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23/04/2017

Jorge e Ogum, em seu dia

Dos lugares em que a energia de Ogum, a divindade guerreira iorubana, se encontra em forma concentrada, os que mais gosto são os trilhos de trem. Não a sua aglomeração em estações, pura confusão urbana de chegadas e partidas, mas a sua extensão férrea nos campos, os trilhos que penetram as matas e a atravessam, imutáveis e diretos. Gosto de andar por esses trilhos, entrar sozinha no silêncio que me entrega de bandeja a capacidade a veneração, e avançar sem ruído, cadenciando os passos até quase sentir a marcha militar andando por entre eles. Ogum é um trilho, contundente e firme, agarrado ao seu lugar e àqueles que defende e protege. Nessa qualidade de trilho, ergue-se o Ogum silencioso e persistente, a espada em punho. Olho-o com respeito e admiração; dobro meu joelho, dobro o corpo todo, inclino-me até minha testa encostar a terra. É preciso muito para demover um trilho de seu lugar, assim como é preciso muito para demover Ogum de uma causa.

Diz uma antiga lenda que Ogum, mesmo quando a água é abundante, prefere banhar-se em sangue. Não por vingança ou sadismo, mas por encontrar dentro do sangue o seu veículo de expressão na Terra. na sua forma mais fluida e sutil. Ferro em nosso organismo, o sangue é o calor que nos move, a regulação que nos protege, o fogo que nos habita, o vermelho escuro que preenche o coração, nosso órgão-fogo, lugar de habitação de Ogum em nós.

Aguerrido, Ogum não perdoa ofensas. Não se desencoraja nem perde a força. Onde muitos já teriam baixado os braços e abandonado a luta, sentado à beira da estrada e se conformado com o desastre, Ogum continua de pé. Ogum é sincero e franco, puro ímpeto.

Ogum não dorme, não se esquece, não abandona, não vira as costas.  Enche-nos da energia do ferro estelar, cria em nós a força, o calor e a transcendência que nos percorre como sangue, preenche e inunda nosso coração e para nós transfere a capacidade de lutar contra a adversidade, contra a injustiça, contra a arbitrariedade, contra o descompasso que coloca em risco a própria humanidade.

Ogum, o ferro, é a enxada que tudo planta, a alavanca que tudo ergue, o machado que tudo derruba, a pá que tudo encontra, a picareta que tudo explode, a espada que tudo perfura e a faca que tudo corta. Suas ferramentas estão em nossas mãos - e a sua invocação eleva-nos até ele, até essas qualidades que são afinal nossas, muito humanas, em graus variáveis de manifestação.

E hoje é seu dia, na sua roupagem de Jorge. Mesmo tendo perdido o grau de Santo (Paulo VI, em 1960, achou que havia poucas evidências de sua existência real e muitas evidências de seu potencial revolucionário), Jorge, jovem soldado da Capadócia filho de mãe palestina, defensor dos cristãos perseguidos pelo imperador Diocleciano, está desde o século III por toda parte, inspirando arte, dando nome a cidades, castelos, ruas, comércios, igrejas. É Ganesh no panteão das religiões de base hinduísta, Odin entre os nórdicos, Marte para os romanos, Ares para os gregos.

Dê-lhe você o nome que desejar, hoje é dia de força guerreira, hoje é dia de forjar armaduras com a proteção do ferreiro maior, hoje é dia de recordar, com o coração em chamas, e reafirmar nossas vestes e nossa proteção. Dia de lembrar que é preciso pedir para ser atendido: pois então que se peça, e que o mundo se torne um lugar melhor para viver, onde todos possam comungar da força e da coragem de Ogum, que todos possam erguer-se da planície sorumbática de um dia igual ao outro, e perceber, ao seu redor e sobretudo dentro de si mesmos, a força quente do ferro que para nós escorre do Cosmos e grita, espada flamejante em punho: Ogunhê!

Eu andarei vestido com as roupas e as armas de Jorge
Para que meus inimigos tenham pés, mas não me alcancem.
Para que meus inimigos tenham mãos, mas não me peguem.
Para que meus inimigos tenham olhos, mas não me vejam. 
E nem em pensamentos eles possam me fazer mal.
Armas de fogo meu corpo não alcançarão. 
Facas e lanças se quebrem sem o meu corpo tocar. 
Cordas e correntes se arrebentem sem o o meu corpo amarrar.
Porque eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge.

10/08/2014

Dragões

"Quando olhei para ele, eu vi a mim mesmo".

É assim que Soluço explica o seu encantamento pelo dragão banguela. Não esperava encontrar muita coisa em "Como treinar seu dragão". Mas a história me cativa, e muito. Essa frase em particular ficou ressoando em mim, acordando memórias e associando-se ao resto das coisas da vida de hoje.

Banguela não é um dragão diferente dos outros. E nem Soluço um garoto diferente dos outros, apesar de herdeiro do trono de seu pai viking. O que é diferente é a sua disposição, esse lugar da alma que significa pôr (do latim ponere) à parte (dis-). Quando existe disposição é porque algo se arrumou, se colocou a um lado, o que vem a significar que se lhe deu atenção diferenciada.  Soluço parece ter uma disposição interna imensa de observar as coisas, de colocá-las a um lado e olhá-las com atenção, sem misturá-las a si próprio e nem àquilo que já está dado e consentido como "normal".

Essa disposição observadora permite-lhe ver o que outros não enxergam. Percebe que os dragões que seu povo combate e insiste em exterminar, são seres tão presos e cativos de outros quanto os próprios vikings. Atacam porque são atacados. Matam porque receiam a morte que pesa sobre suas próprias cabeças. Curvam-se à ameaça de quem os domina, e os vikings curvam-se também. Com disposição, Soluço põe-se à escuta e percebe caminhos de encontro com esses seres. Transforma o paradigma porque descortina possibilidades. E descortina possibilidades porque não alimenta medo. Já se sabe que o medo é o mais perfeito imobilizador que existe.

A meio do filme, lembrei-me do quadro de Paolo Uccello, pintor italiano do Quattrocento - "São Jorge e o dragão", pintado por volta de 1460. Dragões são representações fortes desde os primórdios da humanidade, e essa obra de Uccello está presente em "O homem e seus símbolos", de Jung. É a imagem que ilustra este texto: vale a pena olhá-la com disposição. Perceber as sutilezas para as quais nossos olhos foram educados a ser cegos. As sutilezas que envolvem a relação da moça à esquerda com o dragão, e as sutilezas da relação do cavaleiro à direita do mesmo. As mãos de uma, e o que seguram, e as mãos do outro, e o que seguram. Forças humanas a um lado e a outro da figura mitológica: o que cada uma delas representa? Para onde seu olhar se dirige em primeiro lugar? O que evocam em você os mundos representados atrás dessas figuras? Só a disposição observadora, aberta e atenta, pode trazer-nos respostas - quando olhamos para ele, vemo-nos a nós mesmos.

"Quando olhei para ele, vi a mim mesmo" poderia ser também a fala de Carl Hart, autor de "Um preço muito alto". Acabo de ler quase que num fôlego só. Hart é neurocientista e o seu campo de pesquisa é a ação que as drogas têm sobre o cérebro. O seu livro, porém, vai muito além disso. É um relato pessoal de percurso humano, de história de vida e de reflexão sobre ela. Um relato do perceber o fio que a vida tece para chegarmos onde chegamos. Hart derruba sistematicamente por terra vários dos mitos que envolvem o tema das drogas na nossa sociedade, e derruba-os a partir de uma premissa que foi construindo em si ao longo da vida: o questionamento de tudo o que achava que sabia sobre as drogas e a disposição de olhar além daquilo que assumia como verdade para si mesmo e para o mundo. O percurso que Hart nos oferece, recheado de dados estatísticos oriundos de bem fundamentadas pesquisas, toca-nos não só naquilo que achamos que sabemos e pensamos sobre o universo da droga. Toca-nos também naquilo que achamos que sabemos sobre as nossas vidas e sobre o mundo ao nosso redor. Toca-nos também naquilo que nos aflige, que nos desnorteia, e que é a busca de todo ser humano sobre a terra.

A disposição empática permeia o desenho animado, o livro de Hart e o quadro de Uccello. Todos são ofertas generosas de ver além das aparências, janelas para esse nós-mesmos que ainda não conhecemos. Não sei se existirá algo mais transformador e revolucionário do que encontrar-se no outro. Do que perceber que no outro vive uma parte de nós, e que dentro de nós vive o outro refletido. Encontros são janelas para esse novo olhar, e dar o passo que nos tire das certezas não é fácil, mas é o caminho. O caminho para situar em terreno seguro as nossas andanças, de fazer as escolhas corretas, de tomar os rumos acertados. Sejam eles sensatos e lógicos, sejam eles apaixonados e desconhecidos. Sem a disposição de um novo olhar sobre o outro e sobre si mesmo, sem abrir mão das certezas e daquilo que achamos saber, qualquer encontro se torna um acidente de percurso, e não um desbravador de mundos.