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29/07/2021

Ser equânime


Uma Gira é um lugar de aprendizado, tanto quanto qualquer outro. Se não se está atento, perde-se muito. O tipo de atenção pode acontecer de várias formas, não há receita - a Umbanda pede a nossa entrega - nossa, de cada um, de acordo com seu jeito, forma, maneira. 

Há uma coisa, no entanto, que ouvimos com frequência: "firma a cabeça, filha". Firmar a cabeça é estar presente no agora, é exercitar o estar concentrado e com os pés bem assentados no chão; e, ao mesmo tempo, aberto ao inusitado, ao imponderável, à surpresa. Temos auxiliares para firmar a cabeça, e é Vó Chica que nos ensina: quem firma a cabeça é o fazer das mãos. Inativos, divagamos. Em atividade, laboriosos, as nossas mãos ensinam-nos através do tato, que é justamente um atributo que necessitamos praticar ao extremo: ter tato. O das mãos, que nos conduz também ao tato com o outro. Começa com aquela máxima batida: falar quando é para falar, calar quando é para calar.

Algumas vezes, sem dizer nada, os Guias nos mostram necessidades. Porém, se não houver atenção ao que nos deixam quando partem, e reflexão sobre isso, deixamos de aproveitar a sabedoria que nos trazem, sabedoria que inclui como viver os dias que nos toca viver.

O ritmo do trabalho grupal, por exemplo. A maneira como trabalhamos em nossa própria qualidade de presença. O quanto seguimos orientações sem discuti-las, o quanto aceitamos uma direção sem lhe procurar variantes. O quanto somos capazes de compreender uma coisa por detrás da sua aparência. O quanto treinamos essas qualidades, essas atitudes. Tudo isso, diz Vó Chica, prepara-nos para agir de forma imediata. Aquilo de que necessitamos quando somos chamados a ações imediatas. É preciso preparar-se.

Sr. Pena Vermelha pediu-me, há dias, que aprendesse sobre equanimidade. Disse ele ser qualidade indispensável ao trato com o outro. "Você precisa ser equânime". Deixo essa palavra guardada, alegre pelo tesouro que com certeza reveste. Costumam ser isso, essas palavras oferecidas sem pedir nada em retorno, a não ser entrega, presença e confiança plenas. Coisas que, afinal, beneficiam sobretudo a mim mesma, creio.

O ser de qualidade equânime é um ser benevolente, de espírito moderado - moderado porque tem medida. Deriva do latim aeques animus. Animus-animi, bem declinado, responde por um sem fim de qualidades - energia, coragem, audácia, vontade, desejo, inclinação, intenção, paixão, espírito. Resvalamos aqui sem dificuldade para  Anima-animae - as qualidades de sopro, psique, vida, animação, vento, respiração, alma. A sua derivação mais antiga alcança o indo-europeu, como -ane, o passo para respirar. Pneuma, em grego, que significa alma, tem relação estreita com nossos pulmões, e o mesmo se dá com a palavra hebraica para alma, neshmáh, que deriva de linshom, que por sua vez significa respirar. O sopro e a respiração, animam a alma. E a coragem e a audácia incendeiam o espírito. É preciso respirar, e se deixar incendiar.

E é deste último que a ação com o outro deve estar permeada. Com animo praesenti (presença de espírito) e ex animo (de coração). Equânime é o espírito que se dirige ao outro com a mesma igualdade de ânimo: reto, justo, e sem alteração.

A alma respira, o espírito permeia. Cada Gira, cada Guia, búzios desabrochados cheios de sabedoria. Abertos, inspiram. Fechados, expiram. Vó Chica sopra os búzios antes de jogá-los (acho até que lhes segreda algumas palavras, mas tão baixo que não escuto, dá-lhes alma talvez) e o Espírito manifesta-se através deles, fazendo o ar circular em volta, trazendo mensagens, levando pedidos. Há muito Mistério envolvido, e só a equanimidade traz respostas. A firmeza dos nossos pensamentos nos coloca em equilíbrio, de forma ativa e aberta. Alma e espírito conversam, ao lado desses banquinhos onde os Guias se sentam e impregnam nossos seres com sua atmosfera pacífica e sábia.

09/02/2020

Potyrom

Hoje foi dia de mutirão no Terreiro Pena Vermelha. Dia de mutirão é dia de unidade. Transcende, porque precisa transcender, os limites rasos do tempo e do espaço. Unitas, a palavra latina de onde deriva a nossa palavra unidade, refere-se a tudo aquilo que, se dividido, corre o risco de destruir ou alterar a própria essência. Por isso é tão importante buscar-se uma unidade, mesmo à distância, mesmo na não-presença física: para que não destruamos ou alteremos a essência.

As línguas, como as pessoas e os povos, evoluem. Absorvem coisas daqui e dali, se movimentam e modificam, como seres vivos que são. Ao falarmos, falam em nós íberos, celtas, fenícios, cartagineses, godos, visigodos, árabes, latinos; dizemos cafuné, fubá, cacimba, cachaça, inhame, camundongo, miçanga e zumbi - e resgatamos de longe toda a diversidade africana que nos habita.  Buscamos no mandarim o chá, nas indianas marati e malaiala o bambu e a canja, tomamos emprestados os pires à Malásia e os biombos às terras do sol nascente. Somos feitos de muitos povos, todos eles nossos ancestrais, que honramos mesmo sem saber que o fazemos, ao pronunciar-lhes as palavras. Quem pode duvidar do quanto somos plurais e diversos?

A palavra mutirão é uma palavra tupi. Deriva de potyrom, e este, por sua vez, de , que é mão. Mutirão pede soma: potyrom significa todas as mãos juntas. Não pede pensamentos nem palavras, nem opiniões nem discursos complexos - mutirão pede as mãos que trabalham juntas, e constroem e abrem caminhos e plantam e colhem e semeiam e tornam a colher.

Quando eu cheguei, já estava o mutirão fechado (porque tudo o que se faz junto precisa de abertura e fechamento, para não deixar ninguém à deriva ou à toa), mas a sua presença, dessas mãos todas em unidade de trabalho, ecoava por todos os lados. Os que estiveram de corpo e alma presentes, e os que estiveram em alma, dando sustentação e força às mãos físicas que puderam estar - todos se respiram nesta mata que nos diz "cheguem, cheguem mais, estamos à vossa espera".

Neste domingo de Lua Cheia, não poderia haver nada de mais importante para fazer. A mata canta feliz e a chuva tamborila no telhado. Como dizemos sempre que trabalhamos: somos gratos, Senhor, por quanto nos dás.