pérolas escuras. Escorrem-lhe pelo rosto vincado e laceram-lhe a pele, numa abertura lenta de ruínas incandescentes por onde se esgueira a memória.

Atrás dos óculos, via a fuga, com os olhos fechados até às comissuras dos lábios. Uma sentinela apagada no cimo do farol, a plena escuridão, o frio, o afogamento solitário.

Atrás dos óculos, via a vergonha de não ver o óbvio, de perder as lentes e não entender, de procurar e não ver o sorriso de hiena no lábio fino, a alma esgarçada sem conseguir se ver inteira por dentro. Tudo aos pedaços, aos bocados.

Atrás dos óculos, via um fio feito rio avolumado, as margens muitas que contêm nadas. Via o abismo de um si mesmo despreparado. Via as garras, o vento, a imundície da neve derretida à noite na calçada da cidade grande.

Ao sair, muniu-se de ouro. Jurou a si mesma, diante do espelho que lhe cortava as ruas, preencher-se com o mais puro e valioso ouro, juntando os buracos até se fazerem tela. Nem o que lhe roubaram faria falta. Muito melhor ser inteira pela segunda vez do que nunca ter se sabido pedaços.


13/08/2016

Auto-ajuda etimológica para consumistas


Hoje cedo, ainda alvorada, decidi passar os olhos pela internet. Deparei-me com um anúncio de um revival neo-pretensamente-hippie de kombi que a Volkswagen andaria tramando em seus escritórios, como uma nova ideia para atender a seus consumidores. 

Entre muitas heranças, os gregos deixaram-nos essa pequena palavra Idea. Literalmente, idea é forma, aparência, o "protótipo (proto: primeiro + typo: marca impressa) ideal".

É justamente um filósofo, na França do século XIX, que decide ocupar-se do mundo da ideia. Diz ele (ele é Destutt de Tracy) que a origem das ideias humanas são as percepções sensoriais do mundo externo. Napoleão chamou-o, e a seus seguidores, de "ideólogos". Desde então, temos entre nós essa beleza de palavra: ideologia. Marx, Engels, Eagleton, Lukács, Manheim, Thompson - são várias mãos cheias de filósofos e pensadores que se ocuparam dela desde então.

Neutra ou crítica, a ideologia está ligada à percepção que temos do mundo à nossa volta, e à forma como nos relacionamos com ambos, mundo e percepção. Sendo forma e aparência, o como e o que vemos do mundo depende dos nossos olhos e daquilo que lhes damos de alimento para saber distinguir uma coisa de outra. A partir do que ensinamos a nossos olhos (de como os educamos), eles dirão de que matéria, segundo a sua observação, se faz o mundo ao redor. Pode ser que consigam ver por detrás da mera aparência, pode ser que não. E quem diz olhos diz o resto, diz ouvidos, diz pele, diz nariz e diz língua. 

Isso mesmo, língua. Essa onde se anida a linguagem. Essa que estabelece uma ponte entre os sentidos mais básicos e os mais elaborados. As palavras que fazemos nascer da nossa língua, que ouvimos com os ouvidos e escrevemos com os dedos, entra mesmo é pelos poros, esse imenso véu sensível que nos recobre por todos os lados, sendo ao mesmo tempo nosso continente e nosso conteúdo. (Em tempo: os romanos tinham uma taxa, chamada linguarium, que se aplicava a quem falava demais.)

O regime alimentar de nossos olhos e ouvidos é muito conturbado. Porque aparência é tudo. Seja para persuadir, dissuadir ou sorrir placidamente entoando mantras - a aparência é tudo o que percebemos do mundo se não nos dispomos a ir além dela. Quanto menos nos dedicamos ao escrutínio do que pensamos ver, sentir, cheirar, ouvir - mais permitimos que a alienação entre em nosso íntimo. E veja: alienar-se é afastar-se de si mesmo, perder a estima, transferir algo para outro. Porque alius é o outro. 

E esse alius, lamento informar, quer você. E, para conseguir, usará de todas as formas concebíveis, e não só, para tanto. Há de mascarar a realidade, que é uma forma delicada de se falar da mentira. Seduzirá, que é uma forma aliviada de falar de manipulação. Esconderá defeitos e iluminará qualidades, como se essas fossem melhores e mais importantes que aqueles, tentando convencê-lo de que as coisas são segundo as mostra. Aos poucos, tomará conta da sua consciência, alienando-a, e transferindo-a para si. E, um dia mais que o anterior, você acreditará de pés juntos em tudo o que isso -que-tomou-sua-consciência quiser que você acredite.

É isso que alius, o outro, faz. E é isso que você (e eu, e todos) faz também, porque você é o alius de seu vizinho. 

Entra em campo a consciência, ou a sua falta. A consciência de saber que é assim que agimos - porque somos seres humanos que a todo momento formamos ideias a partir daquilo que nossos sentidos percebem. E raramente percebemos as coisas tais quais elas são. E somos seres humanos muito dados à busca da dominação do outro - ser humano, espaço, recurso. Veja os livros de História - é exemplo atrás de exemplo, e não se ache tão diferente porque a sua raça é a mesma. Humana.

A consciência de ser/estar dominado ou dominar é enormemente importante em nossos dias (se é que não em todos). Porque embora possamos pensar em ideologia e estabelecer uma linha reta entre ela e formas de ilusão ou de consciência falsa, pelo meio do caminho vamos tropeçar nas relações de dominação que estabelecemos e que estabelecem conosco. E a linguagem tem um lugar de honra nesse caminho todo.

Quando a aparência tem maior peso que seu oposto complementar (a essência), ou quando, pior, entendemos que são iguaizinhos, trilhamos caminhos inseguros, perigosos e traiçoeiros, cada vez mais suscetíveis a quaisquer formas de manipulação que nos façam fazer coisas que talvez em sã consciência não fizéssemos. Por exemplo, consumir.

E era aqui que eu queria chegar, e se você chegou comigo eu já fico é satisfeita.

Consumir deriva do latim consumere, que é comer, gastar, desperdiçar. Forma-se a partir do sufixo com, que intensifica tudo o que vem depois; e de sumere, que é tomar. Tomar exageradamente. Ou seja: somos sempre exagerados quando consumimos. Sempre. O consumismo é sempre sempre sempre um desgaste, um desperdício.

Por isso, quando o mercado tenta vorazmente apoderar-se de tudo quanto é valor, que costumamos alojar em determinados lugares simbólicos, é preciso exercitar o constante movimento de transferir esses valores para outros lugares. Eu escolho transferi-los para lugares cada vez mais íntimos, e silenciosos, para ter menos trabalho logo mais, quando as longas garras do mercado quiserem se apoderar de mais um símbolo externo. Porque o mercado não para, e nem se satisfaz. Ele sempre vai querer mais e mais os seus sonhos, os seus valores, tudo aquilo em que você acredita e faz a vida ser, para você, a vida. Só que tudo isso é aparência, tão bem trabalhada e glamourizada que em pouco tempo você assumirá para si que sim: toda essa aparência deve estar relacionada à essência. Só que não. Basta ir ao supermercado e conferir que o catchup que você compra tem tudo, menos tomate. Basta checar qualquer móvel moderno e conferir que aquilo é feito de qualquer coisa, menos de madeira. Tudo "parece com", "assemelha-se a" e tem "as mesmas qualidades que". Realidades externas que supram as nossas carências internas: é claro que só pode dar errado!

Dá trabalho, e sobretudo uma quase-tristeza, esse exercício constante, não de desapego (até porque até ele já virou produto de mercado), mas de desilusão. Escolher o desiludir-se e criar em seu entorno cada vez mais luz de consciência. Nem é fácil nem indolor: conscire é ser mutuamente alerta, é saber (scire) intensa e completamente (com). Com consciência, você passa a ter de escolher com mais seriedade o que você faz, diz, ouve, compra, vende, acaricia, empresta, pega, recolhe, entrega e despacha. E dá uma preguiça danada, uma preguiça sempre alimentada pelo mercado, doidinho pra entrar na sua vida e lhe oferecer tudo o que, sendo aparência, vai lhe dar a sensação de ser perfeito. Mas não estará. Porque não há van que crie na sua vida um movimento de contra cultura, que se opunha por definição a tudo isso que, numa enorme ignomínia, os executivos da Volks andam pensando. O que vem a ser ignomínia?! A partir de in+nomen, vem a ser a perda e o fim de um bom nome: ou seja, nossa própria desgraça e vergonha.

22/07/2016

Con-cordar


Desde o dia em que te vi, Juraci
nunca mais tive alegria
Meu coração ficou daquele jeito
Dando pinote dentro do meu peito


Na época em que se falava latim, cor, o coração, era a sede do conhecimento humano. Tudo ali se resolvia e se firmava. Se batia no coração, era porque valia a pena. Se passava por dentro dele, era porque valia a pena. E tudo o que valia a pena se guardava do lado esquerdo do peito. As evidências são muitas, e as que vou apresentar são todas etimológicas (porque, veja: se a Palavra é o dom mais humano, muito divina deve ser toda significação que uma palavra possa ter tido no início dos tempos e em todo o seu transcorrer).

De cor (que era, portanto, coração) surgiu coraticum, coragem, a qualidade que mora no coração. E surgiu também cordatus, que é aquele que tem prudência. E ainda concordare, que são dois corações que estão juntos. Con-cordam.

Poderia você pensar que concordar fosse duas pessoas dizerem sim (ou não, se o caso for de discórdia) para uma coisa. Terem a mesma opinião. A mesma percepção. Concordarem em ir pela esquerda, ou pela direita, ou de mãos dadas, ou fingindo nem se conhecerem. Pois nada disso. Concordar é mais sério e mais profundo. Não vem da razão nem do pensamento. Vem do interior dessa cavidade maltratada que é esse nosso músculo único, de aspecto único, de capacidades únicas. Se o seu, aí dentro do peito dando pinote, está junto do coração da pessoa ao seu lado - é porque bate em sintonia com ele, é porque se reconhece na pele do outro rosto, é porque sem nenhum motivo explicável você sabe que aquilo que o o outro ao seu lado disser, você dirá também. Aquilo que o outro ao seu lado sentir, você sentirá também. Sem pensar nem estabelecer nada. E aí você con-corda com a pessoa ao seu lado, e ela vice-versa, os dois meio abobados pela vida de repente parecer tão perfeita.

Concordar não é concordar (sic) sobre coisas, ou situações, ou opiniões, ou roteiros, ou planos. Concordar é saber que seu coração está junto do coração do outro, e aquilo que você fizer ao coração do outro, fará também a seu próprio coração, porque eles estão juntos, e juntos semearão os campos do futuro. Quando seguem cada um para seu lado, não é que tenham tido ideias contrárias. É que seus corações avançaram por caminhos diferentes, e por isso dis-cordaram.

Agora você pensou poxa que pena? Pois não precisa. Porque nem todos os corações concordam, e aqueles que se "vestem de concórdia" estão apenas vestidos - nada são. Faltou-lhes abrir a porta do sangue, permitir-se todos os ventríloquos. Dessa forma, o melhor mesmo é que discordem. O quanto antes, para que os caminhos fiquem abertos e claros, ainda que distintos.

30/05/2016

Like Underwood

Cheguei atrasada a House of Cards. Não sou propriamente uma fanática por séries, mas de vez em quando calha de atravessar-me o caminho uma delas. Primeiro, foi Gregory House. E agora são as artimanhas de Frank Underwood.

Não é a situação política atual que me leva a escrever sobre Underwood. Ainda que pudesse, e quem acompanha uma e outro saberá do que falo. É a atração que exerce sobre as pessoas a falta de humanidade. Não à toa, é grande o sucesso.

Adivinha-se essa falta logo nos primeiros capítulos. Underwood cativa pelos comentários sarcásticos (mas altivos), pelo desprezo que sente por tudo o que é mesquinho (ainda que sejam, ou talvez especialmente, as necessidades alheias). Talvez em algum momento surja em nós a incompreensão de por que continuamos assistindo, mesmo reconhecendo a manipulação, a perversidade, o oportunismo, a deslealdade e o interesse próprio como único motor da ação. Porque temos tudo isto dentro de nós mesmos, já me dizem aqui os amigos com quem converso a respeito. E eu respeito muito essa posição meio psicanalítica, mas o que me intriga é essa forma sedutora com que o mal se apresenta. E como se reproduz e, pouco a pouco, se torna pouco menos que normal. A potência que tem essa sedução de se apropriar dos nossos sentimentos, dos nossos valores, da nossa própria moralidade.

Aos poucos, quase se tornam simpáticos, esses personagens. Toleramos o intolerável. Rimos do que não é risível. Vamos aceitando, quase quase justificando o injustificável. Diremos consternados que a política é assim mesmo (como subir sem pisar num pequeno alguém aqui e ali?), que as coisas, afinal, podem mesmo levar as pessoas a situações extremas.

A tolerância pode ser um atributo sanguinário. Expande-se como cera quente derramada em mármore. Ultrapassa fronteiras e limites, sem que doa, sem que se sinta, sem que aparentemente nada se altere. Quando a conta chega, é invariavelmente alta. Às vezes, sequer se consegue pagar.

Os Frank deste mundo são como ele: implacáveis. Não hesitam em descartar quem atrapalha seus planos, ou suas vontades. Não nutrem mágoas, a não ser quando lhes podem valer de algo. Não sentem dor, e por isso sequer vislumbram a que provocam. O que existe é apenas o que lhes interessa, justificável porque lhes interessa.  Os demais, à sua volta, são como nós, seus espectadores: enquanto estivermos sentados em nossas poltronas, deixando-nos seduzir, deixando-nos guiar, deixando-nos manipular pelos seus olhares profundos e suas falas programadas, seremos úteis às suas estatísticas de audiência. Quando não, é só descartar. Logo ali, na primeira esquina.

Mas hoje não há mais como. Porque nesse virar dessa primeira esquina há uma menina de 16 anos estuprada por 33 homens, e ali acima, no Piauí, outra, agora vandalizada por cinco, e por todos os recantos deste país, a cada quatro horas, mais uma. Riem-se esses homens, e com eles riem-se outros, e com estes outros tantos, e há os que apenas esboçam um sorriso constrangido, e aqueles que se calam e se refugiam em qualquer lugar distante dessa menina desacordada de sexo e alma sangrando, e aqueles que justificam e aqueles que encolhem os ombros e decidem que a responsabilidade não passa em seu quintal. Uns poucos (entre eles talvez você que chegou até aqui) erguem-se indignados e perplexos. São minoria - há homens demais conseguindo entrever, por entre os fatos, atenuantes para a barbárie.

O fato é que a nossa abstinência de pensamento próprio e autônomo chega para cobrar-nos a tal conta, e é alta. Essa forma utilitária e perversa de tratar o outro, e neste caso especialmente a mulher, está por todos os cantos, e é promovida, e aceite, por todos os lados. Seja no outdoor ou na propaganda da revista de moda, numa série inofensiva ou na grande bilheteria, na conversa do bar na sexta fim de tarde, na sua rodinha de amigos homens, na piada que chega pelo twitter e faz sorrir, ou numa corte ministerial formada apenas e totalmente por homens. Dirá você que nada disso tem realmente relação - e eu lhe digo que tem, porque o nosso coração e o nosso cérebro aceitam e se acostumam  rápido demais o que nos chega bem vendido, e mais rápido do que você percebe a sua boca repete a estupidez que seu ouvido acabou de escutar.

Essa conta, que todos pagamos hoje junto com essa menina, vem embrulhada em mil tons de cinza. Este tempo todo em que não pudemos ou não quisemos pensar a respeito, e este nosso silêncio histórico, esta nossa necessidade de sermos tolerantes até mesmo com a iniquidade, compactua com a ferida alheia. Passamos tempo demais observando, aceitando, envergando, querendo enxergar alguma valiosa virtude nos jogos sedutores da escuridão, e silenciando quando duvidamos dela. Esse silêncio obsequioso, que pretensamente diz respeitar o outro, dar-lhe a chance de defesa quando já se sabe de todo indefensável, compromete e fere de morte a todos nós.



Ilustração para The imp of the perverse (O demônio da perversidade), conto de Edgar Allan Poe

14/03/2016

Coração em aberto


Coração aberto, sensibilidade à flor da pele, delicadeza e noção exata da preciosidade do amor: pré-requisitos do encantamento amoroso.

Tenho o livro de Vinícius dentro das mãos. É ele quem diz essas coisas sobre o amor, não eu. Maria Letícia encontra-me na escada onde me sentei. Colega de faculdade, está guardada naquele lugar vago que chamamos de lapso de memória. Estou sentada com o livro de Vinícius nas mãos, porque tenho uma aula a dar, e é sobre ele, e convém que me prepare.

Demoro a lembrar-me da Maria Letícia – o que tanto significa que possa demorar-me em sua pessoa, detendo-me e olhando-a atenta, quanto que tarda a lembrança a aflorar do subterrâneo da história. Não lhe digo, porque a magoaria.

O maior solitário é o que tem medo de amar, de ferir e ferir-se (...) Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno.

É a memória seletiva, essa que me salva das coisas que não têm por onde escapar desta vida para outro lugar qualquer. Às vezes, é vantagem. Não faço esforço para lembrar-me, porque nem sei que tenha do que lembrar-me. As pessoas aproximam-se (como Maria Letícia neste lance de escada) e, porque não tenho o que resgatar, nenhuma imagem anterior, nenhum comentário que a tenha eternizado dentro de mim (realmente não me lembro), posso olhá-la com olhos virgens, sem nenhuma desconstrução a fazer que me deixe mais honesta diante dessa que pode haver (terá) se transformado no correr dos anos. Fresca novidade, a Maria Letícia.

A maior solidão é a do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana. A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo, o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro.

E ela sorri, enquanto acena (ela sobe o lance de escadas para alcançar-me) e grita de lá: “Te reconheci pelo livro!”. E lembra-me, ato contínuo e já ao meu lado, do seminário apresentado em Literatura Brasileira II, das frases que recortei desse mesmo livro que tenho dentro das mãos, e que ficaram dentro dela vibrando semanas a fio. “Comprei esse livro por tua causa”, diz mais baixo. “Ajudou-me a atravessar momentos difíceis”.

O amor exige a exposição ao sofrimento e um tipo especial de coragem.

Eu lia Vinícius um tanto à toa. Esperava o fim da aula de vôlei da minha filha, e o livro estava ali, pousado no banco, perdido, ao meu lado. Mergulhei nessa insensatez que o Poetinha propõe e foi de repente, eu que não me lembro da Maria Letícia, muito menos da Literatura Brasileira II. Sou engolida por essas palavras que julgava nunca ter lido. Sento-me no degrau mais alto da escada, para que o mundo fique longe e não se intrometa, Maria Letícia ao meu lado, e lemos uma à outra os trechos que, nesse exato momento (farei força por não esquecer nunca), aquecem as duas almas como se fossem gêmeas, e dissolvem esse sentimento insuportável de não pertencer. Como um voo rasante de pássaro, o sentido passa por nós, e se materializa adiante, e logo passa, e já somos só nós, outra vez, sentadas no degrau mais alto de todos, onde chegam finalmente os gritos das meninas do vôlei, como estilhaços de vidro quebrado contra o concreto.



(Os trechos em itálico são de “Para viver um grande amor”, de Vinícius de Moraes e poderiam ser bíblia para aqueles que não têm ideia do que seja, de verdade e com consistência e força, amar.)

19/02/2016

As avezinhas do céu



O sonho desta noite. 

Um caboclo eleva a vista, e a minha segue com ele. Sobe depressa pelos troncos das árvores, e agora já estamos no topo. Há uma mata fechada em volta dos nossos olhos, um rodeio de tapete verde, espesso, cerrado, imenso. Olho em volta pelos olhos do caboclo, sinto as pernas tremer de cansaço. Ele entrecerra os seus olhos e com eles os meus se afinam. Ao fundo há uma planície de água. Ao redor de toda a mata fechada, uma planície brilhante de água.

"Não há nada que dure eternamente", diz o caboclo fechando seus olhos. "Porque te preocupas com o pássaro que tens na mão? O que fazem os que passam voando sobre ti? Não vês que o que seguras é o limite que a ti mesmo impões? Mão fechada diante da maravilha da mata? Abre a mão, deixa o pássaro no voo que é seu. Pousa teus olhos nas asas dos que vivem no alto do céu, e dirige-te nessa sua direção. Não os abatas, para que os possas ter na mão: segue e aprende o caminho do voo. 

As asas do pássaro celeste são caminho do pai criador. Se manténs esse pássaro preso, essa segurança que ninguém pode dar, matas dele e de ti a alma pura, espremes a tua vida e a dele na palma da mão. Vai, afrouxa a tensão dos teus dedos, abre espaço pra vida viver. Deixa que pouse na mão estendida só o pássaro que semente trouxer. Observa o bico certeiro, o olho alerta, as penas do corpo que não é sofredor. E depois vê como eleva seu canto, seu voo deixando ao teu lado um sossego com cheiro de flor."

Acordo pensando em Mateus. "Olhai as avezinhas do céu" diz ele. "Nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros. São como os lírios do campo."

Sinto caboclo e discípulo num só. E sinto, e sinto outra vez: o que mais vale na vida é sentir. 


Revoada de pássaros em Ibirapuera, Araguaia. http://1080.plus/gmXz8C-AqMU.video


15/01/2016

Brain damage

You lock the door
And throw away the key
There's someone in my head but it's not me
And if the cloud bursts, thunder in your ear
You shout and no one seems to hear
And if the band you're in starts playing different tunes
I'll see you on the dark side of the moon



Ligação na madrugada. Amiga aflita. O que faço é sair da cama, entrar no carro e ir até sua casa. Faz frio, está escuro e chove. A porta está aberta quando chego, a entrada molhada, a mesma escuridão dentro que fora. Entro muito rápido, agarro-a por um braço e arranco-a de dentro. 

Tem uma hora, digo eu a ela, que é preciso fechar a casa, trancar e jogar a chave fora. Deixar tudo lá dentro como está, não trazer nem uma agulha sequer, nem uma poeira. Nada. Porque há casas que são assim, como essa sua onde você veio se meter: inutilidades completas, cheias de pormenores irrelevantes feitos só e apenas para confundir a sua cabeça, dando a entender, fazendo de conta, parecendo que... e nada. É só vazio. A única coisa que tem dentro dela são as coisas que você construiu. As prateleiras esculpidas na parede para guardar lembranças de viagem. Os armários à espera das colchas tecidas, dos fios trançados. As panelas e os pratos e os talheres aguardando o almoço feito por alguém que não você. Você não vê?

All that you touch
And all that you see
All that you taste
All you feel
And all that you love
And all that you hate
All you distrust
All you save

É nada. Você não vê?

Vamos até o ponto mais alto da cidade, o vento fazendo seu serviço do lado de fora do carro. Ela se encolhe no banco. Não me ouve, só olha pra dentro de si mesma. A casa está dentro dela. Este é o lado escuro da lua.

Digo-lhe as palavras óbvias: melhor (claro) é não se ocuparem nunca jamais casas assim. Não se permitir a morada em mofo pintado pra parecer reformado. Mais tempo, menos tempo, o mofo aparece, junto com a sua pestilência. Mas às vezes entra-se numa, porque era preciso, não tinha jeito, faz parte e esse longo etcetera que seus amigos (eu incluída) tentarão usar para consolo, embora todos eles e você mesma saibam, de antemão, que não passam de desculpas pra aliviar a alma. E nessa hora de agora, essa hora precisa, aqui paradas dentro do carro em frente ao abismo de pedra: não é alívio. É tormento. Seus olhos dizem-me isso. E eu calo-me.

Quero dar-lhe a mão. Abraçá-la. E só quando percebo que é a chave da casa que ela tem na mão é que me dou conta. Por isso a casa dentro dela. Por isso seus olhos as janelas escancaradas gritando crueldade em silêncio. O sangue escorre por dentro dos seus olhos, e eu não consigo estancá-lo. E dói, como se fosse em mim, esse sofrer calado. Digo-lhe: entregue-me. Eu jogo. Lá do fundo do seu olhar alguém se contorce dizendo não. Alguém dentro dela luta. Quem é essa, que diz não à salvação?

Largue essa chave. Pare de procurar luz onde a escuridão cravou sua garra. Você não vê? As janelas não abrem, a porta é emperrada, essa casa que você insiste em querer arejar está cheia de pregos e tábuas, como cidade abandonada no velho oeste saqueado. São só restos, amiga minha. Só restos de mil vidas mal vividas, todas elas lado a lado, todas elas estendendo mãos e recebendo facas. E quando digo "mil vidas", quando a olho do fundo dessas mil vidas, seus olhos se espantam, e as mil vidas se espantam neles, e a mão abre-se por fim.

Agora, não a vejo, junto ao abismo. A neblina acompanhou-a até à borda. Percebo um movimento da sua sombra na direção do vazio. Uma luz brilha um instante e cai. Espero que seja a chave, digo em voz alta. Abro os olhos, e acordo.




Pela janela

Foi dessa janela, numa tarde de junho. Sabe aquelas tantas coisas que ela lhe dizia? Escaparam-se pelo flanco dessa cortina branca. Tanto tempo guardadas, com fome de ouvir, com fome de ser. Tanta fome, tanta. Cansaram-se, perderam o timbre, o brilho, o frescor juvenil dos encontros.

E ela foi-se, com as palavras, sem esperar sequer que eu lhe abrisse a porta. Disse-me, antes de passar a segunda perna pela abertura na parede, "portas? são espaços traidores". E é ao meio termo que ela se referia (já tínhamos conversado sobre isso): portas entreabertas. Coisas assim. Não, não deixe de ouvir o que mais ela disse antes de sair e deixar a cortina impecável, branca, na parede branca, essa paz pintada para enganar os trouxas.

Daquelas coisas que ela lhe dizia, veja: arrependeu-se de várias. Em segredo, sei que saiu para erguê-las do chão onde ficaram caídas (as coisas que lhe disse), como pérolas opacas, órfãs de ostra e colar. Deve estar, neste momento em que falamos, tentando reerguê-las, limpá-las, acalentá-las, dizer-lhes: "não fostes vós, mas a falta de dedos". Não sei se pérolas voltam à vida depois de esmigalhadas.

Ela lamenta, deixou escrito aqui num papel. Lamenta como um pássaro colhido dentro da gaiola, um pássaro a quem lhe cortaram as asas, um pássaro atingido pela pedrada sádica. Deixou as caixas todas em cima do armário. Vazias. Acho que ela não lhe deixou nada.

Só quero dizer-lhe, agora, que a vida é bem maior. E depois dissp saiu cantando. Disse que a terra é profunda. E eu me lembrei: a cova pode ser rasa. A terra é profunda.


Foto: Não é, mas podia ser do Antonio Claret, que foi quem a trouxe.


28/12/2015

O império do eu


Jonas voltou pra casa arreliado com a placa. Até fotografou. Ficou matutando no erro que tinha ali, e Maria dizendo deixa disso, tem erro não, vem deitar que eu faço você esquecer essa confusão, vem.

E Jonas nada. Encasquetado.

Sentou na cozinha. Acendeu a luz por cima da mesa. Passou um café.

Tentou discriminar, como lhe dizia seu primo Beto que devia fazer na vida. Botar as coisas certas de um lado, as erradas de outro. Assim, bem preto no branco e branco no preto. Ficou lembrando das palavras da placa. O café queimando na xícara de esmalte.

Meu Deus.

Já começava assim de um jeito que incomodava, essa mania das coisas serem minhas/nossas, tuas/deles. E Deus lá gosta de ser propriedade de alguém? Tomou mais um gole, apoiou a cabeça na palma da mão, deu um suspiro, olhou pra porta entreaberta do quarto.

Meu Deus.

Importante era o EU, assim nessa letra garrafal, dava pra ver de longe, maior que tudo. E do lado o motociclista, estendido ao comprido, dando mesmo a entender que era Outro, e não EU. EU estava passando por baixo da placa, aliviado que fosse Outro e não EU estatelado no asfalto. Com vida ou sem ela. A placa fazia prever o pior.

Podia ser EU.

Mas não era, e assim (mesmo Jonas) passara com alívio por baixo da placa, tomando cuidado para não ser ele o Outro na próxima esquina.

Lembrou-se do Beto. Com a mão, colocou um Deus invisível de um lado da mesa (esse é o lado certo, falou pra xícara). Do outro, o Meu. Do lado certo, o podia ser (porque tudo Deus pode, e por isso tudo podia mesmo ser, pensou mas não disse). E, do outro, Eu.

Depois trocou. Mesmo ele ficou arreliado do Eu ficar do lado do errado. Manteve Deus do lado certo, metade por teimosia, metade por fé. E trouxe o Eu pro lado dele. Deixou o podia ser do lado de lá, e levou o meu pra acompanhar. E antes mesmo de terminar o café já tinha formado uma nova frase.

Eu, Deus, podia ser meu.

Maria nem abriu os olhos quando Jonas se deitou, num abraço desmanchado em sorriso horas depois.


24/12/2015

Para 2016, com duplo amor

Abro as mãos, e abro os olhos. Por entre os veios de um ano duro, vejo dedos antigos tecendo raízes submersas, erguendo galhos caídos, sustentando hastes quebradas, desviando uivos aflitos. Este ano que acaba é um ano de milagres, desses de todos os dias, desses que, se deixarmos e não olharmos, se despedirão de nós invisíveis. Talvez precisem repetir-se até deixarmos de ser cegos. 

Será preciso redobrar o olhar e o coração. Limpar duas vezes o que não fomos nós a sujar. Brilhar duas vezes na escuridão que se formar. Sorrir duas vezes para quem um insulto atirar. Desfazer nós, embaraços, trabalhos. E acender todas as velas, todos os dias e todas as noites, dentro e fora de casa, dentro e fora do peito, dentro e fora da certeza. A todo custo, e a todo preço, aproximar-se em vez de afastar-se, correr riscos, subir alturas, descer abismos e enfrentar quaisquer feras. Este que começa logo ali será um ano de precisão de força, e só se chamará fraqueza se a ela dermos nome e alimento farto. Venha 2016 limpo e livre, com as escuridões e os tropeços que nos fortalecem, e humanizam, porque tudo, mas tudo mesmo, um dia passa. 

Mas que nada nem ninguém passe impune, nem sem sentido. Que o que passe por nós nos atinja, nos afete, nos torne mais dos outros que de nós mesmos, ainda que derrube nossas proteções, fustigue nossos músculos, triture as nossas vísceras. Que nos sobrem coragem e entrega, e em nós se fortaleça o lugar do não esconder-se. E que ao medo, e à vergonha, e à dúvida, ofereçamos apenas uma palavra: só amor, e mais nada. Só amor, e mais nada.



23/12/2015

Museus e palavras

Não sei se o mais impressionante foram as chamas avançando sobre a torre da estação da Luz ou as imagens aéreas do prédio do Museu da Língua Portuguesa e os destroços queimados do seu telhado. Como muitos, fiquei sem palavras - todas elas arderam dentro da tela do meu computador.

Tive o privilégio de visitar várias vezes o Museu. A sorte de apresentá-lo a muitas pessoas queridas, filhos, alunos, amigos, conhecidos. Tornou-se roteiro obrigatório nas idas a São Paulo. 

Da primeira vez, fui sozinha, desconfiada dessas manobras com que a nossa civilização gosta de ensombrecer as coisas: colocá-las dentro de caixas para podermos tê-las sob controle. Mas me rendi, logo no primeiro andar, diante daquele "Grande Sertão: Veredas" aberto como flor para tirar o fôlego (de novo), reinventando Rosa de um jeito que (desconfio) ele gostaria. Elevador acima, mais uma rendição diante do corredor plural de imagens e sons e gentes. Como andar sem parar? Foi preciso sentar. Muita informação. Muita. Disponível e em forma de encantamento, parecendo depender das nossas mãos para se abrir. Pra lá e pra cá, grupos de estudantes com roteiro de visita a tiracolo, não sei se ajuda ou impedimento. Para onde foi a experiência primeira, sem mediações, das coisas? pensei eu. E sorri pra eles e arrisquei um "deixa o roteiro pra lá, se encante sozinho".

Como um amor que pede tempo, frequência, profundidade, foi preciso revisitar. Encontrar pretextos. Tropeçar sem querer na estação errada de metrô e decidir que já que chove, já que venta, já que muito sol, já que quase cedo, já que ainda tarde: ir ao Museu outra vez. E, em todas essas vezes, mil temporalidades surpresas, de Machado a Cora, de Oswald a Pessoa, de Jorge Amado às mídias em encontro e à provocação do "menas". Tudo sempre diferente e tudo sempre igual.

E, ainda por cima, e literalmente por cima, o terceiro andar, essa invasão inesquecível de som, escuridão e palavras, esse universo chamado palavra que é onde mais gosto de morar. E eu acostumei-me a começar a visita antecipando o gozo final, essa certeza de que o amor está onde o vimos a primeira vez, e também por isso garantindo a dose de lágrimas quase rotina. Como chegar ao lugar de pertencimento, e nele mergulhar e ser chamada, conduzida, levada. 

Da segunda vez, com um grupo muito querido de alunos, misturou-se isso ao privilégio de poder levar os outros a esse mesmo lugar, e abrir ao amor essa porta do compartir. E como choro se contagia, éramos um ônibus inteiro emocionado. Esse ritual do choro permaneceu até há poucas semanas atrás, numa que afinal foi a última visita, com amiga que nutre pela palavra amor aparentado.

O Museu deu-me respostas. Abriu-me indagações. Estendeu-me tapetes e tapetes de motivos para escrever. Guardo uma porção deles, detalhes daqui e dali, dispersos por cadernos que não sei onde guardei. Talvez não vejam a cor do dia, mas são testemunhos do poder do que não é matéria. Mais que um museu com coisas, um museu feito de palavras, essas que se reinventam e se escrevem, e depois se apagam e se tornam a escrever. Porque a rigor, se for pensar bem, a palavra é chama e precisa arder. Continua onde sempre esteve, e onde sempre está, nesse mesmo lugar de onde tentamos arrastá-la e deixá-la presa, fixa, ao alcance das nossas mãos terrenas. Porque dispersa e livre é mais difícil de se relacionar, mas é onde é mais e maior.

Rodeada pelas águas do rio Capibaribe dias atrás, debruçada na amurada de um barco, procurava o perfil de João Cabral na margem como se dele dependesse a minha sanidade inteira. Tanto as águas quanto as chamas passam. E eu (descubro) só tenho em mim as palavras que teço. Não importa se para quem as escrevo as lê. Nem sequer se a quem pertencem as percebe. Palavra é universo feito liberdade, avesso às paredes de quartos e salas, tecido escorregadio e invisível. Não são precisos museus para guardá-la, nem dinheiros que lhe paguem a existência. É ela quem nos guarda. E é com ela que guardamos.

02/11/2015

Uma longa história sobre a sombra

Bom dia, este, para pensar no após-a-vida. Onde estão, de uma forma ou de outra, todos estes que se festejam hoje, ou se lembram, ou se homenageiam. 

É provável, penso eu, que um período escuro atinja quem passa para o outro lado. Como quando se fecham os olhos ao dormir, e tudo fica escuro. Considera tu que lês que o sono é uma pequena morte, e terás diante de ti a dimensão da falta de luz.

Ou pensa no parto. Nesse que nos nasce do lado de cá, enquanto morremos do lado de lá, esse lugar de onde vimos antes de atravessarmos as cortinas aquáticas da vida terrena. E para onde voltaremos (proponho eu que assim consideres) quando atravessarmos de volta essa mesma fronteira, esse limite entre estados.

Pois bem. Em algum ponto dessa passagem está o mundo da sombra. E é dele que me aproximo, com cuidado para não despertar-lhe vontades vorazes de perceber onde estou. Como veremos, a sombra não descansa.

É longínqua, a origem dessa palavra. Longínqua e testemunha da riqueza da nossa língua.

Situa-te, por favor, em 1100 a.C. Estás a bordo de um navio feito de cedro-do-líbano, madeira de fibras homogêneas e aromáticas, com um sem fim de usos mágicos e litúrgicos ao longo da história. Carregaste-o na tua cidade-estado natal, Biblos, e dentro dele disputam espaço peças de tecido, caixas de porcelanas, vidros bem embalados... A um canto, vinho grego para os egípcios; a outro, papiro egípcio para os gregos. Biblos, essa tua cidade, será imortalizada em breve pelos teus compradores gregos. Byblos, foi como os gregos batizaram os papiros que lhes levaste, os melhores dentre os melhores. Nós, aqui, tantos séculos depois, dizemos "biblioteca" e dizemos "Bíblia". Nada escapa à história das palavras. E toma nota: és fenício.

Navegas com vento sobranceiro junto à linha costeira, a meio caminho entre Grécia e Inglaterra, suprindo as mais de 300 colônias que teu povo formou, sem guerra nem conquista, antes conversas consentidas. Chegas por fim ao extremo da costa sul da península onde habitam, entre outros, os íberos. Lá, o teu foco é a pesca e a salga do que pescas, e depois comerciarás em algum outro ponto da tua rota. Trocas as tuas peças por estanho, por prata, por cobre. Conversas e escreves, nos papiros que trazes, aquilo que a memória não pode trair. Contigo trazes um presente inestimável.

A tua escrita. O teu alfabeto fenício, o primeiro desta península. Vinte e duas letras, todas consoantes, primas próximas do hebraico, do aramaico, do assírio, do acádio, essas línguas que floresceram nessa região que hoje chamamos Líbano. É de lá que vem o teu navio fenício.

Deixas com a tua escrita algumas marcas - e falo-te agora de uma, apenas. 

şl 

Essa é a palavra fenícia que pronuncia aquele à procura de sombra e proteção. Corresponde mais ao objeto que produz a sombra, do que à sombra em si mesma. Estás em busca de um teto que te abrigue num dia quente do fim de agosto, ou talvez à procura de uma tenda que proteja o peixe que salgaste, ao cair da tarde de um mês de outubro. Deixas-te descansar quando a encontras. E passam os anos às dezenas.

Quando acordas, o mundo é outro. Está tomado por um povo conquistador; agrupam-se ao teu redor legiões, coortes, centúrias, soldados. Tudo isso te é estranho, mas vês que procuram algo, e quando te ergues perguntam: 

Umbra?

O que eles procuram é um lugar à sombra. Não lhes interessa tanto aquilo que a provoque, apenas querem esse território fora do sol, protegido, em que possam repousar e descansar de talvez uma longa batalha.

Deste lugar em que te escrevo, tantos séculos já passados, a palavra que quero apresentar-te é um raro caso da tua palavra fenícia em junção à palavra latina deles:

soombra

dissemos durante anos. E, agora, dizemos

sombra.

E quando sombra dizemos, estamos atentos aos dois vossos legados: queremos o território que nos protege, e queremos também saber o que é que provoca esse espaço fora da luz do sol. Algo, nesse passado em que estás, nos alerta. Toda sombra tem motivos, e é da qualidade do objeto que a produz que os deduzimos e percebemos.

Tantos motivos tem a sombra, que me dedicam um tempo para entendê-la em profundidade. Não mais te ocupes, diz-me aquele que vive lá e cá, da sombra que te oferece a copa das árvores do quintal. Agora, a sombra tem maiúscula. Essa Sombra não descansa, ao contrário do que se pensa, e é especialista em se fazer passar por outras coisas. A raiz do seu espaço é profunda e imersa; não é lugar de visita, nem de descanso e repouso, nem sequer onde se tentem abrir os olhos. O ideal, ao que entendo, é passar longe dela e saber de quem se valer se for preciso interceptá-la.

A Sombra procura sem cessar. Nada deixa escapar, nem ninguém. O caminho de quem tem dentro de si a centelha (e todos a têm, criados que foram a partir da essência divina que tudo criou) é a evolução, e evolução é o caminho em direção à luz. Por isso, a sombra não sossega, esteja ela no limiar ou no abissal.

Entre aqueles que ocupam, por merecimento, vontade ou escolha, os lugares à sombra da luz, há aqueles que os patrulham, e há aqueles que neles se afundam. Os primeiros assumem o papel de guardiões; em vigília constante, mantêm a sombra dentro de seus domínios. Os segundos, pelas próprias ações, ocupam as regiões mais escuras, e dirigem seu olhar para o terreno da luz, que invejam, desejam, querem e tudo fazem por possuir.

Deste nosso lado da existência, onde procuramos sombra que nos abrigue, é preciso saber qual objeto (ou força) a produz. Aqui, encarnados, nadamos em nosso próprio e livre arbítrio. Da observação das forças em movimento deverá vir essa escolha livre, e entre nós estão aqueles que ligam as suas almas às dimensões sombrias. Por descuido, por interesse, por desejo, por desaviso - em algum ponto, sempre, há a escolha. 

Não descansam, nem os uns nem os outros. Alertas sempre, estudam e mapeiam os terrenos iluminados. É esse o seu alvo, o fruto mais vivo do seu desejo e é porque não lhes pertence que não descansam nunca. 

Quem pensa que amor e bem sempre vencem, se equivoca. Porque o ódio, a raiva, o ciúme, o mal... O mal jamais descansa - em agonia constante por não alcançar a luz, entrega-se ao domínio sem sono. A luz pode repousar em si mesma, abandonar-se à vibrante irradiação de completude que é sua essência final. A sombra, jamais. E por isso o perigo e o alerta: aqueles na luz, orai e vigiai, permanecei alerta, em atenção serena aos desdobramentos sombrios que tudo manipulam e revertem.

Não se subestime o poder (e a constância) das forças da Sombra. Separe-se a sombra que se projeta sobre o solo, do objeto que a faz nascer. Examine-se. Discrimine-se. Saiba-se quem é uma, e quem é outro. A quem servem. Da confusão entre as forças da sombra, no relevar o dano que causam, nasce seu filho mais triste. A treva. A noite eterna. A escuridão sem luz.




Imagens
"Estrela urbana", de Giovani Ferreira
Alfabeto fenício, wikipedia
Fontes 


18/10/2015

Águas sagradas


Domingo, primeiro dia da semana, é boa oportunidade para banhos que abram caminhos. O que está estagnado, impedido, cerceado em seu andamento, beneficia-se de ervas que dissolvam impedimentos. Para abrir as portas desta semana com novos horários, logo lembrei de peregun.

A farmacologia medieval, e antes dela a antiga ciência herborista chinesa, já conheciam a família das dracenas. A mais renomada era a draacena draco, conhecida pelos chineses como xue jie. Nativa das Canárias, a resina da também chamada sanguis draconis (ou sangue-de-dragão) foi um importante produto de exportação do arquipélago de raiz africana e colonização espanhola. A forte oxidação da resina quando em contato com o oxigênio rendeu-lhe o nome avermelhado. Nos Açores é conhecida como Dragoeiro, e de lá nos vem a informação das suas propriedades também tintureiras. Tendo a achar que as ervas usadas em tinturaria têm uma forte presença naqueles momentos em que é preciso mudar a coloração e, por isso, considero-as importantes coadjuvantes nos processos de transformação interna.

Na farmacologia chinesa, o sanguis draconis é indicado como erva para revigorar o sangue e dissolver estases (ou seja, estagnação de líquidos vitais, como o sangue, ou a linfa); estanca sangramentos, se aplicada topicamente; e protege a superfície de úlceras, regenerando os tecidos. E, de uma forma ou de outra, a família das dracenas carrega em si essa capacidade primordial de dissolver lugares onde algo estagnou. A energia que contêm em seu interior abre, liberta e gera potência.

Há, entre nós, dezenas de dracenas - e todas elas parecem seres mitológicos, brotando com facilidade e crescendo com pujança. A que costumamos ter no jardim, ou mesmo dentro de casa, é a draacena fragrans (o nosso "pau d'água"), que nos chega diretamente da África. É uma das principais ervas rituais do candomblé e, entre as religiões ligadas aos Orixás africanos, é conhecida como peregun. Também na umbanda é uma das ervas sagradas, indicada para abrir caminhos - especialmente caminhos internos. 

Em iorubá, peregun junta as palavras -, que significa chamar, e egun, que significa espírito. É por isso uma erva fundamental na chamada dos espíritos à terra, assim como no desenvolvimento mediúnico dos filhos-de-santo. Em algumas regiões da África, como no distrito rural de Bushenyi, em Uganda, o peregun é usado para induzir o trabalho de parto, abrindo as portas para a chegada de um novo espírito à Terra. 

O orixá Ogum é o primeiro a permear o peregun com a sua energia de abertura de caminhos, de dissolução de impasses. É a ele que o peregun de folhas inteiramente verdes se consagra. A variedade verde-e-amarela impregna-se da irradiação de Iansã, que atua em tudo aquilo que está estagnado - varre com seu vento e modifica com a sua tempestade as situações e as pessoas imobilizadas, travadas no seu agir. Para os chineses, o sanguis draconis atua nos meridianos do coração e do fígado - o sangue, veículo da nossa individualidade, e o fígado, onde se reúnem e se processam (ou não) todos os nossos conteúdos emocionais.

E por isso penso que o domingo é um bom dia para um banho de peregun. Um banho preparado com a maceração de três ou cinco de suas grandes folhas, em água fria, mentalizando e invocando a irradiação do qualidade divina daquele que abre caminhos. A água logo se colore de verde forte, e o ar com o cheiro da mata, materializando a presença de Oxóssi e das suas bênçãos, agregando à dissolução de impasses a chama sagrada da criatividade e do conhecimento.

Os meus olhos perdem-se no verde aquático, e sei que os olhos de Vó Chica me acompanham, conduzindo os meus movimentos, o meu sentir e o meu pensar. Nela, recolho-me. Nela, aquieto-me. Nela, aprendo que só nesse recolhimento as ervas se abrem e se oferecem. Em silêncio e em oração internos. Não há melhor maneira de começar a semana.





Fontes:

http://www.cefimed.com.br/arquivos_formulas/pdf/formulas.pdf
https://ocandomble.wordpress.com/2015/05/29/peregun-a-folha-ancestral/
Imagens: 
Dracena Draco: divulgação
Dracena fragrans: Mário Franco



14/10/2015

Desolado

Assim encontro meu coração, e assim o observo. 

Desolado.

Observo também as palavras que se formam dentro dele, nesse esforço de me afastar do animal em mim e de rodear-me dos atributos que me garantem humanidade. Pensar e encontrar as palavras é o que mais faço. 

Abro os olhos dentro das águas mediterrâneas. Atravessam-nas barcos sem data. É nesse ponto líquido que naufraga o meu coração desolado.

Desolado, porque é a solidão que se agarra a mim sem que eu a queira, esse estado de ser solus, sozinho,  porque abandonado e negado. Meu coração colore de opacidade as fibras dos meus olhos. Tento ver o mundo com os olhos do outro em vez de tentar ver o meu mundo refletido em seus olhos. E por isso meus olhos se afogam, e meu coração naufraga. Onde cabe uma vida opaca assim.

A próxima palavra é devastado. Porque a terra vasta não é só grande - é também aberta e incontida, desabitada e deserta. Acrescento-lhe esse de que lhe agrega a sentença final: "sou completo". Completo vasto. Completo arruinado. Completo desabitado. Completo deserto. Volto à tona falho de oxigênio. Trago a água do mediterrâneo misturada à espuma das lágrimas que deixo no leito. As ondas lavam a praia. As ondas lavam os olhos. Deve haver um novo dia por detrás das nuvens escuras.


Fotografia: Giovani Ferreira
A frase em itálico é, com reformulações, de Carl Rogers, e define o que é empatia. 



05/10/2015

Resedá


Estava num dia desses sentada com alguns alunos conversando sobre formação de palavras. Lembrei -me de sedere, por estarmos assim, sentados - sedere era a forma usada pelos latinos para se referirem a quem estava, e estava sentado. Fomos à procura de outras palavras que nascessem de dentro dessa semente.

Primeira descoberta. Sem lhe juntarmos nada, sedere nos lega sedar: aquela forma de tranquilidade artificial de vem de fora e se instala no dentro. Funciona, mas não sempre, e nem seria bom que fosse sempre. Para onde iria a nossa capacidade de nos tranquilizarmos sem sedativos?

Segunda. Se lhe juntamos o prefixo in, o resultado é surpreendente: insedere  refere-se àquele que está sentado dentro. Insedere dá origem à nossa palavra insídia. Esse "aquele" é aquele a quem permitimos entrada e estabelecimento dentro. Pode provocar imenso dano - porque insídia é traição, é falta de lealdade, é cilada. Assim: atenção a quem se abrem as portas e se permite a entrada.

Terceira. Se lhe juntamos o prefixo ob, a mesma surpresa acontece. Obsidere, de estar sentado diante, serviu para definir o cerco que se faz a uma praça, e, com o tempo, legou-nos obsessão - fechar o cerco, estar a postos para atacar e invadir. A obsessão senta-se diante de nós só à espera do momento de lançar-se sobre nós e as nossas praças.

Parece que tudo depende, digo eu aos alunos que me olham estupefactos com esse milagre da multiplicação das palavras, daquilo que juntamos a essa nossa condição natural de estarmos. Com quem estamos dirá o como estamos.

"E obcecado, vem daí também?", alguém pergunta. Procuramos. E descobrimos que se engana quem pensa que obsessão e obcecado têm a mesma raiz. Obcecado é aquele que é cego do que tem diante de si - caecare, cegar, junta-se a ob, que significa o tal adiante. O obcecado é aquele que se tornou cego, e nada mais consegue distinguir à sua frente. As pessoas obcecadas não sofrem de obsessão - elas não cercam, não ameaçam, não estão à espera de que o outro caia à sua frente. As pessoas obcecadas encontram-se em algum grau de cegueira com relação ao que têm diante de si. Os danos que provocam, são a si mesmas. Os danos daquele que obsidia atingem o outro, a quem se dirigem.

E voltamos ao sedere.

A quarta possibilidade é juntar-lhe o prefixo re, esse intensificador. Temos como resultado resedere - uma forma muito intensa de acalmar. Resedere transformou-se na nossa forma resedá, essa árvore meio arbustiva que abunda nas ruas e praças, para a qual fiquei olhando na semana passada, enquanto escolhia quais árvores plantaria na calçada.

É diferente do resedá-amarelo (Galphimia brasiliensis), mais rústico, também chamado de quaró. O resedá-amarelo é uma planta usada magicamente nas religiões afro-brasileiras. Resiste às condições mais duras, aguenta secas longas e chuvas intensas. Ao contrário dos resedás que vemos florindo as calçadas, e que não resistem tão bem a geadas, o resedá-amarelo distrai-se com qualquer condição atmosférica. Usando-o para banhos, auxilia quem enfrenta adversidades persistentes na vida, e delas precisa reerguer-se. O resedá-amarelo é também uma "tintureira", usada desde a Idade Média para dar cor aos tapetes. É por isso uma planta que se impõe sobre o que está na base - e também essa qualidade, de tingir e modificar a cor dos elementos presentes, nos influencia quando a manipulamos. O resedá-amarelo acalma, tranquiliza e ajuda nos processos de reerguida. Para estarmos e sermos aquilo que podemos e queremos e devemos. E continuar à procura de palavras que despertem nossos sentidos para as coisas que, por serem verdade, valem as penas.



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28/09/2015

Prestígio


Foi num domingo de manhã qualquer. Joice arrumou-se diante do espelho na dúvida se seria o certo, se não deveria acabar com essas visitas dominicais, ritmadas, quase quase automáticas.

Mas a solidão a dois aperta seu coração. Vê-los assim, cabeças coroadas de branco, olhos encovados, faz trepidar as suas veias, e ela então lança-se a essa tarefa que nem sempre se recobre de glória.

Tocou três vezes a campainha. Preferia que soubessem que era ela, quem sabe antecipa potenciais problemas. Subiu os três lances de escadas desprezando o elevador, deixando em cada degrau o pedido de sossego, de paz, de concórdia, de puro afeto sem maiores manifestações. Se não doer, já vale a pena, range entre um e outro patamar, e ela sobe.

A porta aberta não tem ninguém atrás dela. Joice entra, atravessa o corredor que a mãe chama de hall, porque não suporta corredores porque lembram hospital, e hospital lembra abandono e abandono lembra-a de seu mais terrível medo. O terapeuta disse que era medo infantil. Mas ela já tem 76 contados dedo a dedo, e o medo é o mesmo, como se tivesse sido cultivado a quatro mãos.

A sala tem luz em excesso, as coisas não têm contornos. O pai acena por detrás do jornal, Joice hesita antes do beijo na beira da pele. Às vezes arrepia, hoje o pai sorri. Joice segue cozinha adentro. A mãe sorri, destampa panelas, aponta os garfos que ainda não estão na mesa. As facas já. Joice distende o pensamento enquanto sopesa na mão os talheres, é domingo, parecem prata.

Os copos também cintilam brilhos.

E Joice distende o corpo. Sentam-se à mesa os três. Sorriem. Dão-se as mãos num bom apetite sem vocação. O pai pergunta-lhe. Pula de um assunto ao outro. Mas ainda assim pergunta, e Joice responde, ficando aqui e ali perdida pelo questionário que segue um roteiro particular para o qual ela não foi convidada. Tropeços costumam ser inevitáveis em dias assim. Mas não. As perguntas terminam e o almoço vai avançando noite dentro.

A meio de um silêncio sem cor, a mãe sorri, a paz sentada à mesa. E também seu coração distende, ainda que o medo a ronde, e ela sem querer diz em voz alta e o pai responde que disparate. E quase tudo desanda, mas a mão do pai alcança a da mãe e há quase um carinho, uma encomenda com endereço completo. E o pai olha para Joice, aquele sorriso que a desarma, e pisca-lhe um olho, o gesto que ela abomina mas é o que lhe oferece e ela pensa, não custa nada, e é o que temos pra hoje. Joice sabe que ele sabe. E pisca de volta. Desistida.

Não há sobremesa. O que faz o pai? Pergunta? Afirma? Censura? Constata? Não se sabe, nunca. A mãe encolhe-se nos ombros, procura um lugar de saída. E o pai levanta-se solene, lento, gestos de atelier de estudo, e vai até o quarto. Demora-se antes de voltar com um meio sorriso nos lábios e os prêmios escondidos dentro das mãos. 

Estende uma à filha, a outra à mãe. E ambas adivinham e ganham a prenda. E Joice sorri, porque seu bombom é de prestígio, e ela adora, e ele sabe que ela adora, e ela sabe que ele sabe que ela adora. E nessa confusão de pensamentos, nessa enxurrada de sentimentos, Joice enterra os dentes no chocolate escuro. 

Fecha os olhos, dizendo-se tanto faz tudo isso, ele sabe e eu sei, e é o bastante. E Joice mastiga e uma vez mais enterra os dentes, com o cuidado de uma criança que se aproxima pequena e frágil da mais frágil ainda borboleta, para que não se assuste e voe, e desapareça para sempre.

E de repente algo obriga a boca de Joice a abrir-se. Tira o bombom de dentro dela com uma mão que estremece, e os dentes ficam marcados na massa marrom. A testa franze, a boca contorce, e então os olhos de Joice veem o mofo branco dentro do bombom, esses brancos e pequenos filamentos apontando como espadas o céu da sua boca.

(Para Regina)

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08/09/2015

A feitora de panela

Pra Ornela

Januária, a feitora de panelas, acordou desalentada. Abriu os olhos e o teto embaçou-lhe a vista, mais baixo que o costume. As vigas de madeira cada dia lhe negam um tanto de espaço. Demorou a aperceber-se do resto do corpo. Foi só olhos durante um bom tempo. Depois tirou a mão de debaixo do lençol fino, sentiu a temperatura do ar e deixou-a cair sobre a cama. A outra mão ainda ficou enrolada dentro do lençol. As mãos de Januária são gretadas, os dedos amarelados e as palmas acinzentadas. Muita argila e muito mangue vermelho. nos poros e nas veias.

Januária é paneleira. Debruçada no mangue, não consegue ver seu reflexo nas águas escuras que boiam à superfície. Há traços de verdes e azuis e pratas na água do mangue, como se lhe fosse a gordura que não se mistura às levezas aquáticas.

Januária gosta de colher a casca do mangue vermelho, à marretada. Não lhe incomoda ver a árvore sangrar à sua frente. Bate-lhe sem dó, arranca-lhe pedaços como se de vingança se tratasse. É vingança de uma vida.

Quando fizeram a reportagem, disse Januária "eu me sinto orgulhosa de ser paneleira". Orgulhosa de suas panelas cruzando os mares até chegarem a Dubai. Januária não sabe escrever nem ler, mas gostou dessa palavra aberta que é Dubai. Januária sabe que Dubai é longe e que o mangue vermelho se chama rhysophora mangle. Nada disso lhe serve para nada. Januária é analfabeta sem função para a escrita. As letras dela estão todas escritas nos fundos das panelas, e são uma porção de jotas e mais nada.

As mãos de Januária levantam-se afinal da cama. E ela escova os dentes, lava o rosto, faz café, olha pela janela, chama os meninos. Depois varrerá o chão, depois pensará no almoço, catará o resto de farinha e pensará no peixe possível pra dar gosto ao pirão. Agora ela é da pilha de argila, e antes de mergulhar as mãos nessa matéria fria que lhe dá vida, demora-se tentando decidir se hoje a argila é mais amarela e ocre, ou mais cinza e azul, ou mais as duas coisas indistintas. Para combinar com essa manhã esquisita de teto mais baixo que o costume. A argila é o seu oráculo. E Januária fecha os olhos antes de se pôr ao trabalho.

Juvêncio chama de longe. Tou indo pro mangue, diz ele entre tosses. Era eu que queria ir. Tu tem que fazer panela, mulher. Deixe que eu vá. Não deixo, que mangue é coisa de homem. Então tu não devia mesmo era ir. E Januária ri com os dentes que faltam, e encolhe os ombros e a própria sombra diante do morro de terra molhada.

As mãos voam pela bola de argila. Puxam e repuxam, e abrem um oco de comida, sem cheiro ainda, mas já com consistência de moqueca de cação. Januária olha o longe, que ela mais imagina que sabe, e vê sonho, e vê miragem. A panela aberta como goela, e a tampa em perfeição de encaixe. Januária sorri de satisfeita e vai e volta com as cascas da rhysophora mangle e põe dentro d'água e a panela também, e fica repetindo esse nome estranho que é ao mesmo tempo simpatia e oração. E põe mais uma panela, e outra, e outra.

Eronildes chega da escola. Aprendiz de paneleira nessa terra de goiabas em árvore, no Vale do Mulembá. Os avós índios espreitam por dentro de seus olhos pretos. E as mãos como as de sua mãe, pássaros abrindo espaço para o lugar da comida. Como ela, puxam, e repuxam, e mais uma panela, e mãe estou com fome, que horas que vamos comer, o que tem pro almoço. E a mãe sacode os ombros, diz-lhe peixe, e ela mas de novo, não comemos outra coisa, dê graças a deus menina que tem gente que nem. E a menina termina a tampa e limpa a mão na calça de helanca estatal. E Juvêncio passa, e Januária levanta, e Eronildes dá graças a deus que a comida está no caminho, dentro de uma panela das que não se fazem, já nascem feitas, de alumínio, como manda a tv.

Foto: www.jornalfolhadosul.com.br

05/09/2015

Mais conversas de Vó Chica

Os olhos de Vó Chica, quando fala mansamente, fecham-se para verem melhor. Acho que a claridade do dia cria nuvens nas suas retinas. Seu hálito parece desfazer-se em açúcar, e desta vez deixou antes de ir-se um cheiro forte de alfazema. Vó Chica responde às pessoas como se o tempo nunca acabasse, como se vivesse num mundo em que tudo, até ela, é eterno e interminável. Num desses dias estava falando sobre o que se aprende nessa vida - e por que parece tanto, às vezes, que se demora a entender as coisas que parecem tão óbvias. Dizia ela assim:

"Nesta vida, filha, o que mais se aprende é  aprender. A vida inteira é aprendizado, mas não é dentro dela que se aprende - é quando se está pra sair dela, quando o parto do lado de lá se avizinha. Aí, sim, é que se aprende. O caminho da vida é só processo de saber aprender nessa hora. A vida é um lento preparo  para o dia de chegar-se pro lado de lá. Quando a vida está de partida, e as malas na mão de quem parte, o filme na estação é o de todos os dias, enfileirados como árvores na beira da estrada. De vez em quando, a máquina desacelera, e há mais calma pra reparar nos detalhes, pra encher os olhos de águas, pra encharcar o coração de gratidão e um pouco de saudade. Outras horas, a velocidade é tanto, que só o que se vê é uma coisa aqui, e outra acolá. Essa vida que desfila - é nessa vida que se aprendeu, e agora, assistida, é que se aprende e se entende tudo o que aconteceu. 

De pé, diante do nada, aprende-se que abismo é passagem. Que a vida tem qualquer coisa de fantasma: nada do que se pensa palpável existe para além do seu tempo. A luz que se abre depois, como uma fenda rasgada entre as nuvens, deixa escapar as águas desse nascimento ao revés. São as águas que descem do céu, e separam as membranas do que vive antes do que vive depois. Por enquanto, a vida ainda palpita; os caminhos podem ser percorridos; vão se juntando em cestarias as peças que são recolhidas. Mas o todo se contempla à distância, e de lá acenam os tons e as cores, as figuras se desenham sem fugir - isso, filha, só depois, e só se o traçado tiver sido pensado, medido, calculado, vivido e refeito quando preciso. Não há arrependimento quando se olha o todo que passa, na hora que a vida se escoe; é uma imagem que se compõe como cena, como o todo que foram todos os seus movimentos. E aí, sim, se aprende. E se festeja e se acertam as dores, as flores e os espantos.

Por isso não aceite, filha, enquanto do lado de cá, as coisas tal qual apareçam. Nem desastre, nem barbárie, nem falta alguma de humanidade que queira fazer morada em sua casa ou lance suas cordas sobre a terra. Desarmar é viver a verdade, é levantar toda vez de olhos novos, é ver o outro naquilo que carrega - mas não tinja, não orne, não omita. Se a barbárie está à solta no mundo - é porque o preparo pra aprender anda chamando. Sinta as dores do longínquo, e erga as mangas dos seus braços. Não se ausente, nem se cale, nem concorde: seja uma ponta de lança brilhando constelada com aqueles que querem verdade. É das luzes plantadas na terra que rebrota a claridade do mundo."


Imagem: flor de alfazema
www.learningbotanicalart.blogspot.com

Pessoas


se recorto,
me alegro
me altero
me somo.

descubro por dentro
do corte
o invisível ocupante do todo:

a curva, o lençol,
a dobra fina de vento
na parede amarela do prédio

tenho um todo na palma da mão
sou lugar de curva
dobra fina de lençol
mistura inconclusa de verbos
um grito solto na lateral do papel

recorto e
me alegro
me altero
me somo:

junto o teu ao meu peito em carne viva
guardo-te imagem feito tela de retina
recorto-te do meio do todo:
e agora és palma
és tempo
e eu sou minha


Fotografia: Giovani Ferreira