01/04/2023

Linha de horizonte

São estes horizontes largos a abrirem-nos os olhos, a ventilarem-nos os pensamentos. A mim, dão-me a sensação, nem tão agradável, de ser por um lado tão pequena e insuficiente e, por outro, ser pertencida por algo que é em si tão maior. Este algo que me transcende é este deslumbramento, esta outra perspectiva de tanta água salgada, tanto mar, tanto mar, deste lado tanto quanto do outro, acima e abaixo, à esquerda e à direita. As ondas tudo mudam de lugar, e nada permanece a não ser o horizonte.

Do fundo dessa linha a dividir céu e mar, a correr sobre a superfície como um peixe-voador, a Rainha das Águas olha-me, tal qual eu a ela. Mal deixa seu rastro no espelho d'água. Reconhecemo-nos a um só tempo, e assim como a observo, sei ser por ela observada. Fecho os olhos, não me cabe tanto deslumbramento, sinto-me explodir dentro dos olhos. A brisa marítima salga-me a boca, os lábios, a pele toda que se arrepia neste encontro de séculos.

Por dentro dos olhos fechados, desenham-se as linhas do contorno escuro e familiar da janela da casa de uma outra Ana, velha de muitos séculos. É o mesmo mar, assim como este, mas é também outro, e assim são as coisas, uma junto das demais, todas iguais e diferentes, a possibilidade infinita da experiência humana, que é tudo e é tão pouco ao mesmo tempo. Somos certamente eternos naqueles que nos olham dos outros lados das existências. A Ana a quem devo o nome que tenho olha-me do outro lado deste mar, desta janela, deste tempo capturado numa linha de horizonte líquido.

É por isso, talvez, que é tão difícil voltar e tão difícil seria igualmente ficar. Guardo-me toda por dentro dessa impossibilidade, para senti-la tão junto a mim que faça dela presença, nela me aninhe e nela encontre conforto e sossego. As águas, enquanto isso, passam sobre mim em vagas quentes e macias.


(O mar da imagem é o que se avistava do Cabo da Roca, em Portugal, no fim de fevereiro deste ano.)


31/03/2023

À porta da casa


Eis-me de volta a Casa. Volto a ocupar esta Casa do Vento, onde a minha alma aprendeu, e por onde sabe cantar e gesticular e gritar. A plenos pulmões, como deve ser. A boa educação é por vezes muito falha, assim como as boas intenções, por melhores que pareçam e até o sejam. A algumas coisas, apenas o grito e o gesto se dão como verdades.

E assim, estou de volta. Quem me abre, ou reabre, as portas desta casa, é esta porta. Esta porta como todas um lugar por onde se atravessa, uma passagem, um lugar por onde se deságua.

Por esta porta específica, feita de tijolo e ferro, passam os meus filhos e aqueles a quem amam. Nem todos, mas os que este espaço ocupam. Atravessam-na, dia após dia, talvez sem reparar que o fazem, e que o seu passar ficou preso na base da minha retina. Assim como há um fora e um dentro, há um antes e um depois. E depois que se atravessa uma destas portas, que se resguardam e se agarram a nós tão cheias de sentidos, não se sai igual do outro lado. Nem é preciso tentar: os espelhos refletem outra pessoa, as ruas abrem-se a outra forma de passos, pode parecer que se é a mesma - mas não se é. A porta foi atravessada. A viagem foi feita. 

É preciso, passadas experiências assim, saboreá-las. Devagar e ao longo dos dias. Degluti-las. Extrair-lhes sentido e sumo, sem no entanto as esgotar e delas abusar. As experiências também têm vida própria, e merecem descanso tanto quanto preparação. Às vezes, o silêncio a seu lado é a melhor conversa.

É sobre este retorno que a minha Casa do Vento constrói os seus novos alicerces, sabor e pertença de imagens que vejo e sinto e cheiro diante de mim embora vivam já no passado. Pertença, eis a palavra chave.

É esta uma nova viagem dentro da viagem já feita, desta vez por dentro, desta vez pelas águas límpidas das veias. A quem a quiser acompanhar, eu dou as boas vindas. Que seja uma viagem a muitas mãos, tantas quantas me caibam na memória. 

25/10/2021

Uma nova casa!

Trago novidades!
Um site, contaram-me, é como a própria casa. As palavras são da minha amiga Ana Alpande. Com essa inspiração preciosa, preparei cada pedacinho desta casa, para receber os ilustres convidados, visitas que me agradam tanto quanto na casa de tijolo e telha que habito.
Agora, habito também esta casa-site, com a vantagem de poder levá-la aonde queira, e poder convidar e receber as visitas de qualquer parte, em qualquer tempo. Venham de longe ou de perto, o acolhimento é quente e sincero.
Este site é teu também, e o meu maior desejo é que possas visitá-lo e acomodar-te como se estivesses na tua própria casa. Ele também quer ser a tua casa - quer que possas andar por ele à vontade, à procura de novos cantos onde descansar, janelas por onde a vista se alongue em direção ao infinito, lugares onde te possas sentar a pensar sobre as coisas a que mais dás importância na tua vida. Se quiseres que me sente contigo e contigo olhe para essa distância no tempo, será um prazer - é para isso que as leituras de Tarot servem, afinal, para olharmos ao longe em boa companhia.
Ao pensar no dia do seu lançamento, pensei que gostaria de abrir a casa com uma festa, uma celebração - e a Carta da Semana, esse instrumento de conhecer melhor o caminho que se pisa, ofereceu-me essa alegria e esse contentamento, logo hoje, segunda-feira, dia de São Francisco, esse ser que canta e dança dentro do nosso coração.
Assim, cá estamos - usa, serve-te, aninha-te junto a este casa que preparamos para ti.
A concepção do site, o logo, as fotografias e sua escolha, os pequenos detalhes, e os grandes também - tudo é fruto do trabalho atento e comprometido do querido amigo e parceiro Gui Maia, da WolfPack Artwork.
Agora, vem! Nem é preciso bater à porta: já a deixamos aberta de par em par para entrares!
Com alegria,
Ana Vieira Pereira

29/07/2021

Ser equânime


Uma Gira é um lugar de aprendizado, tanto quanto qualquer outro. Se não se está atento, perde-se muito. O tipo de atenção pode acontecer de várias formas, não há receita - a Umbanda pede a nossa entrega - nossa, de cada um, de acordo com seu jeito, forma, maneira. 

Há uma coisa, no entanto, que ouvimos com frequência: "firma a cabeça, filha". Firmar a cabeça é estar presente no agora, é exercitar o estar concentrado e com os pés bem assentados no chão; e, ao mesmo tempo, aberto ao inusitado, ao imponderável, à surpresa. Temos auxiliares para firmar a cabeça, e é Vó Chica que nos ensina: quem firma a cabeça é o fazer das mãos. Inativos, divagamos. Em atividade, laboriosos, as nossas mãos ensinam-nos através do tato, que é justamente um atributo que necessitamos praticar ao extremo: ter tato. O das mãos, que nos conduz também ao tato com o outro. Começa com aquela máxima batida: falar quando é para falar, calar quando é para calar.

Algumas vezes, sem dizer nada, os Guias nos mostram necessidades. Porém, se não houver atenção ao que nos deixam quando partem, e reflexão sobre isso, deixamos de aproveitar a sabedoria que nos trazem, sabedoria que inclui como viver os dias que nos toca viver.

O ritmo do trabalho grupal, por exemplo. A maneira como trabalhamos em nossa própria qualidade de presença. O quanto seguimos orientações sem discuti-las, o quanto aceitamos uma direção sem lhe procurar variantes. O quanto somos capazes de compreender uma coisa por detrás da sua aparência. O quanto treinamos essas qualidades, essas atitudes. Tudo isso, diz Vó Chica, prepara-nos para agir de forma imediata. Aquilo de que necessitamos quando somos chamados a ações imediatas. É preciso preparar-se.

Sr. Pena Vermelha pediu-me, há dias, que aprendesse sobre equanimidade. Disse ele ser qualidade indispensável ao trato com o outro. "Você precisa ser equânime". Deixo essa palavra guardada, alegre pelo tesouro que com certeza reveste. Costumam ser isso, essas palavras oferecidas sem pedir nada em retorno, a não ser entrega, presença e confiança plenas. Coisas que, afinal, beneficiam sobretudo a mim mesma, creio.

O ser de qualidade equânime é um ser benevolente, de espírito moderado - moderado porque tem medida. Deriva do latim aeques animus. Animus-animi, bem declinado, responde por um sem fim de qualidades - energia, coragem, audácia, vontade, desejo, inclinação, intenção, paixão, espírito. Resvalamos aqui sem dificuldade para  Anima-animae - as qualidades de sopro, psique, vida, animação, vento, respiração, alma. A sua derivação mais antiga alcança o indo-europeu, como -ane, o passo para respirar. Pneuma, em grego, que significa alma, tem relação estreita com nossos pulmões, e o mesmo se dá com a palavra hebraica para alma, neshmáh, que deriva de linshom, que por sua vez significa respirar. O sopro e a respiração, animam a alma. E a coragem e a audácia incendeiam o espírito. É preciso respirar, e se deixar incendiar.

E é deste último que a ação com o outro deve estar permeada. Com animo praesenti (presença de espírito) e ex animo (de coração). Equânime é o espírito que se dirige ao outro com a mesma igualdade de ânimo: reto, justo, e sem alteração.

A alma respira, o espírito permeia. Cada Gira, cada Guia, búzios desabrochados cheios de sabedoria. Abertos, inspiram. Fechados, expiram. Vó Chica sopra os búzios antes de jogá-los (acho até que lhes segreda algumas palavras, mas tão baixo que não escuto, dá-lhes alma talvez) e o Espírito manifesta-se através deles, fazendo o ar circular em volta, trazendo mensagens, levando pedidos. Há muito Mistério envolvido, e só a equanimidade traz respostas. A firmeza dos nossos pensamentos nos coloca em equilíbrio, de forma ativa e aberta. Alma e espírito conversam, ao lado desses banquinhos onde os Guias se sentam e impregnam nossos seres com sua atmosfera pacífica e sábia.

11/07/2021

Zé do Laço em noite de Lua Cheia

Zé do Laço, boiadeiro forte e formoso, gosta de noite estrelada. Alumiado pela Lua Cheia, retesa o laço em sua mão e despende golpes certeiros no pasto seco. Grita "Ê boi!" e nada lhe escapa - nem o novilho querendo furar o cerco, nem o boi velho olhando com tristeza o chão onde não se pode deitar. Acorda a boiada e chama os demais boiadeiros - "Vam'bora aproveitar a noite, que a Lua Cheia abençoe e o céu seja o teto de nossas cabeças!"

É noite de São João, também. E Zé do Laço, que nem católico se declara, aprecia os folguedos, gosta da fogueira, entra na roda com assobios e gritos de alegria. Podem parecer de outra feição, mas é de pura alegria. Chega perto dos músicos, gosta do galope que escuta. Seus olhos claros gostam do que é puro, do que é verdadeiro, do que se levanta da mesma forma que se deita. Subterfúgios não fazem parte da sua cartilha.

E se afasta. Dois, três, vinte passos. Corridos e desgalopados, em marcha a ré, vendo sem olhos os tocos de que desvia. Vê o todo, percebe o desalinho de um lado, o encantamento do outro, o despreparo logo ali, a entrega, a presença, a alegria, o pouco ou muito entendimento - com o coração, não com os olhos. "E não é visão", segreda-me ele baixinho. "Isso que tu vês não é visão, é sensação de outro mundo encostando neste daqui. Aprende a ver desse jeito para escapares das mentiras deste mundo. São muitas, e andam te caçando. Reverte teus passos, filha minha, endireita essas costas e dá rédea pra tua cavalgadura. Tem léguas de caminho pela frente, e a escolha tá feita: não é agora que ninguém vai arrepiar caminho. Se botas o olho no atrás, o que vais ver é o atraso em que te ficaste, e ressentir de novo com isso, e perder o alinhamento dos passos."

E repentino se cala, e grita"Ê boi", e corre pra roda, pra apertar o menino que quer se desalinhar na moça. "Fique quieto, seu moço, que ainda não está na sua hora. Cuide de sua montaria, olhe bem o tamanho dos passos: tu tá é querendo dar uns galopes com pernas fracas de criança imberbe. Sossegue, menino, sossegue."

Olha de longe um outro (eu posso vê-lo daqui, seus olhos parecem faíscas), e ao mesmo me pergunto se ainda me dirá alguma coisa, se tem uma coisa que busco sempre é instrução. Foi só pensar. Ele me olha, de um lugar fundo que está dentro de mim mesma, e numa volta rápida de olhos que me desconcerta - o tempo todo, ele me vigia?

"Ora veja. Instrução é todo dia, cada madrugada que tu olha pro céu e vê esse tanto de estrela, que alumia sem se aborrecer com quem aproveita sua luz. Vê tu, filha minha, se as estrelas se ocupassem de quem as aproveita, estavam todas era tristonhas. O importante é brilhar no seu lugar, quieta e fazendo sua parte. De longe, o que nós vemos é a constelação. De dentro dela, é quase nada que se vê. Quando se cavalgam estrelas, é preciso confiar que tem uma porção delas cavalgando junto. Senão, é sentir solidão, ficar acabrunhado, entristecido. E pra quê? Pra descobrir (e isso é só muito mais tarde, na hora do pó chegar) que havia muito mais luz na estrela pequena do que no lampião que ardia em cima da mesa. Sossega tu também, e faz teu trabalho."

Seu Zé do Laço só gosta de trabalhar debaixo de céu. Não entra debaixo de teto nem pra comer, nem pra dormir, nem pra dançar, que é graça que adora. Se lhe dão coberto, desaparece. Aliás, nem aparece. Sua existência é livre e aberta, e é para que saibamos do que se trata que ele vem assim, gritando pra sua boiada, que desce os morros, atravessa os rios, galopa as veredas verdes e abertas. Chega de todo lado, a boiada, e é tanta, mas tanta, que cansa os olhos querer contar as cabeças. De longe, quem vê, é só poeira suspensa no ar. Só um alevante de chão fino que colore o horizonte de laranja. Cor de terra é cor de boiadeiro, e o berrante que ainda não se escuta já se anuncia no longe.

Zé do Laço afirma o cabo e faz relampejar outra vez o couro no chão. Só escuta quem ele permite, e é faísca e relâmpago ao mesmo tempo, o estampido de quem gosta de cortar o mal no primeiro golpe, assim, na raiz, fundo e preciso. Assim se vai, dando passos atrás pra que ninguém lhe ameace as costas. Bate os pés no chão poeirento e manda a tropa subir: pras alturas, minha gente, que os bois já deram dianteira!".


Foto: Beatriz Castilho

24/05/2021

Uru'ku

São muitas as experiências que a vida de Terreiro nos oferece. O Caboclo Pena Vermelha, por exemplo, ao chegar em terra, assinala seus filhos com a tinta do urucum. Como um velho hábito, torce os pequenos casulos e deixa cair na palma da mão esquerda um punhado de sementes. Separa as mais secas das tenras, úmidas e bem vermelhas, e usa estas últimas. Esmaga-as com a outra mão, até esquentar, e com dois dedos ativa o centro da testa de cada um dos presentes. Há uma força que apenas se entrevê, e um significado que apenas se imagina.

Uru'ku, em tupi-guarani, significa vermelho, e essa é a cor deste Caboclo altivo, Caboclo de Xangô. Não costuma demorar-se em explicações, este amigo, mas está atento aos sinais do que deve fazer e raramente hesita ou suspende um passo iniciado. Com ele, a cada dia, aprende-se algo a mais sobre a própria e verdadeira estatura, o que nos diminui e o que nos faz crescer. Paciente no meio da mata, parece esperar há décadas. Não sorri nem entristece, o seu olhar sereno não se altera, nem no perto, nem no longe. O urucum, sempre a seu lado, confere a força e também o poder de limpeza, de aquecimento e de queima abrupta e ardente. 

Vermelho é a cor do dia de ontem, dia do Divino, dia de festa nas terras açorianas dos meus avós e da minha mãe. Fartura e fraternidade nas mesas postas ao longo das ruas, cada Império coroado, todas as barrigas saciadas. Uma das coisas que mais aquece a minha alma umbandista é poder viver quem fui e quem sou num mesmo tempo, sem precisar deixar pedaços meus para trás. O fogo de Xangô brilha nas fogueiras dos meus avós que jamais ouviram esse seu nome e, quando o acendo, como ontem cedo antes que o Sol do dia de Pentecostes nascesse, saúdo todos os dons que Deus faz brilhar na Terra, em cada um de nós, em cada criatura, cada canto, cada planta, cada forma de vida.

Há gestos dos Guias Espirituais que foram feitos para reverberar ao longo de anos. Eu demoro-me em muitos deles, e me surpreendo, ano a ano, com a forma multifacetada com que permitem que olhemos para o mundo e para nós mesmos. Não sei se ando devagar nessas observações, se me demoro tempo demais, se me perco entre tantas coisas. Talvez pudesse tudo ser mais rápido. Mas Vó Chica, que é quem me coloca o urucum diante dos olhos para que o escreva, balança a cabeça achando graça. Ela já me disse, e eu já entendi, mas esqueço: o Divino, esse Ser de Elevado Espírito que desce em nossa direção, dá-nos uma certeza: a de que existem dons que não pertencem ao mundo terreno, mas ao mundo espiritual. Dons do Espírito que nos auxiliam, nessa caminhada aqui na Terra, a não termos a pretensão de que tudo podemos, somos e fazemos - basicamente porque (assim entendo eu) não conseguimos ter completa percepção do que seja de fato a nossa essência. Teríamos menos liberdade para ir e vir, errar e acertar, se assim fosse.

Por isso, ao nascer deste lado, esquecemos o lado de lá. E às vezes, quando em terra, o Caboclo Pena Vermelha tinge-nos o centro da testa de vermelho, esse vermelho do urucum que na árvore diante da janela, num determinado horário do outono, brilha como se tivesse brilho dentro. O brilho é esse mesmo da foto ali acima - não tem retoque nem filtro, é desse jeito mesmo que se mostra, por pequenos minutos a cada dia - um milagre que custo a acreditar, a cada dia que vejo.

Urucum é uma erva de limpeza e regeneração. Não é apenas Xangô que a impregna: Oxumaré e Egunitá também, seus mil frutos em cada casulo, sua cor vermelho fogo. Não deve ser coincidência que logo hoje, dia 24 de maio, seja dia de Santa Sara Kali, que vem a ser a forma sincretizada de Egunitá, Orixá de Umbanda, que é fogo também - fogo abrasador que arde, faz tremer, sacode, purifica. Como em tudo, é preciso haver fundamento, para que existam bases sobre as quais possamos avançar em segurança. Nos banhos, é bom saber o que invocamos em nosso benefício ou benefício de outros. Urucum, além de fazer arder e sacudir, também fortalece, endurece e mantém, e aqui vemos Xangô assomar por trás da matéria vegetal. E ainda liga, dissolve e derrete, sob o olhar e cuidados de Oxumaré. As ervas são um mundo sem fim de aprendizado e possibilidades. Nelas, o Divino torna-se cor, cheiro, umidade, secura, calor, frio, e se abrirmos bem os olhos da alma, veremos mais do que as aparências nos mostram, e nem sempre enganam.



31/01/2021

As sete tias de Manuela e o boldo do quintal



Manuela (nome fictício, porque a história é, até certo ponto, real) vive há pouco tempo no lugar em que está. Pergunta-se das suas raízes. Creio, digo-lhe, que talvez sejam aéreas, facilmente transportáveis de um canto a outro, e por isso mude tanto e se transplante com tanto à vontade. Se sempre será assim, difícil dizer. Manuela gosta de desafios (ela admite), de resolver o problema que encontrou (ou que a chamou?) e dar-se por satisfeita quando percebe que resolvido está. É ela mesma quem conta:

- Minhas tias tricotavam no outono as mantas do inverno. Eram sete, essas minhas tias, sentadas lado a lado, formando uma concha debaixo das parreiras de uva do quintal da minha avó. Minha mãe sentava-me ao lado dela. Eu era bem pequena, mas se fecho os olhos lembro-me como se estivesse lá. Entregava-me o cesto com a pilha de novelos, um de cada cor, bolas trançadas num emaranhado agradável que me encantava e aquecia as mãos. Eu tinha pra menos de 6 anos. Elas tricotavam sem parar, longas línguas de tecido escorregando de seus regaços em cascatas mornas. Tia Alice era quem melhor e mais rápido tricotava, os olhos miúdos sorrindo o tempo todo. Tricotava sem nem olhar o que as mãos faziam. A minha tarefa era desfazer os nós dos novelos. Passava o tempo fazendo e desfazendo novelos. Ao primeiro nó, procurava a ponta com os dedos, enquanto mantinha os ouvidos atentos às palavras dessas tias. Não eram muitas. De vez em quando era um "Deus nos acompanhe", de outra um "Orai por nós", daqui a pouco um suspirado "Que em vida nos tenha". Ficou essa coisa de tecer-se a vida do espírito nos meus ouvidos.

Mas agora o que Manuela quer é autonomia - e de presente recebe mais duas palavras: independência e liberdade. É um rosário, eu quase lhe digo, um rosário feito de três contas, agrupadas sempre nessa mesma ordem: a autonomia, logo depois a independência, e por fim a liberdade. Uma reza. Um terço só de três. Cosidas umas às outras, como os três pontos que tia Marina cantava ao tricotar: "Foi um, foi dois, foi três. Foi um, foi dois, foi três".

Havia plantas nesse quintal - Manuela nem precisa contar, adivinha-se. De um lado mamão, do outro mamona. Parecidos, mas de intensidade diferente. Quando o problema é grande, mamona. Quando é mais ou menos, mamão. De outra vez, conto da diferença. Agora, os meus olhos já se detiveram no boldo.

Tão comum, o boldo. Tanto, que se encontra em qualquer lugar, e qualquer pessoa sabe que é bom para os males do fígado.

Ewé Bàbá chama-se o boldo em yoruba: a erva do Pai. Tão fundamental nessa cultura que se espalhou por todo o mundo pela presença africana. O mundo é mais africano que qualquer outra coisa, nós é que não sabemos reconhecê-lo, e perceber o quanto é comum e está em nós todos, nos deixando mais Humanos só por ser.

Há muitos boldos, na verdade. Todos têm basicamente as mesmas propriedades e servem aos mesmos fins. E todos guardam em si histórias de luta e resistência, conhecimentos seculares da época em que o óbvio era saber que espírito e matéria são indivisíveis porque antes de sermos matéria (e depois também) somos espírito. Boldo também é herança Mapuche - esse povo antigo e sábio das regiões medianas da Argentina e do Chile. Mais de 5 séculos antes de Cristo já lá estavam, muitas centenas de milhares quando a Coroa Espanhola sangrou essas terras. Boldo deriva de "folo" - a maneira com que os mapuches chamam o boldo que cresce espontâneo e livre nos Andes. A língua Mapuche chama-se Mapudungun - um primor linguístico que significa "o som da terra". Quando um Mapuche fala a sua língua, fala o som da terra. 

O boldo, ou malva santa, como é chamado em rincões do Brasil, tem aliás uma infinitude de nomes. Um deles é tapete-de-Oxalá (Ewé Bàbá, lembra?). Como esse Orixá do panteão yorubano, o boldo traz clareza ao raciocínio (o fígado é um cérebro potente, enevoado turva nossos pensamentos), expande a consciência (justamente porque promove desobstruções dos canais densos e dos sutis também), equilibra o ego (o gosto amargo não agrada a esse nosso companheiro eterno) e, por fim, alimenta o nosso chacra coronário, a morada do nosso contato com as realidades não palpáveis.

Escutar o som da terra, como fazem os Mapuches quando falam, equivale e em muito à meia lua das sete tias de Manuela. Equivale a essa busca premente por autonomia - porque sem ela dificilmente se consegue independência, e sem esta a liberdade é ilusória. É preciso raciocínio claro, equilíbrio das vontades, expandir a consciência para saber mais do que se sabe. Para ser autônomo é preciso estar fortalecido, é preciso eliminar obstruções, é preciso animar a alma, é preciso aquecer o coração. O pé de boldo de Tia Marina sussurrava tudo isso à roda das sete tias.

As coisas mais importantes costumam ser as mais simples. Uma folha de boldo espremida num copo de água, e deixando ali marinar durante um tempo, dá ao fígado a limpeza que ele precisa depois de excessos - não só de álcool ou de comidas fartas em gorduras, mas também de discussões azedas, de desgastes dos afetos, de cansaço psíquico, de muito tempo pensando ou em frente às telas dos computadores, nesta vida online que nos acometeu. Auxilia a digestão justamente porque dá um alívio ao fígado e à vesícula biliar, estimulando as suas funções. Um escalda-pés de boldo (bastam umas 3 ou 5 folhas em 1l de água fervente, com cuidado para não se queimar e para não tomar friagem depois) auxilia as insônias. Um banho, feito de pescoço para baixo ou de coroa (ou seja, banhando também o chacra coronário, a nossa Coroa Espiritual), tranquiliza, fortalece a fé, a coragem, a determinação, tudo aquilo que o fígado, com seus processos purificadores, alicerça em nossas vísceras.

Esqueci-me de dizer a Manuela de que chá e banho e escalda-pés de boldo farão bem nestes momentos de mudança, de transformação, de transplante de raízes. Porque quando mudamos, no momento exato da mudança, de erguer um pé quando mal acabamos de colocar o outro no chão - é preciso mente clara e coração em paz. É o que o boldo, e as bênçãos de Pai Oxalá, nos oferece, e pode nos servir a todos, enquanto aguardamos pelo lugar para onde vamos.

19/01/2021

Divino amargo

 


    Vó Chica combina com o silêncio da mata nas manhãs de chuva. A meio da alvorada, aponta-me as hastes da carqueja por trás das árvores. Vê como crescem como fatias de luz por entre os troncos, diz-me ao ouvido. Vó Chica gosta de carqueja, e estas terras também. Como se houvesse se levantado um véu, vejo-as brilhar por todo lado. Amarga, a carqueja, só se em excesso, e, mesmo quando amarga, é preciso bebê-la. O fígado agradece, o intestino e os rins também. A carqueja dissolve o que de mais profundo se agarra à nossa alma: o medo.

    Sigo Vó Chica até o lugar onde quer sua pequena casa. Posso andar de olhos fechados, de tão devagar que avança. Não sei se olha tudo para que nada se perca, ou se anda devagar para que eu não corra e veja o que na velocidade não poderia (não costumo) perceber. Como aquele pé de guiné, que sobrevive a duras penas, ainda à espera de lhe ser permitido o costume da sombra. Ou ali ao lado, quase imperceptível, a alfazema fazendo milagre, rodeada de coquinhos pelos quatro lados. Fico contente de sentar-me aqui, perto da sua futura casa. Vó Chica ganhou mais do que um banquinho - assim posso sentar-me em um e com os olhos fechados chamar essa amiga querida de tantos e tantos anos, e ela quem sabe, se eu tiver sorte e motivos, se sentar também.

    Vó Chica tem o cheiro e o gesto daqueles que dissolvem, transmutam e reestruturam o que precisa ser transformado. Está de um lado e do outro da vida, encantada guardiã das passagens, e por isso nos leva de um lado para o outro, e desse outro para mais um. Ensina, acalma, compreende, protege e sorri, sempre doce, mas também, nestes últimos dias, urgente, incisiva e prática.

    "Filha, o tempo já está correndo, você percebe? Se ainda não foi, é preciso aprender a soltar tudo, aprender a encontrar a força da vida em qualquer pedaço de chão, em qualquer lugar de coração, em qualquer forma, espaço, tempo. Se há perdão a pedir, é preciso ser pedido agora, se há agradecimento a fazer, é preciso que seja feito agora, neste instante. E não é na sua cabeça, filha - é usando o sopro divino que nasce na palavra pronunciada, que chega até o ouvido do outro e de lá é carregada até o coração. Não há outro caminho, não se engane. Não diminua, filha, o que tem tamanho. Aceite o que é, e ande, em passos retos evitando as curvas e os rodeios. Não perca tempo, e ajude a quem puder a que também não o perca". Vó Chica quer muito ser escutada, estes últimos tempos.    

    A carqueja em minhas mãos já nasce retorcida, abrindo-se em dimensões de busca de luz, barbatanas nadando no ar líquido. Pouco se importa de não ser folha, nem flor, nem caule, nem nada. Busca imperiosa a força da luz solar, alarga-se no espaço, sobe através dos troncos, entrelaça-se entre eles, diferente de suas irmãs que nascem nos pastos e à beira dos caminhos. Estas hastes, que Vó Chica coloca em minhas mãos, e semeia nos alegres jardins de flores, precisa de esforço.

    Oxóssi, Iansã e Ogum irradiam com suas forças a carqueja, e com ela as nossas forças vitais, dissolvendo o desgaste psíquico. Aprendo isso nos livros, enquanto sinto Vó Chica me estimulando a curiosidade, folheando através do meus dedos, guiando meu tato, meus olhos, meu amor pelas coisas. Nos confins de tudo, quando me sento perdida à mesa que me traz respostas, Vó Chica está diante de mim. Lê meus pensamentos, sabe meus desejos, conduz-me pelos férteis campos da nossa relação, com uma rapidez inusitada que contrasta com o peso da maioria dos seus passos. Bom humor e alegria - estímulos que a carqueja inspira dentro de nós, com as suas flores de outono, o seu amargor de acordo com a vida. Acorda, parece dizer, e vai viver - essa vida não programada, não desejada, não colorida pelas cores que imaginaste, mas ainda assim a vida, e vida será enquanto for preciso.

    Tomo um banho de carqueja (preciso experimentar sua força), e porque não quero sucumbir a medo algum, misturo fedegoso e folhas de laranjeira, faço gargarejos e bebo o chá. Limpa a garganta e acomoda os sentimentos num lugar correto e renovado. Vó Chica desaparece por entre as volutas de vapor. Como que a desejar-me boa noite - "dorme bem e acorda com os olhos limpos e a alma corajosa".

18/11/2020

Para Tarot, leveza

Como Jodorowsky, também eu acredito não existirem perguntas vãs.

Às voltas com a preparação dos módulos do curso de Tarot que em breve será lançado, abro a minha coleção de perguntas sobre ele, uma longa lista alimentada pelas que me fazem e pelas que eu própria tenho, a respeito desse instrumento tão especial. É dessas perguntas que o curso vem nascendo vigoroso, logo após uma parte dedicada aos Arcanos, aos naipes, aos elementos e à combinatória narrativa, que é a grande chave nas mãos de qualquer tarólogo.

Para ler cartas é preciso, antes de qualquer coisa, leveza. Leveza na alma, para que nada se pegue; leveza nos pensamentos, para poder esvaziá-los facilmente; leveza no coração, para poder acolher quem chegue, com a pergunta que traga.

Às vezes, a pergunta esconde-se. A Pergunta. Chega fantasiada de coisa nenhuma, de balaio sem graça recheado de nadas. Anuncia-se com uma qualquer trivialidade, uma qualquer bobagem que parece não merecer nenhuma importância. Quer saber se o futuro vai sorrir. Se o amor vai chegar. Nem é ainda o Amor. É um amor qualquer que ajude a passar os dias, a torná-los mais divertidos, a não precisar suportar o silêncio terrível que se abate num fim de domingo numa rua quieta de uma cidade semiadormecida.

Você viu? Você viu como a pergunta começou a ficar mais séria? Como revela mais cores? Como se desnuda, diante das cartas, sem sequer perceber que aos poucos a muralha vai se desfazendo como pó e os muros de guarda vão perdendo firmeza?

É preciso, numa leitura de Tarot, deixar o outro leve. À vontade. Confortável. É preciso que o outro sinta que pode perguntar qualquer coisa, dizer qualquer coisa, que será acolhido, que será confortado – e que até sairá da consulta com uma resposta (eu prefiro achar que são estímulos, mas as pessoas gostam de falar em respostas) para uma pergunta que sequer sabia que tinha.

Esse é o grande trunfo destas cartas que aprendemos a amar. Espelhos precisos das almas que temos, mostram detalhes em perspectivas que sequer imaginávamos seriam possíveis. “Mas essa sou eu?”, pergunta-se, de olhos muitos abertos, a jovem diante da cientista persistente e precisa que a olha no espelho diante de si. “Poderá essa pessoa ser…?”, surpreende-se a dona de casa que pensava ter suspeitas sobre o marido, e descobre ter mundos a descobrir dentro de si, muito mais relevantes que a eventual aventura do cônjuge.

Mas é preciso leveza. Para não julgar. Para não se intrometer. Para permitir que cada um tenha a pergunta que quiser e busque o que entende dever buscar. A função do Tarot é abrir mundos, mundos internos dentro das perguntas mais inocentes.

Ao longo da minha vida, a literatura foi um manancial de inspiração, oxigênio e aprendizado. Para ser um bom tarólogo, assim como para ser um bom escritor, é preciso ler. Ler sobretudo aqueles que se dedicam a mergulhar na psique humana, e a revelá-la em Arte, essa matéria que nos humaniza até nos tempos mais difíceis e turbulentos. Lendo, aprendi a apreciar a variedade das perguntas humanas – porque sei que é das perguntas que nascem os diálogos. Cada vez que alguém se senta diante de mim para uma consulta de Tarot, meu coração se alegra porque sei que virão perguntas. E com as perguntas virão diálogos, e com os diálogos crescemos todos, porque nutrem em nós o interesse profundo e genuíno pelo que existe de Humano em cada um de nós.

E por isso não existem perguntas vãs, aprendi há muitos anos com Jodorowsky. Porque todas as perguntas carregam em si mistérios e nos levam ao encontro de nós mesmos, dos outros, e do futuro que todos podemos criar, juntos.

30/09/2020

Lua Cheia no Terreiro


Ao longo dos meses deste memorável ano de 2020, temos tido a oportunidade de olhar para os ciclos no céu. A constante sucessão entre luz e sombra, dia e noite, tem acompanhado as nossas reflexões e nossos olhos têm se habituado a ler algumas coisas nessa transição.

E logo (amanhã!), mais uma vez, será Lua Cheia. Uma Lua Cheia ariana, primeiro signo da roda zodiacal. Áries, junto com seu signo complementar, Libra, fala-nos de relacionamentos. Eu e o outro. Eu e os outros. É o grande eixo astrológico dos relacionamentos. Traz impulso quando bem ordenado, estagnação quando não.

A luz branca da Lua Cheia diz-nos, mês a mês, que é tempo de prestar atenção às revelações. E as revelações desta Luz Cheia estão, em muito, ligadas à maneira como vivemos o nosso eu dentro do outro e que lugar ocupa o outro dentro de nós. Num jogo de luz e sombra, é preciso encontrar equilíbrio. E nestes tempos de passeio longo de Marte também por terras de Áries, é preciso também forjar a coragem de ver o que precisa ser visto.

Como um Terreiro é uma comunidade de almas, é preciso pensar nisso, observar a si mesmo na sua relação com o outro. O espaço do outro, o tempo do outro, o lugar do outro, a responsabilidade do outro - e como tudo isso vive, age e reverbera dentro de mim.

Talvez seja difícil a esta Luz Cheia em Áries comunicar-se, talvez tenhamos dificuldade em sair de nossos próprios casulos para contar daquilo que necessitamos. O arquétipo ariano não tem essa facilidade. E talvez realmente não devamos. Talvez o melhor seja olhar para o espelho com coragem, em silêncio e no à vontade que só a solidão propicia. Fácil? Talvez não. Mas certamente produtivo.

Temos recursos, construídos ao longo de meses, aos quais nos entregamos em pura confiança nas orientações e instruções que recebemos do mundo espiritual. Aprendemos a cantar. Aprendemos a rezar. Aprendemos a fazer silêncio. Aprendemos a esperar. Aprendemos a respeitar a obediência e a disciplina. Aprendemos o poder do ritmo. Esses aprendizados, hoje, são ouro ouro em nossas mãos.

Nesta Lua, as nossas fibras poderão ser estiradas ao máximo. Poderemos ter a sensação de não suportar. De não querer mais. Poderemos querer desistir. Poderemos estar pressentindo as distensões que ainda nos aguardam.

Mas algo, de dentro do aprendizado feito, gritará dentro de nós e dirá resiste. Suporta. Firma teus pés no chão que tu mesmo plantaste. Não recues.

Nestes tempos de impossibilidade de planos, de perspectivas turvas, temos as nossas mãos para trabalhar por nós - e pelos outros, não nos esqueçamos dos outros! Temos os nossos corações para cultivarmos a elevação dos pensamentos e dos sentimentos em direção à essência do que somos. Temos as nossas almas para desvendarmos mundos que ainda sequer imaginamos. 

Não nos deixemos vencer pela aparência dura e seca do mundo, não nos deixemos quebrar pela dureza e pela secura das palavras que ouvimos. Como tudo, também isso passará. E, quando o fizer, precisaremos de nós mesmos inteiros. Respiremos fundo e mantenhamos o passo. Nem retroceder, nem parar. Os dois pés avançam, dizem-nos os alegres e inocentes Erês - um de cada vez. O primeiro chama-se "reza". O segundo, "fica quieto". Aquietemos nossos corações e pratiquemos o olhar interno, para entendermos qual é o nosso lugar no fora e para que possamos lidar com nossos desconfortos e nossos despertencimentos.

11/09/2020

As coisas morredouras

Vó Chica pede-me silêncio ao chegar. Leva-me pela mão ao seu próprio silêncio, enquanto segue o caminho. Um bálsamo.

Há muitas energias ao redor neste momento, penso em voz baixa, nem todas compatíveis umas com as outras. Discriminar, e perceber o que são umas e o que são outras, e quais convêm a cada um, parece-me nunca ter sido tão importante. Vó Chica olha-me com os olhos apertados, querendo perceber se falo sério ou se brinco. Digo-lhe que é sério. E ela desfaz-se em risos. 

"Mas quando é que, filha, quando é que uma coisa dessas não foi importante? Quando foi que resistir aos acontecimentos e aceitar tudo aquilo que se mostra já não foi um portal que aumentasse a visão vossa?

Lembra, filha, que tudo o que se tem é esta vida, este dia, esta hora, este tempinho aqui mesmo que eu estou aqui e você também. E mesmo neste minuto agora tudo é novidade e permanência. E da mesma forma há dois lados em tudo: no corpo, na moeda, na noite, no dia. Quando está escuro você sabe que não está claro, e quando está claro você sabe que não está escuro. E você precisa saber escolher. É só assim a vida, não é?"

Rio, e agora é ela quem me olha séria. Espreme delicada uma folha de bálsamo entre seus dedos, e eu me concentro, para tentar entender o que as suas palavras simples querem me ensinar. "É preciso, filha", continua ela, "que você entenda que quando o rio é descido você não está subindo, e que se quiser subir vai precisar virar a direção. De outra forma, em vez de chegar à nascente, você vai é alcançar a foz. É da decisão interna de cada um, o rio que vai percorrer. E é dessa decisão que vai nascer a paisagem e o ensinamento que está à espera.

E tem mais uma coisa, filha. Não se perca no lamento do perdido, porque lamuriar o passado só cria confusão em seu pensamento, ele não vai mais saber o que é de ontem e o que é de hoje. E você é hoje, filha, você não é ontem. É isso que tem de discriminar. Depois da confusão, logo chegam a tristeza, o desânimo e a depressão, que é como vocês chamam a tudo isso junto. Tudo companhia da confusão do pensamento, que é quem semeia a escuridão, nascida da esperança e da compaixão quando são cegas. Só lamenta o passado e o mal feito quem se arrepende; e quem lamenta a falta que lhe faz o bem feito e tem saudade é porque não consegue se desinteressar por aquilo que fez.

E filha, tem mais uma coisa. Não é pra se dar tanta importância a si mesmo. Se você não fez, foi porque não pôde, porque foi incapaz, talvez fraca, talvez teimosa, talvez incompetente mesmo. Mas veja como o dia de hoje já está grávido de amanhã, veja como já tem as águas prontas pra despejar o novo dia nas mãos de quem faz nascer. O que você vai fazer, filha? Correr atrás das águas que já estão debaixo das pedras ou correr pra colher essas que estão prestes quase quase a escorrer?

Eu vou voltar, filha, uma e outra vez pra dizer a mesma coisa para vocês todos. De uma vez é de um jeito, de outra é de outra maneira, para que os ouvidos de vocês escutem e contem pro resto do ser de vocês. Veja você a importância que tem seu ouvido, que é o que faz tudo isso que eu digo caminhar para dentro do seu coração. Se você não escutar, não vai ouvir, e se não ouvir, não vai escutar. Porque é de dois movimentos que o entendimento do ouvido se faz, entende? Por isso que é difícil entender de primeira. E é melhor fechar os olhos, mesmo que dificulte a sua escritura, filha, porque com os olhos fechados você pode abrir melhor os olhos dos ouvidos, que são os que vão lhe mostrar os universos escondidos para dentro das estrelas."

Eu sorrio, pensando nas vezes sem conta que ela me pediu, nesses últimos tempos, para olhar as estrelas, assim que anoitece, antes de amanhecer, a meio da noite. Como se me ouvisse, logo me responde. "Você sabe porque falo pra você olhar as estrelas, filha? Para ver o tamanho do infinito e ter certeza que nunca, mas nunca mesmo, vai poder entender tudo isso, porque o que a filha tem de fazer, e todos os filhos têm de fazer igual, é perceber a sua desimportância, e esquecer-se de si mesmos, e entregar as suas almas para seu próprio espírito, que é uma coisa sem nome e sem explicação que não se interessa por nada, porque é todas as coisas ao mesmo tempo.

E assim é preciso que se respeitem os ciclos. Que se deitem e durmam para morrer um pouco todo dia e saber aos poucos o que é morrer quando for a hora. Igual o dia, igual a noite. Todos os universos estão escutando. Melhor parar de achar que as coisas estão nas mãos de vocês. Melhor que entreguem os frutos e o seu conduzir a quem guia e norteia os seus espíritos. O resto, filha, é coisa morredoura.

09/09/2020

Desinteresse


Quase sem pensar, ergo os olhos para ver a constelação de Escorpião. Vó Chica gosta quando olho o céu. Sei tão pouco, digo-lhe dentro de mim, e consigo aprender tão lentamente estas coisas das estrelas. Ela ri, e me aponta com seus olhos sempre úmidos a caneta e o papel. 

Demoro-me ainda, porque esse olhar cheio de água me intriga e me conforta. Por que tanta água, minha mãe?, pergunto-lhe. Ela ri-se, como sempre faz: “Preferias que tivesse olhos secos e duros, filha? Não precisa interessar pelas águas que limpam meus olhos, eu mesma prefiro assim, desse jeito, os olhos molhados para a terra do coração não secar também”.

Vó Chica tem nos falado do desinteresse. Pensamos que é bom o interesse pelas coisas, pelos outros, mas ela diz que não. Diz que o interesse é quem desenvolve em nós a posse, o ciúme, o desejo, a ânsia, a querência das coisas que não são precisas. Interesse é “estar entre”. Podemos nos sentir importantes, ou que estamos “fazendo a diferença”, quando nos interessamos por alguma coisa ou por alguém, mas não estamos em nós, “estamos entre”. Já quando nos movemos nas trilhas da ação desinteressada, aprendemos as lições da neutralidade, da imparcialidade e do afeto genuíno, que deixa cada coisa e cada pessoa ser aquilo que deve, quando deve, como deve.

Desinteresse, na voz de Vó Chica, é trilhar o nosso caminho fazendo aquilo que podemos fazer, sendo úteis, que é a bênção maior que podemos ter, abertos a qualquer tarefa.

Eu sei porque Vó Chica quer que olhe o céu. Porque os tempos de Urano estão sendo chegados, como ela diz, e nesses tempos o futuro, a coletividade, o conhecimento intuitivo, a sensação de pertencimento à Humanidade vão ser as mais preciosas qualidades.

E como esse é um tempo acelerado, Vó Chica pede calma e tranquilidade. Pede que estejamos atentos aos nossos movimentos, e que não nos angustiemos nem nos deixemos levar de imediato e sem controle por nada que possa nos suceder. Pede que estejamos conscientes de com quem dividimos o espaço que ocupamos. Que nos coliguemos com a Natureza à nossa volta, a reconheçamos e nos tornemos seus observadores. Não são necessárias técnicas ou teorias. Para a ligação que devemos cultivar não há regras nem caminhos prontos. É a ligação que nos ensinará e para ela precisamos apenas silenciar a nós mesmos e entrar em contato. Ouvir o vento, os pássaros, os barulhos das folhas e dos galhos; observarmos uma árvore, uma flor, um pequeno inseto. Um cão. Um gato. Um pássaro no afã de seu ninho. Perceber e deixar ir, sem cultivar interesse.

Vó Chica pede que desenvolvamos por tudo amor sem julgamento, sem dedução, sem a lógica do nosso pensamento usual. Não importa, ao Sol, o que pensemos dele, mas sim como nos comunicamos com ele, que luz ele desperta em nós. Não importa o que possamos dizer - diminuiríamos aquilo que recebemos, e que não cabe em nossas palavras. Até se perde. Transmutemos o que recebemos e ofereçamos onde quer que estejamos.

Vó Chica pede que nos nutramos de silêncio para podermos escutar melhor. Que controlemos a palavra, que não a desperdicemos e tenhamos cuidado com o que colocamos dentro do ouvido do outro. Ouvidos são seres desprotegidos, não têm portas que se fechem nem pálpebras que os cubram.

Vó Chica pede que cessemos as discussões conosco mesmos, e que cultivemos o silêncio interno. Será mais fácil diminuirmos o que dizemos ao outro, e assim não contribuiremos para a sua angústia e a sua ansiedade. Na maior parte das vezes, diz baixinho Vó Chica antes de se ir embora, o que cada um quer é escutar a própria voz, e ter certeza de que existe algo que possa dizer. Não é necessário. Não importa o que você já viveu, as experiências que teve – a sua valia é terem se transformado em aprendizado. A própria experiência, de um tempo gasto e passado, não serve aos desafios do outro neste tempo presente. O silêncio é a melhor oferta. Em silêncio expandimos o nosso interior e ouvimos melhor o  nosso guia interno. As vozes dentro de nós nos distraem de nós mesmos.

Vó Chica fecha os seus e os meus olhos e me converte em sono. Quando os abro, ela já se foi, e todas as velas se apagaram. Ainda assim, está claro.


04/09/2020

A letra do ensinamento

É noite escura. Lá fora só o piar de uns poucos pássaros. Aqui dentro, as velas. Quitéria, de manso, está à minha frente. Sei porque sinto, não porque vejo. Nem ergo a cabeça. Meu foco é o papel e minha bússola o lápis. Foi assim que ela disse, e assim é. Ela é a letra do ensinamento, nas suas frases curtas, nos seus silêncios que tento decifrar inutilmente, porque silêncio é silêncio – você já devia saber disso, ouço-a pensar. Entre os silêncios, as palavras. São estas.

“Se vos atracardes como barco que ama o cais, não saireis nunca do lugar onde permaneceis. O cais são as vossas certezas, as vossas abrangentes certezas.

Espírito de aventura chama-se entrega. Não é possível cristalizar a entrega. As coisas não são da maneira como gostais delas, mas da maneira como têm de ser. Quando antes entenderdes, menos sofrereis o desnecessário, e menos fareis os outros sofrerem com a vossa indecisão inquieta.

Há um plano para tudo, e tudo está em seus lugares. A teimosia de sempre querer sobrepor-se e saber mais e melhor é o oposto da humildade. Assim que se formar o pensamento “eu sei fazer melhor” o caminho afastou-se do humilde. A humildade treina-se no silêncio e na renúncia a interferir. Em ambos. Não em um, ou em outro. Nos dois, um após o outro.

A humildade treina-se no abdicar da vontade, no reconhecer a própria insuficiência, a própria irrelevância, e no deitar no chão do congá sabendo que não se é mais do que ele é.

Cuidar da própria vida, costurar o próprio processo e não interferir no do outro é indispensável à evolução coletiva.

Concentrai-vos na tarefa que tiverdes em mãos, executai-a de forma perfeita – o vosso perfeito é a vossa superação. Depois desintegrai o vosso fazer e assumi outra tarefa, em silêncio, como um ser anônimo de uma multidão – a dureza do vosso grão de areia precisa com urgência da pequenez da vossa gota d’água. São indissociáveis, mas só sabereis disso quando reconhecerdes a dureza e a pequenez em vossos atos e em cada um dos vossos órgãos.

Não interessa o que já fizestes ou deixastes de fazer. Interessa o que fareis agora. Sem interesse por reconhecimento, elogio ou agradecimento. Sede gratos por terdes o que fazer. É o suficiente. Agradecei as correções. Assumi o que podeis e o que não podeis. Não vos desculpeis por trás de desculpas vazias. Os tempos são por demais desafiadores, e cada um de vossos músculos deveria já estar sentindo isso e agindo de acordo.

Esta vida precisa valer a pena. O trem está de volta na estação, retrocedendo para que vós, que ainda estais parados no cais, possais dar o passo e subir. A limitação é aparência. O ser é feito de espírito.


25/03/2020

Quaresmeiras em flor


Vó Chica espreita por entre as árvores da mata. É um pequeno golpe de luz aqui, uma brisa repentina acolá. Brilham-lhe os olhos miúdos, e eu já sei que preciso fechar os meus para poder vê-la e ouvi-la na sua voz inconfundível. Começo a ficar dormente, quase como se com sono. Deixo-me embalar por esse verde fresco que traz à sua frente. O mesmo sorriso, as mesmas mãos gretadas macerando um galho pequeno de alfazema. Senta-se ao meu lado – eu no meu banquinho baixo, ela no tronco largo esverdeado de musgo.

“Filha, o mundo pára para que vocês possam ouvir. Para que possam decidir qual o reino onde querem entrar. Para poderem silenciar e escutar o outro lado, que equivale a dizer a própria alma.

Não vos desperdiceis em pequenas coisas que não têm qualquer sentido.

Observa a pequena formiga que se prepara e trabalha hoje, com interesse nenhum pelo dia de amanhã. Quando digo observa, quero dizer olha com atenção, com os olhos, e não com a imaginação. Usa para isso o tempo que tens à disposição.

Assim como a pequena quaresmeira em flor na porta do terreiro: vê como brilha sob o céu azul cor de manto. Como ela, todas as outras. Onde estiveres, eleva teus olhos ao céu. Se precisas de algo que permaneça no mesmo lugar, para dar-te ânimo, para dar-te confiança, detém-te nele, de dia e de noite.”

E Vó Chica faz um longo silêncio, quase uma eternidade onde durmo um sono profundo deitada numa esteira, debaixo desse céu que ela contempla.

“Acorda, filha, que estamos na Quaresma. A cada dia, a escolha. É preciso dizer a nós mesmos que é preciso parar, parar de querer o que não é preciso.

Usa o tempo, filha, porque não há, como nunca houve, nenhum a perder. A única diferença entre ontem e hoje é que agora vês o que não vias antes, e agora sabes o que não sabias anteriormente. Em algum momento, o tempo de refletir terá acabado e a tua colheita dependerá da tua semeadura.

Esquece o que plantaste ontem. Essa safra já terminou, pertence ao passado. Semear é todo dia, e a colheita é quando se está maduro. Não apresses as plantas que semeias na tua alma, nem no mundo. Deixa que cada uma cresça conforme o adubo que for recebendo. Ocupa-te, tanto melhor, de adubar as plantas que tens em teu quintal.

E não penses, filha, que a semeadura foi bem feita. Não serás tu a ter os meios de saber a medida correta da semeadura – não é quanto mais, melhor; nem quanto melhor, melhor. É a medida exata, correta, nem a mais nem a menos. Ambos os extremos farão mal a todos, e só Deus poderá dizer-te com certeza, quando o encontrares.”

Vó Chica ri com gosto, imaginando meu encontro com Deus. Penso, já bem acordada, que prefiro que ela esteja ao meu lado como agora quando isso aconteça. E rio também. E ela olha-me com afeto, e sem pena.

“Volta os olhos para dentro, filha, e lida com as sombras que se formaram nas tuas paredes. Agora pode ser o último tempo, e ainda que não seja, não haverá outro igual.

Não desperdices. Não deixes para mais tarde, nem faças pela metade.

Serena teu coração, silencia o teu pensamento e vai passo a passo, degrau a degrau, em silêncio e escutando o que o mundo grita em silêncio.”

E é em silêncio que, assim como chega, se vai. Como golpe de luz, como brisa repentina. Deixa o gosto do destino dentro das minhas narinas e meus dedos cheios de palavras brotadas.






02/03/2020

Cinzel




















Tenho há muito tempo esta fotografia guardada, presente de uma aluna querida que se tornou amiga. "Assim como o cinzel, a caneta", foi o que pensei de imediato, porque o assunto era esse mesmo, a escrita, e o instrumento na imagem é um cinzel. Dentro dele, o corte. A palavra cinzel (que só de si já é linda, sonora, experimente falar em voz alta) deriva de cisellum, que era para os latinos um "instrumento de corte", derivado ele próprio do verbo caedere - cortar.

Nada alivia mais a escrita do que cortar - cortar excessos, rebarbas, nós, sobras, manchas. O que só se consegue depois de tudo ter posto do lado de fora, depois das palavras terem sido vomitadas, jogadas, lançadas, arremessadas contra o papel. Numa entrevista dada ao jornal O Globo por estes dias, a psicanalista Catherine Millot fala sobre a capacidade que a escrita tem de trabalhar em nós o que não conseguimos dizer. Olho para o que escrevo e penso o mesmo. Se eu tivesse de dizer metade do que escrevo, calava-me. Não só porque ao escrever posso pensar e repensar, posso rasgar, guardar, riscar, mas sobretudo porque posso cinzelar o escrito de ponta a ponta, antes de me decidir a compartilhar com alguém.

O poder do cinzel atua todos os dias, e assim, como diria Catherine se usasse essa palavra, trabalha-me a alma. A justa medida de peso e doçura, a precisão exata da inclinação da lâmina. Corto e corto e corto - às vezes, por capricho, deixo um veio aberto, uma ferida sem cicatrizar, uivando em meio ao escuro. Pode ser que volte mais tarde para acompanhar a sua cicatrização, e pode ser que a exponha ao ar, e espere que os cortes abruptos da vida cicatrizem da maneira como quiserem, deixando as marcas que entenderem, criando desenhos e rugas e peles onde lhes aprouver. A vida, na maioria das vezes, sabe melhor do que nós mesmos.

Por isso, ao escrever, começo por não medir palavras, para que saia o que tiver que sair, da maneira mais poluída, infame, desgostosa, raivosa ou desgraçada que for. Sou eu, ali. Inteira e sem cortes, nem mesmo aqueles que farei depois. Espero dar certo algumas vezes.

Não sei se o pior, nesse ato que é a escrita, seja querermos de imediato a perfeição, ou imaginarmos que a alcançamos em algum momento. A agonia de publicar um livro lateja nesse lugar. Por muito que tenha havido processos, até intermináveis, a imperfeição é tão latente e óbvia que dói. Qualquer um gostaria de ter podido fazer melhor, digo a mim mesma, sem ser grande consolação. O importante, nesse ato de lançar ao mundo algum grau de escrita, é despedir-se das palavras e saber que não são mais suas, penso antes de dormir.

Acho que essa talvez seja a minha maneira favorita de enganar-me e não pensar mais no assunto.

09/02/2020

Potyrom

Hoje foi dia de mutirão no Terreiro Pena Vermelha. Dia de mutirão é dia de unidade. Transcende, porque precisa transcender, os limites rasos do tempo e do espaço. Unitas, a palavra latina de onde deriva a nossa palavra unidade, refere-se a tudo aquilo que, se dividido, corre o risco de destruir ou alterar a própria essência. Por isso é tão importante buscar-se uma unidade, mesmo à distância, mesmo na não-presença física: para que não destruamos ou alteremos a essência.

As línguas, como as pessoas e os povos, evoluem. Absorvem coisas daqui e dali, se movimentam e modificam, como seres vivos que são. Ao falarmos, falam em nós íberos, celtas, fenícios, cartagineses, godos, visigodos, árabes, latinos; dizemos cafuné, fubá, cacimba, cachaça, inhame, camundongo, miçanga e zumbi - e resgatamos de longe toda a diversidade africana que nos habita.  Buscamos no mandarim o chá, nas indianas marati e malaiala o bambu e a canja, tomamos emprestados os pires à Malásia e os biombos às terras do sol nascente. Somos feitos de muitos povos, todos eles nossos ancestrais, que honramos mesmo sem saber que o fazemos, ao pronunciar-lhes as palavras. Quem pode duvidar do quanto somos plurais e diversos?

A palavra mutirão é uma palavra tupi. Deriva de potyrom, e este, por sua vez, de , que é mão. Mutirão pede soma: potyrom significa todas as mãos juntas. Não pede pensamentos nem palavras, nem opiniões nem discursos complexos - mutirão pede as mãos que trabalham juntas, e constroem e abrem caminhos e plantam e colhem e semeiam e tornam a colher.

Quando eu cheguei, já estava o mutirão fechado (porque tudo o que se faz junto precisa de abertura e fechamento, para não deixar ninguém à deriva ou à toa), mas a sua presença, dessas mãos todas em unidade de trabalho, ecoava por todos os lados. Os que estiveram de corpo e alma presentes, e os que estiveram em alma, dando sustentação e força às mãos físicas que puderam estar - todos se respiram nesta mata que nos diz "cheguem, cheguem mais, estamos à vossa espera".

Neste domingo de Lua Cheia, não poderia haver nada de mais importante para fazer. A mata canta feliz e a chuva tamborila no telhado. Como dizemos sempre que trabalhamos: somos gratos, Senhor, por quanto nos dás.


22/09/2019

Tempo a não perder


Aprende-se com Quitéria a arte de dizer das coisas o que elas são. Sem complacência. Seu único olho vê mais da vida do que os dois que teve. É ela quem diz, e acrescenta: na época em que tinha dois olhos, os caminhos apareciam dobrados. 

Quitéria perdeu a vista direita numa distração que quase lhe custou a vida. "Mas vê tu", diz ela, "não teria aprendido a olhar as coisas pelo lado de serem vistas se de outro jeito fosse, por isso te digo que tanto faz o tamanho da desgraça. Cada uma que chega é pra mostrar o que não se sabe, ninguém tem motivo pra reclamar de estar vivo".

Há um desencanto morno na fala de Quitéria, como quem viu muito da miséria humana em ação. Não a miséria de não ter o que comer ou o que vestir, mas a miséria de ser menos do que se pode ser. A miséria de ser mesquinho, sobretudo. 

Quitéria não guarda muitas ilusões sobre os seres humanos. Por experiência própria, sabe que as pessoas tendem à displicência, e essa ela não perdoa. "Vocês não durariam um dia na caatinga", diz sem sorrir. "A primeira bala perdida já os atingiria – como vos atinge o primeiro pensamento daqueles que invejam, debocham, desconfiam, desprezam. É preciso andar de sentidos abertos, e evitar o que é pra ser evitado".

Não há falsidade no entorno de Quitéria. Há humor, e muitas vezes ela ri, uma risada que soa por dentro como cristal estalando debaixo de sol quente. Não é o riso alegre e leve do povo da Bahia, nem o riso paciente e amoroso dos velhos curvados. Quitéria ri o riso de quem acaba de morder um jiló amargo, e olha para o reino humano ora com relutância, ora (mais frequente) com extraordinária falta de paciência.

“Recado dado, tarefa cumprida” é a sua missiva. Quando mal-entendida, ou quando as suas palavras são levadas pouco a sério, ou quando a pessoa está tão perdida dentro de si que sequer consegue escutá-la, Quitéria dispara. Nessas horas, é capaz de pegar a sua cartucheira e batê-la no chão, com a força que colocaria numa espada caso a tivesse. Assim como anuncia a sua chegada com o cheiro de pólvora recém queimada e o estampido de 50 balas cortando metálicas o espaço, assim rodeia a falta de inteireza alheia com a secura agreste do couro.

Quitéria está entre aqueles que me vigiam. Chegou quando eu fiquei pronta para conhecê-la. Fosse antes, teria sido reduzida a pó. Quitéria não se ajoelha, Quitéria não usa máscaras, não propõe a guerra e vem de peito aberto. Se aquilo que a recebe não está à altura, tem as armas prontas, e dispara sua Palavra na direção do coração do outro, certeira como um bisturi afiado. Quitéria se enfurece, numa espécie de fúria santa, com aquele que já sabe, e ainda assim erra. Se tem algo que Quitéria não perdoa é o pouco caso com aquilo que é obrigação de gente.

Conhecer Quitéria não é caminho raso, nem rápido. Ela não tem pressa. Tem urgência quando é de se ter, mas não pressa. Está pouco preocupada em que se goste ou não dela; aliás, acho que ela prefere que não se goste, para que não sejam corações amolecidos que a guardem. Prefere a construção lenta, e por isso se desdobra lenta – encara quem a teme, quem a respeita e quem a admira com o mesmo olhar e a mesma altivez. Não é dada a explicações, é dada a dizer o que as coisas são. A outra parte, diz ela, é tarefa do ouvido de quem ouviu. E o tempo se encarrega do resto, e Quitéria sabe, e por isso não se apressa. Cronos e Kairós são a mesma coisa dentro dela. O que muda é a certeza inabalável que tem de que a vida está aqui para ser vivida, feita, amassada e assada como pão, e por isso digo que não acalenta ilusões. Sabe dos limites que pode um ser humano, sabe o quanto não se muda ninguém, mas sabe também que a decisão interna provoca revoluções. E por isso urge: "para quando, a tua mudança?" E a pessoa responde: "é verdade, fui ingênua". E Quitéria responde: "Não foi, tu foi é besta".

Indulgência e displicência são palavras que Quitéria não usa, ao contrário de Vó Chica, que em seu amor macio e doce nos leva pela mão à compreensão das coisas. Quitéria está em outro lugar. Considera que já aprendemos, de tanto ouvir a sábia Chica. E cobra. Dura e prontamente. "Não veio ainda? Não fez ainda? Continua a mesma coisa? Para que fazer perder meu tempo então? Se tu não muda, não vou ser eu que vou te fazer mudar."

Trabalhar com Quitéria é ter a segurança de que nada ficará encoberto, sem revisão. Muito pouco ela deixa passar, e quando deixa é porque mais adiante vai laçar, quase rindo de eu ter achado que ela teria passado sem ver, ou (pior) que não tivessem importância as coisas que têm. Por isso, se algo Quitéria me ensinou foi a agir sem ter todas as explicações, e a saber na pele que hora de correr é de correr, e hora de enfrentar é de enfrentar. "E preste atenção", diz ela que não quer as coisas pela metade, "a hora não é eterna: se não se aproveita o degrau do tempo, perde-se a escada inteira".

Quitéria é atenção plena, é raio faiscando o ar, é trajeto certeiro de bala. Não erra o alvo porque não se distrai, e não se distrai porque pagou com a vida a própria distração. Por isso seu amor nos atinge em cheio. Porque ela sabe. Ela sabe o que é titubear. O que é relutar. O que é esse campo traiçoeiro da ingenuidade, que nos faz imaginar que o que não muda, mudará, que o que não tem, terá, que o que nos machuca um dia nos amará. "Acorda", diz Quitéria, "e vai se olhar no espelho. Vê se quem te olha do outro lado é quem você quer ser do lado de cá. Não adianta trocar o espelho, o que adianta é trocar dentro de ti o que não te vale a pena". Quem com ela conversa, espera ao final um até logo, algum sinal de despedida. Quitéria frequentemente se esquece das regras da boa convivência, dos protocolos da civilidade. A pessoa pisca, e Quitéria já se foi. O que tinha a fazer foi feito, não há mais tempo a perder.

16/09/2019

Comunidade-terreiro

Vó Chica tem formas muito suas de indicar caminhos. Não é bem paciência com os outros, mas antes um respeito imenso pela forma como cada um escolhe viver a própria vida. Isto é: bem antes de pensar em ser paciente, a impressão é de que observa e busca o momento e lugar exatos em que existem olhos e ouvidos abertos.

Viver em comunidade-terreiro demanda esses olhos e ouvidos abertos. Nesse grupo de pessoas que se reúne numa busca espiritual comum, há um lugar a alcançar que não é individual, e nem coletivo. É um lugar onde a harmonia e o fluxo da vida se manifesta pelo encontro de todos com um todo indefinível. Esse todo pode ser indefinível, mas se materializa em ritos, ritmos, preceitos, ordenações. O ritmo ordena a nossa forma no espaço e no tempo, e os preceitos, como bem diz Rudolf Steiner, nos dão as forças necessárias para permanecermos vigilantes. Estar vigilante é estar atento, antes a nós próprios que aos outros. É vigiarmos nossos pensamentos e nossos sentimentos exteriorizados, as emoções. É vigiarmos as nossas palavras, e logo depois nossas ações. É permearmos de consciência cada um pedacinho de nós, sem que com isso precisemos gastar tempo e esforço, porque a disciplina do ritmo abre portões gigantes para que um fluxo se instale. Sem a disposição para aqueles olhos e ouvidos abertos, nem valerá muito a pena pertencer a uma comunidade-terreiro, porque o esforço parecerá excessivo e o fardo pesado demais a carregar.

Vó Chica ri-se quando digo do quanto é importante lembrarmos que vivemos todos sobre o mesmo chão, o mesmo planeta. Diz-me assim: "Filha, é claro que é importante. Mas mais ainda é vocês se lembrarem que aqui é lugar de passagem, e que outros depois virão, e também para eles será uma passagem. Não se esqueçam de que estão aqui, mas não são daqui. O que ficará não se chamará mais "meu corpo", e será casca, casca verdadeira. O ser que pulsa, e que é eterno e impermanente ao mesmo tempo, estará solto, e logo quem sabe se em outro chão. Este chão, como qualquer outro que seja passagem, pode tornar-se prisão ou campo fértil. É preciso conseguir separar, no pensamento, umas coisas das outras, e saber, sem conseguir explicar como, por onde andar e como, a que dar a valor e quando, o que fazer sem que ninguém lhe diga nada. Sem essa disposição, será difícil perceber por onde caminhar.

Viver em comunidade-terreiro significa perceber a flor seca e dar-lhe água, a poeira ao canto e buscar a vassoura, o vaso quebrado e cuidar de que haja outro. Sem que sejam precisas palavras nem ordens. Numa comunidade-terreiro, caminha-se para outros lugares. Busca-se a ordem precisa e a limpeza exata. Não por elas, mas pela necessidade de beleza e ritmo que a própria vida ao mesmo tempo oferece e pede. Numa comunidade-terreiro vive-se a possibilidade de olhar para si mesmo de forma diferente, experimentar formas distintas de lidar com o outro e com a tarefa da vida. Numa comunidade-terreiro, não se está apenas por si, mas pelo outro que acorre em aflição e angústia. Junto aos que nos guiam e a nós se oferecem em trabalho de puro coração, podemos esquecer-nos de nossos pequenos corações e ingressar nesse coração maior que é o coração de Deus.

Numa comunidade-terreiro, existe o silêncio. Assim como a gargalhada e a piada alegre, o momento solene e as lágrimas nos olhos. Mas o silêncio interno, esse que permite que ouçamos "o ressoar das planícies no vazio", como diz Sophia de Mello Breyner Andresen, ou "a consciência atenta que dos confins do universo me decifra e fita", esse silêncio não tem palavras que o descrevam, e vive pleno em cada oração, em cada canto, em cada sintonia de aproximação aos mundos espirituais. Com esse silêncio, vive dentro de nós a entrega, e a possibilidade de deitar-se ao comprido diante de Deus e dizer-lhe aqui estou, toma-me em tuas mãos e ajuda-me a ser uma pessoa melhor.

Vó Chica mergulha em água salgada os potes de louça que cada um preparou, em um desses vários ritos que servem para nos estabelecermos melhor em nosso caminho de autodesenvolvimento. Pede, logo a seguir, que cada um retire o seu, e com esse gesto entrega a cada um de seus filhos e filhas um instrumento para concretizar sua união com o mundo espiritual. Como ela mesma disse, não é Deus ou seus Orixás que precisam da louça, mas nós. E também a intenção precisa ser nossa. Nessas horas, ressoa um infinito amor dentro do meu peito, e os véus se descerram e há uma trilha extensa entre nós e esse lugar do cosmos a que damos o nome de Oxalá, e que responde por todos os caminhos da Fé. 
- Quando ela faltar, diz Vó Chica antes de partir, - essa confiança que tudo contém, entrem no silêncio do coração de Oxalá, o silêncio que vive dentro do pote de louça, vossas intenções guardadas na mais pura intenção do coração.