17/08/2018

De rua

Romualdo e Ivanir passaram há uma semana pela minha vida. Literalmente, puxando seus carrinhos de (pensei) recolha de recicláveis. Não. Eram as suas coisas mesmo, as suas casas ambulantes, com todos os seus pertences dentro delas, numa arrumação muito particular acima da lei da gravidade.

Junto com eles, vários cachorros. Limpos, bem cuidados, bem alimentados, de pelo lustroso, olhos atentos e sossegados. Como se estivessem exatamente onde queriam estar, à vontade e satisfeitos com a vida. É Romualdo quem me diz: "você devia era se espantar de nós não estarmos tão cuidados quanto, não acha não?". Decerto.

Ivanir está umas quadras adiante, com dois vira-latas daqueles que parecem rir. "Dona, eu vou cuidar de quem, se não for de quem me cuida?". E não, não é porque os cachorros guardam as suas carroças-casas, e consequentemente as suas vidas. É porque são os únicos que os olham com olhos de ternura, os únicos que percebem quando estão mal ou tristes, os únicos que, a meio da anestesia indispensável à vida na rua, se aninham a seus pés num gesto de amparo. Quem olha para eles, me pergunto.

Como não ficar atordoada? São apenas seis quadras caminhadas, no centro desta São Paulo cada vez mais estranha. Garagens abrigam e lustram carros dia e noite, enquanto pessoas procuram onde se esconder, e aos seus filhos, nas noites de frio intenso deste ano. Toda marquise, requadro e viaduto estão ocupados por casas de faz de conta, ilhas de fantasia de doer o coração. Nesta, à entrada, num papelão recortado no tamanho exato do espaço que sobra, está o chinelo que o dono deixou antes de entrar no barraco improvisado com metade de uma tenda. Ali, do outro lado da calçada, a vassoura e a pá encostam-se à estrutura arriscada da casa, tentativa de manter limpo e habitável o metro quadrado de vida. Mais adiante, espremida no espaço entre a parede e a rua, uma mão aberta e descaída, os dedos longos e escuros, guardados por mais um cachorro de olhos sábios, terminando de lamber a marmita dividida. No meio da praça, o amigo guarda tudo o que encontra, de pasta de executivo a flor encarnada, criando uma sala no meio do vazio cinzento deste dia gelado. Por todo lado, a tentativa absoluta de conseguir um pouco que seja de dignidade, de conforto, de percepção de ser humano.

Cada vez há mais gente nas ruas de São Paulo. E cada vez há mais carros. E cada vez mais pressa. E mais cegueira. E mais incapacidade de perceber que o que é de um é de todos, e a miséria que é do outro é a miséria de todos nós. Estes cachorros do Romualdo e do Ivanir, como se tirássemos Zola da prateleira, estão mesmo mais bem tratados que seus donos humanos, e são estes que tratam deles com o cuidado e atenção que não recebem de ninguém, sem se importarem em reparar muito na própria condição. Dizem que o ser humano se acostuma com qualquer coisa. Eu espero nunca conseguir acostumar-me com essas ruas repletas de olhos e mãos, nunca conseguir encolher os ombros e caminhar sem me incomodar com as minhas mãos vazias, sem palavras possíveis para expressar a tristeza que sinto por poder fazer tão, tão pouco.

Imagem: Gabriel Marcondes

08/05/2018

Dia de feira

Eu nem fui, mas estou aqui lendo os testemunhos de quem foi. Por exemplo:

“É o primeiro ano que eu venho aqui. Eu não sabia. Estou encantada. Eu abraço todo mundo, porque eu voltei lá na minha origem. Eu sou do Maranhão, moro aqui desde 94. Eu estou emocionada com o rosto de cada um desse povo, feliz. Eu vi neles a imagem das pessoas que eu perdi, que eu amava, que são meus avós. Porque eu plantei, eu colhi, eu comi, eu vivi, eu sorri. Meu avô cedia terra para as pessoas plantarem. Eu estou muito emocionada”.

Essa é Alcione França, do Maranhão, migrada desde 1994 em São Paulo. Vou guardar só o depoimento dela, e não mais esquecer, e desejar que ela, que agora sabe, não esqueça. Não esqueça dessa riqueza que todos nós podemos ver nos outros, inclusive as pessoas que perdemos, inclusive aquelas que fomos nós mesmos na infância, esse tempo em que se resiste bem melhor a pautar a vida pelas diferenças que se encontram, e se brinca e se constroem mundos onde todos têm espaço, tempo, lugar e afeto. Estou tão emocionada quanto ela, por ela, e com ela.

Alcione foi visitar a feira do MST neste fim de semana no Parque da Água Branca. Com ela, milhares de pessoas, encantadas com a variedade, a simpatia, o astral, a alegria desses assentados de todos e cada um dos 24 estados brasileiros, trazendo pra São Paulo, sob a grande bandeira vermelha do MST, a sua produção orgânica, verdadeira e suada. A feira causou um reboliço também nas redes sociais, inimizades acendidas pela crescente incapacidade de lidar com o que é diferente de si próprio. Parece o reino da obnubilação. Não há o que se diga, nem evidências que se mostrem. A pessoa é contra, e contra quer ser. Quase parece que abdicou da sua humana capacidade de pensar para além do que já pensou.

Eu nem fui na feira, mas meu filho Cândido foi. E também o amigo dele, Pedro. Entrou hoje na kombi, carona pra escola, de boné MST na cabeça, camiseta vermelho vivo por baixo da camisa xadrez e um sorriso no rosto que me capturou o trajeto todo. Eu olhava pra ele pelo retrovisor, e ele sorria. Nem sei (pensei) se já voltou da feira, acho que o coração dele ficou por lá. Acho que o coração dele se encantou com um país que é tão raro poder se ver, de gente bonita e alegre, sorridente dentro de tudo o que lhe falta, comprometida com o prato de comida que é preciso pôr na mesa de todos. Um país que é raro poder se ver neste sudeste tão rico de tudo e às vezes tão carente do afeto simples que brota de um abraço calejado. Um país que sofre mas não calado, que luta mas não esfaqueia pelas costas, que grita mas não se torna surdo.

Volto para casa e recebo a entrevista de Leonardo Boff, sobre a hora e meia que (finalmente) passou com Lula. Vejo a emoção que não o deixa prosseguir. Abaixa a cabeça e imagino-o na luta para deixar a lágrima para depois. Diz que encontrou seu velho amigo, que é difícil essa vida numa solitária, podendo trocar palavras apenas com quem lhe traz a comida, "uma pessoa muito simpática", completa. Penso em toda a sua luta pelos que mais sofrem, penso no que seus olhos já viram, nas mãos que já apertou, nos corações que já consolou e na luta terrível que deve existir dentro dele para criar na Terra a mesma justiça que Jesus pediu no templo, todos os dias, amanhecendo amanhã parecendo que o ontem nem criou raiz.

Chego por acaso a uma citação do discurso do deputado federal João Amazonas, já lá se vão 70 anos, quando se discutia a questão terra na Assembleia Nacional. Dizia ele: "Resolver o problema da terra é resolver o problema da fome no Brasil, é abrir novas perspectivas para o desenvolvimento industrial do país, porque só com a terra entregue ao povo, em poder dos que trabalham, poderá aumentar o nível de vida das grandes massas e crescer, como se torna necessário, o mercado interno". Setenta anos atrás.

E penso. Não chego a grandes lugares, mas os olhos de Pedro lá no banco de trás da kombi, e o brilho que trazem, recolhido por entre tudo o que viram neste fim de semana, me dão certeza, como se as mãos me dessem, de que nem a luta termina nem a iniquidade passa.



Onde está o depoimento de Alcione: https://www.brasildefato.com.br/2018/05/06/paulistanos-se-encontram-com-os-frutos-da-reforma-agraria/
E a entrevista de Leonardo Boff: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/video-leonardo-boff-conta-como-foi-sua-visita-a-lula-na-prisao/
Fonte da foto, e do trecho de João Amazonas: http://ujs.org.br/index.php/noticias/mst-historia-de-luta-e-resistencia-por-rafaela-elisiario/

03/05/2018

Rápido demais

Vetiver Essential Oil
Um querido amigo confidenciou-me, esta semana, tudo parecer estar rápido demais em sua vida. "Não consigo digerir e decantar tudo o que está acontecendo", disse ele. "Parece-me que preciso parar, para poder olhar em volta e entender o que está à minha volta". Não é ainda, entendi, querer saber o que fazer. É entender o mundo ao redor e provavelmente, mais ainda, o mundo dentro de si. Não consegui dar conselho algum que eu mesma pudesse ter aproveitado, mas fiquei com a sensação pairando ao meu redor, várias vezes voltando como pensamento, lembrança, como impressão. Fiz o que costumo fazer: pedir orientação e ficar à espera.

Há meses atrás, minha irmã ofereceu-me um vidro de óleo essencial de Vetiver. Tinha ouvido falar bem vagamente desse óleo, ela disse que me faria bem, segui sua intuição e usei-o alguns dias. Não sei se o óleo ou os dias, tudo estava muito calmo e assim permaneceu, firme e seguro. 

Hoje cedo, preparando o dia de quinta feira, caiu-me o óleo nas mãos, literalmente, da prateleira do armário em que esbarrei. Decidi entender a que vinha.

O óleo de Vetiver é conhecido por nos ajudar a aterrar as nossas emoções, a voltar ao nosso próprio centro. Desconfio que tenha a ver com a forma como crescem as suas raízes, voluntariosas na direção do centro da terra, sem se abrirem em leque e se espalharem em volta. Formam um todo quase esponjoso (deduzo, pelas fotografias), que parece absorver o que está ao redor enquanto continua firme em direção ao centro. Abro o vidro e fecho os olhos - conselho que sigo sempre, de vó Chica, quando quero apreciar alguma coisa. Muitas vezes são os cheiros que me atingem primeiro, mas logo a seguir, e de repente, é a audição que desperta, e então eu ouço.

Vetiver tem cheiro de madeira, madeira úmida e terrosa. Só cheiro, porque é raiz, mas mesmo assim, em perfumaria, figura ao lado dos patchouli, cedro e sândalo. (Descubro que ganhou fama em 1957, quando foi lançado com esse nome mesmo, Vétiver, pela perfumaria Carven; que o Vétiver da Guerlain tem um toque picante, graças a uma pitada de noz moscada; que Térre d'Hèrmes também tem boas doses de vetiver, assim como outro da Guerlain, Vétiver Tonka, com toque de amêndoa e baunilha; que o Vétiver Cologne, da perfumista Goutal, é mais cítrico e solar e que o Sel de Vétiver oferece um aspecto mineral algo salgado. Desde que li "O Perfume", do Patrick Suskind, nunca mais pensei em perfumes.)  

Perfumes à parte, o que me interessa (e interessará a meu amigo) é que o óleo de vetiver resgata de dentro de nós as emoções profundas submersas nos mares do nosso inconsciente. Não sei se, por isso, lho recomende. Em momentos específicos da vida, pode ser que as emoções que subam à tona sejam por demais poderosas e assombrosas, mesmo sabendo que o poder de vetiver, de aterrar e dar chão para essas emoções, seja um de seus grandes trunfos. É uma jornada dupla, sussurra vó Chica, como tudo na palma da vida. Várias linhas que se cruzam, vários sulcos se aprofundando, criando novos veios, novas veias, sangue novo circulando. Nada disso é indolor, mas não é preciso sofrer.

Vetiver, em tamil, língua de onde nos chega a palavra, significa "machadada para cima". Arriscado e perigoso, usar lâminas cortantes viradas para cima, mas parece ser a única forma de arrancar as raízes de vetiver para delas poder extrair seu óleo e usá-las para mais uma infinidade de coisas há mais de 6000 anos. O mais seguro, creio que lhe vou dizer, será primeiro verificar onde estão seus pés, abrir a consciência para o onde se pisa, antes de adentrar com confiança e força esse mundo vetiver. Ser submergido no mais profundo das emoções para ser pela mesma mão terapêutica, guiada pelo cheiro do vetiver, devolvido à superfície, talvez quase sem ar, talvez quase sem chão, mas percebendo à chegada os pés mais firmes na Terra, e as emoções ao seu lado, tão afirmadas e centradas quanto o próprio ser, a quem vetiver ajuda como se fôssemos solo fértil onde é bom cultivar. Como em tudo, caberá a cada um escolher, de acordo com o lugar que a sua consciência ocupa e os caminhos que dentro dela deseja desbravar.


(Como usar o óleo de vetiver? Abrindo o vidro e aspirando seu aroma. Combinado a outro óleo, pode ser esfregado nos pulsos (essa foi a receita da minha irmã). Em inalações, funciona bem combinado a alfazema/lavanda: apazigua e tranquiliza a mente. Em massagens, combinado ao óleo de coco, esfria corpo e alma, tensões e ansiedades, ajuda a lidar com insônias renitentes. Crianças que chegam da escola irritadiças, como se tudo fosse demais? Lição demais, aulas demais, pressão demais, sentimentos demais? Um pouco de vetiver esfregado delicadamente no pescoço ou na sola dos pés, pode trazer alívio e permitir que recuperem seu próprio ritmo.)

Site bacana sobre perfumes http://1nariz.com.br/2013/falando-perfumes



21/10/2017

Águas de rio


Lembrei-me agora tarde deste rio que chamei de "Das Flores" tempos atrás, um dia em busca de Endovélico, um antigo deus pagão do Alentejo português. Um perfume de baunilha enchia o ar, e o rio quase que não deslizava, antes hipnotizava as coisas à sua passagem.

Passaram-se os anos. Com certeza as águas do Das Flores continuam na sua longa e perfeita marcha em direção à foz. Assim como todo rio é matéria de água, todo rio desliza ou corre ou mergulha na direção do futuro.

Observo este rio de hoje, este rio que sorri por entre rochas antigas, do tipo invencível e paciente, e me estende as mãos em convite. Faço-lhe alcançar os meus dedos e mergulho de uma só vez em suas águas claras.

Ouço seu sussurro, essa recitação suave que diz deita-te, deita-te, e deixa-te levar. Estou aprendendo. Experimento deitar-me nas águas como se me deitasse num leito. É um leito, de rio, feito casa em redescoberta. Recebo nas mãos as lições de que preciso. A da entrega. A dos olhos fechar.  A do sorriso como gesto natural do lábio.

Deitar-se ao largo no rio faz o coração inchar. A garganta apertar. As mãos tremerem quando aqui e ali roçam sem querer roçar o fundo de pedras roladas escorregadias. Parece que afundo. Mas não.

Olho para o lado, com cuidado para não encher os olhos d'água. E vejo-te. Estás ali, à distância de um palmo curto, pequeno e largo. Em vez de afundar sorrio. E depois de sorrir respiro.

As águas deste rio imenso atravessam a planície.  Deslizam suaves, sem tropeço de pedra. Adiante o contorno de rochas azuis. Dois pássaros secam-se ao sol, sacodem as penas luzidias, piscam os pequenos olhos. De dentro da cortina d'água, desaparecem no fundo azul do céu. Meus olhos também piscam. 

Há corredeiras à frente, penso, e logo quase digo em voz alta: e uma curva longa, sinuosa e lenta adiante. Todo rio é feito de água e corre na direção do futuro, e o futuro é só o amanhã em processo de chegada. Já está aqui e ainda não chegou lá.

Não há perigo, nem sequer é preciso pensar, escuto. Se o corpo arqueia, em substrato de medo, sinto o teu vibrar ao meu lado, tão na água quanto eu, tão no leito quanto eu, tão na entrega quanto eu. Deixa a água conduzir, dizes-me, e eu descanso os músculos tesos. Respira: quando se arqueia o corpo, os pulmões esquecem-se de tudo e extasiam sem nada fazer. O rio respira sob e sobre mim, e tu ao meu lado.

Saberei deixar-me conduzir por dentro deste rio? Não me lembro de manhã tão cedo mergulhar em águas claras e largar-me assim, debaixo delas como se delas fizesse parte. Talvez o rio seja meu, seja nosso, o nosso primeiro.

Como todos, este rio, feito de água, brilha debaixo do sol amarelo enquanto o vento balança os longos galhos das árvores numa espécie de carícia. As minhas costas tremem como numa lição de amor. As águas deslizando me levam e eu só  me concedo deslizar com elas.


13/06/2017

Trilhos


Um aluno entra aflito pela porta do Quinta Palavra hoje cedo. Diz-me Ana, não consigo mais escrever. Não consigo mais ter ideias. Não consigo mais que palavras fluam de dentro dos meus dedos, como você já me fez acreditar. Não, não é bloqueio passageiro, nem tente: é fato dito e consumado. As palavras já não me aparecem de manhã cedo, nem correm (andando já seria bom) na minha direção. Já fiz de tudo, e o fato é um só: tudo o que escreva tem alguém que está escrevendo. Não, não é que tudo já foi escrito. É que tudo está sendo escrito! Alguém, algum lugar, está tendo as minhas mesmas ideias e escrevendo as mesmas minhas palavras. Para que, então, sentar-me e despejar palavras que outro já tem para si?

Peço-lhe que respire, porque tudo isso foi assim como num jato, um acesso de palavra em vez de tosse. Vamos tomar um chá, que é sempre bom pra acalmar ou entusiasmar os nervos. Diz-me não, preciso ir ao banco, e logo depois ao outro banco, e ainda o supermercado e enfim: preciso trabalhar. E sai, igual chegou, aflito e atapetando a calçada com suas palavras.

Claro que me preocupo. Sei como é difícil lidar com a falta, essa coisa que alguns chamam de "inspiração". Quando não encontramos palavras. Quando só se ergue um deserto de nada diante de nós, papel em branco por todos os lados. Só que não é isso.

Gravei a última parte: alguém deve estar escrevendo o que eu mesmo escreveria. Soa-me imediático, digamos assim. Instantâneo. De onde tira ele que alguém escreve as mesmas palavras que ele? Internet, claro, esse recurso que nos permite estar à distância de um olho de absolutamente tudo e todos no mundo. Hoje cedo, veja bem, conversava com Siddartha, que é professor waldorf, ex-menino órfão com necessidades especiais, no distante Nepal. Sequer sonha em conhecer o Brasil mas conversa comigo como se fosse meu vizinho, e eu com ele a mesma coisa. Não é bem um problema, mas continuo achando estranho.

Procuro meu aluno no facebook, essa vitrine de pequenos nadas.

Ninguém pensaria em bloqueio. Ou em desespero. Aflição. Sua atuação é divertida, um pouco cínica talvez... parece descrente destas coisas políticas (afinal quem não), mas ri-se aqui e ali, ouve música, comove-se com frases de efeito e autoria duvidosa. Aliás: tudo isso muitas vezes. Vezes demais, talvez. Várias postagens em menos de uma hora, e uma hora depois a mesma coisa... Agora mesmo (mas não ia ao banco?!).

Eu me pergunto se Santos Dumont teria voado alguma coisa se soubesse que os Wright andavam tendo as mesmas ideias. Se, entre o desenho de uma asa e um pensamento aerodinâmico, fosse checar ao computador se fulano já lhe respondeu o email do orçamento dos parafusos e aproveitasse pra dar uma conferidinha nos likes do face. Sim, imagino que ao longo do processo tenham sabido uns dos outros (Oswald de Andrade passeando pra lá e pra cá entre São Paulo e Paris levaria e traria sem dúvida notícias, no mínimo), capaz que logo até se encontraram e Dumont não deve nem ter tirado o chapéu para cumprimentar. Nem preciso do google pra saber disso. Mas ali, logo no começo, no momento do gérmen da ideia, quando as chispas voavam no espaço sideral sobre sua cabeça e do Demoiselle só se ouvia o farfalhar das asas... Isolamento e solidão são fundamentais. E não saber de nada pode ser bem bom, ainda que sucumbamos a essa mania moderna de "estarmos informados cof cof cof".

Ontem mesmo, a meio de uma aula, quando um outro aluno de repente exclamou "ah! eu tive uma ideia bacana! vou colocar duas personagens num bar, e vou fazê-las ir pro bar de tempos em tempos, e vou fazer elas criarem uma relação entre elas que só rola ali mesmo, no balcão do bar", eu TIVE que logo alinhar um "já viu Cheers?", e ainda me levantar e ir buscar à estante os dvd's empoeirados com um Sam Malone anos 80 na capa. Quem perguntou? Quem é que estava interessado na referência? Quem precisava saber disso? Mania que temos de relacionar eternamente as coisas, só para sabermos que tudo já foi escrito, tudo já foi inventado, tudo já foi feito. Cheer's ficou aqui na mesa e eu torço para que a minha intromissão não retire vontade ao coitado do aluno.

Procure por "tiny houses" no youtube. Centenas de videos ensinam a projetar, construir e resolver como morar em espaços pequenos que nos retirem dos afãs consumistas e nos projetem na direção de uma vida mais simples, mais leve e mais humana. Fantástico. Procure por "viagens em kombi". Zilhões. Qualquer ideia que você tenha, alguém também teve ou tem, e em 5 minutos vai compartilhá-la na rede.

Pode ser muito útil quando você quer fazer uma coisa. Mas é deletério quando você quer ser e viver de forma criativa. Porque o que já está feito pode retirar-lhe forças - as forças que o levarão a tropeçar nos lugares em que outros tropeçaram. Perda de tempo? Longe disso: aprendizado. É do tropeço que nasce o aprendizado. Sem tropeçar, meu amigo, você não descobre de que matéria é feito seu pé, quais os terrenos que lhe são propícios, quais tipos de fungos o atacam e qual tipo de calçado lhe é favorável.

Espero aquele primeiro aluno daqui a pouco. Rejeitou o chá mas não rejeitou o almoço. E agora eu já posso dizer-lhe duas coisas. Uma, que desligue o wifi. Duas, que não confunda criação com originalidade. Criar é tirar do nada: se você estiver cheio do que já foi dito, feito, escrito, vai encobrir a sua própria palavra. A palavra que sai de dentro de você nunca será igual à que sai de dentro de outro. Portanto: ainda que as palavras sejam as mesmas, os textos sempre serão distintos. E os trilhos de trem da foto ali em cima? Sempre linhas retas de ferro indo na mesma direção, abrindo caminhos e picadas onde era mata fechada. É preciso pisar em cima deles e deixar-se levar, tanto faz se alguém já andou por eles ou não. Quem faz a sua viagem é você.

Boa semana pra todos!


Foto: Daniel dos Santos

26/05/2017

Família

A minha tia Teresa fez a sua passagem ao outro lado da vida nesta terça feira. Recebo a notícia a tantas milhas de distância, e ainda assim é como se estivesse de braços dados com quem fala comigo ao telefone. Tão grande a memória que não respeita limites de espaço: faz-se assim, aqui no meu colo, em segundos que me fazem tropeçar em lágrimas com gosto de muitos anos atrás.

Procuro a Tité nos recantos dessas minhas memórias, para poder despedir-me dela nos tempos em que foi comigo, e que reconheço em mim. Vejo seus olhos a passar pelos meus, na sala maior da minha infância, um alento de compreensão a meio de uma explicação sofrida de matemática paterna. Vejo-a recostada no sofá forrado de flores inglesas, inspiração para todos os tecidos de todos os meus sofás na vida. Ouço a sua gargalhada, um cristal a rebentar de alegria, o seu grito estridente a chamar os tantos filhos - será na sua esteira que também eu me multipliquei por sete? Vejo-a a dobrar e a passar a ferro os guardanapos, espantada eu de, apesar de tantas bocas, ainda serem os guardanapos todos de pano e passados a ferro. Sorrio das suas tradições tão bem guardadas, lugares onde posso refugiar-me quando a realidade escapa. Esses caminhos que aqueles que nos precedem sulcam no chão da nossa vida são lugares seguros, é preciso dar graças por eles e inclinar-se em reverência profunda, porque nada disso foi fácil, não é nada fácil decidir o dia a dia, ser aquela que diz se os guardanapos são ou não são de pano, ou se as pessoas devem ser amadas apesar de tudo, apesar dos dias, apesar das limitações, apesar das idas e vindas. Se hoje somos, é porque outros foram antes de nós, e lançaram-se a fazer escolhas, tanto faz se sabendo ou não dos riscos que comportavam.

Quero despedir-me num passeio pela sua casa, lá onde o sofá se esvaziou. Paro à entrada da sala, a estante ao fundo, os livros escuros e solenes enfileirados nas suas prateleiras. O meu tio Fernando olha-me como se eu sempre tivesse estado ali, sentado em seu silêncio de alma. Abro a porta lateral do corredor, e olho para trás: o sofá está ali, intacto, o candeeiro apagado porque é de dia e o sol entra aos jorros pela janela. Do corredor estreito ao quarto do meu primo primeiro, o Luis companheiro de alegrias de sótão. Abro as suas duas gavetas embaixo da cama, passo os dedos pelos legos organizados por cores. A janela, a cama, e o Luis ocupado sem quase dar por mim, que o vejo nesse pedaço de infância. Talvez se tenha esquecido de mim, e eu dele, mas esse momento está pendurado na eternidade apesar dos nossos esquecimentos. A Joana chama-me, do quarto em frente, sentada na cama de vestido verde, o sorriso aberto e claro. 

Estou deitada em algum lugar desta casa quando a minha irmã anuncia a sua chegada, e volto a ela para despedir-me da minha tia. Tenho quase certeza de que também ela passeia por lá, a despedir-se, um por um, dos livros, dos quadros, das pequenas rugas que todos deixamos para trás e que esperamos alguém se lembre de alisar de vez em quando, para que estejamos sempre em tudo e em todos. 

Uma boa viagem, tia querida, um bom caminho, e que a recebam rostos amados do lado de lá, onde a festa já se anima com a alegria da sua chegada.

23/04/2017

Jorge e Ogum, em seu dia

Dos lugares em que a energia de Ogum, a divindade guerreira iorubana, se encontra em forma concentrada, os que mais gosto são os trilhos de trem. Não a sua aglomeração em estações, pura confusão urbana de chegadas e partidas, mas a sua extensão férrea nos campos, os trilhos que penetram as matas e a atravessam, imutáveis e diretos. Gosto de andar por esses trilhos, entrar sozinha no silêncio que me entrega de bandeja a capacidade a veneração, e avançar sem ruído, cadenciando os passos até quase sentir a marcha militar andando por entre eles. Ogum é um trilho, contundente e firme, agarrado ao seu lugar e àqueles que defende e protege. Nessa qualidade de trilho, ergue-se o Ogum silencioso e persistente, a espada em punho. Olho-o com respeito e admiração; dobro meu joelho, dobro o corpo todo, inclino-me até minha testa encostar a terra. É preciso muito para demover um trilho de seu lugar, assim como é preciso muito para demover Ogum de uma causa.

Diz uma antiga lenda que Ogum, mesmo quando a água é abundante, prefere banhar-se em sangue. Não por vingança ou sadismo, mas por encontrar dentro do sangue o seu veículo de expressão na Terra. na sua forma mais fluida e sutil. Ferro em nosso organismo, o sangue é o calor que nos move, a regulação que nos protege, o fogo que nos habita, o vermelho escuro que preenche o coração, nosso órgão-fogo, lugar de habitação de Ogum em nós.

Aguerrido, Ogum não perdoa ofensas. Não se desencoraja nem perde a força. Onde muitos já teriam baixado os braços e abandonado a luta, sentado à beira da estrada e se conformado com o desastre, Ogum continua de pé. Ogum é sincero e franco, puro ímpeto.

Ogum não dorme, não se esquece, não abandona, não vira as costas.  Enche-nos da energia do ferro estelar, cria em nós a força, o calor e a transcendência que nos percorre como sangue, preenche e inunda nosso coração e para nós transfere a capacidade de lutar contra a adversidade, contra a injustiça, contra a arbitrariedade, contra o descompasso que coloca em risco a própria humanidade.

Ogum, o ferro, é a enxada que tudo planta, a alavanca que tudo ergue, o machado que tudo derruba, a pá que tudo encontra, a picareta que tudo explode, a espada que tudo perfura e a faca que tudo corta. Suas ferramentas estão em nossas mãos - e a sua invocação eleva-nos até ele, até essas qualidades que são afinal nossas, muito humanas, em graus variáveis de manifestação.

E hoje é seu dia, na sua roupagem de Jorge. Mesmo tendo perdido o grau de Santo (Paulo VI, em 1960, achou que havia poucas evidências de sua existência real e muitas evidências de seu potencial revolucionário), Jorge, jovem soldado da Capadócia filho de mãe palestina, defensor dos cristãos perseguidos pelo imperador Diocleciano, está desde o século III por toda parte, inspirando arte, dando nome a cidades, castelos, ruas, comércios, igrejas. É Ganesh no panteão das religiões de base hinduísta, Odin entre os nórdicos, Marte para os romanos, Ares para os gregos.

Dê-lhe você o nome que desejar, hoje é dia de força guerreira, hoje é dia de forjar armaduras com a proteção do ferreiro maior, hoje é dia de recordar, com o coração em chamas, e reafirmar nossas vestes e nossa proteção. Dia de lembrar que é preciso pedir para ser atendido: pois então que se peça, e que o mundo se torne um lugar melhor para viver, onde todos possam comungar da força e da coragem de Ogum, que todos possam erguer-se da planície sorumbática de um dia igual ao outro, e perceber, ao seu redor e sobretudo dentro de si mesmos, a força quente do ferro que para nós escorre do Cosmos e grita, espada flamejante em punho: Ogunhê!

Eu andarei vestido com as roupas e as armas de Jorge
Para que meus inimigos tenham pés, mas não me alcancem.
Para que meus inimigos tenham mãos, mas não me peguem.
Para que meus inimigos tenham olhos, mas não me vejam. 
E nem em pensamentos eles possam me fazer mal.
Armas de fogo meu corpo não alcançarão. 
Facas e lanças se quebrem sem o meu corpo tocar. 
Cordas e correntes se arrebentem sem o o meu corpo amarrar.
Porque eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge.

17/04/2017

A cidade escura

Apesar de ainda cedo, entro. Nada de mal poderia acontecer, minhas pernas já cansadas de esperar de pé. Nem sempre me sinto à vontade nesta cidade, apesar de ter nascido nela. Não sei se são os ambientes enfumaçados, ou as janelas que parecem nunca saberem o que é limpeza. A escuridão reina, quando (como agora) ainda é dia, e eu aflijo-me como com poucas coisas na vida. Não gosto de coisas geladas nem de pessoas frias, mas nada me incomoda mais do que situações escuras, casas mal iluminadas, lugares em que a falta de luz e claridade não incomoda ninguém.

Empurro a porta, tentando aparentar tranquilidade. Como não vejo nada de fora, não sei o que me espera lá dentro. A única coisa que me ampara nessa entrada são as notas de um piano que ouço em ondas vagas, conforme as pessoas entram e saem, deixando passar as ondas sonoras no vai-e-vem das portas. A música acalma-me. A boa música, entenda-se. Não qualquer música, e nem tocada por qualquer pessoa – tantas aulas com tão bons músicos como companhia provocaram essa deficiência em mim. Não consigo ouvir o que não seja afinado. Estar fora de tom incomoda-me quase tanto quando a escuridão.

Lembro-me de ter me perdido no mar, quando criança. Virava a cabeça, tentando perceber algo, mas o som que vinha de todos os lados era o mesmo. Nenhuma direção parecia diferente das outras, e a noite estava descendo, e eu pensei que ali, justo ali e eu ainda tão pequeno, seria meu fim.

Não foi. Ainda estou vivo, e já se passaram largas décadas.


Sento-me a uma mesa de canto. Tampo de mármore branco manchado aqui e ali. O garçom aproxima-se, pano vermelho e branco pendurado no antebraço, a cortesia em pessoa. Café, sim. Com bastante açúcar. O homem sorri-me, percebeu que sou daqui.

O copo balança em minha mão. O vidro é tão fino que temo quebrá-lo. O café escuro olha-me de dentro dele, atento às mudanças de meu rosto. Eu não expresso nada (ou assim me parece), olhando tudo e todos como se fossem reflexos de mim mesmo, se eu tivesse ficado e vivido e estudado e me apaixonado nesta cidade. O que teria sido de mim?

Talvez não fosse solteiro. Talvez visitasse a Mesquita Central todos os dias, não sei quantas vezes (se fosse um homem religioso, saberia quantas). Talvez a minha vida não tivesse sido dançada, mas outras mil coisas que poderiam ter acontecido se, e tão somente se, a minha vida tivesse ficado amarrada a esta cidade. Talvez tivesse perdido o medo do escuro. Talvez tivesse voltado a nadar no mar.

E então ela apareceu. Não a via há anos. Da porta, espreita todas as mesas. Não vai me reconhecer? Estou a ponto de levantar para indicar-lhe onde estou, fazer-lhe qualquer sinal, interromper essa agonia de não saber se eu ainda sou eu, quando ela abre um sorriso e caminha na minha direção.

Anton, quanto tempo e seus olhos enchem-se de lágrimas. Está velha e quebrada, os ossos e o casaco gastos. Não pensei que passasse necessidades. Mas também não pensei em nada. Nem sequer pensei nela quando avisaram, já em pleno voo, que não desceriam em Damasco por estar sob fogo cerrado. Só pensei que o mundo já não era um lugar seguro para se viver. Nem para se viajar. 

Assim que pousei e avisei meu irmão da mudança de planos, ele disse-me liga pra ela. Pra quem, respondi. Pra ela, pra quem mais você ligaria em Istambul? E assim liguei. No automático, sem pensar que tê-la diante dos olhos, a percepção da temperatura da pele de sua mão na minha, me colocariam diante de uma parte de mim mesmo que sem saber tentei e consegui, com tanta maestria, calar.


15/04/2017

Sábado de Aleluia

O sol já nasceu quando Vó Chica passeia pelo quintal. Ainda é cedo, mas ela veio à procura das conchas. Mesmo sendo sábado de Aleluia, ainda é tempo de Paixão, esse momento do ano que ela tanto aprecia, por ser solene, alegre e triste ao mesmo tempo. Por ser o tempo de pensar com o coração, pleno e entregue.

Pensei que Chica gostasse da noite, mas não. O que ela gosta é de luz verdadeira, como as luzes do fogo das velas. É por isso, explica, que ela pede que as apaguemos quando nos visita à noite. Para poder ver melhor às vezes é preciso apagar as luzes.

No fundo, penso enquanto vejo seu vulto atrás da moita de mirra, e já há algumas nuvens no céu azul, ela nunca está longe.

Chica desenha no ar, por cima das conchas, uma cruz. E outra. E outra. Três cruzes pairando acima das plantas do quintal. Sorri satisfeita, conversa com as conchas sob a sombra das cruzes, encarrega-as de alguma coisa que não alcanço compreender e vai-se.

Vó Chica tem falado das cruzes, nesta quaresma. Das nossas cruzes, cada qual com a sua. Adverte séria: engana-se quem presta demasiada atenção à sua e negligencia a do outro. Carrega-se a própria, sustenta-se a alheia. Nem uma substitui a outra, nem se deve pensar que, por cuidar das alheias, se resolvem as suas.

Obaluaiê, o orixá do trono da Evolução, da vida, da morte, veste-se de palha. Há quem diga que esconde chagas, há quem diga que esconda a sua beleza. Seja como for, não se mostra, não ostenta. A sua cruz é invisível, mas dobra-o quase até o chão.

Aproximo-me das conchas que Chica me ofereceu. Já rebrilham ao sol da primeira manhã. Parecem polvilhadas com espuma de mar. Estão todas com seu lado aberto virado para cima, como se tivessem combinado, com as mãos estendidas de Chica, ensinar-me a mesma coisa: a aceitação. Aceitar a cruz, o seu peso, a sua superfície áspera, o seu gosto amargo. As conchas abertas dizem-me dobra-te. Abre-te. Aceita-te. Permite-te ser pregada à tua cruz, para que nesse casamento de madeira e sangue possas entender com a tua carne o que a carne da tua cruz te conta e ensina.

Levo-as para dentro, e abro-as onde devem ficar. Já se misturaram todas, já se fecharam e abriram nesse transporte, mas será difícil apagar essa imagem de tantas aberturas claras, tanta entrega incondicional, tanto brilho na atitude simples de apenas estar e apenas ser nesse estar. A Paixão agora brilha em tudo, e a vida está pronta para o Domingo de Páscoa. Aleluia!

Foto: Mônica Stein