30/07/2009

Do que não é lúcido

Há uns anos atrás, nem tantos se considerarmos a imensidão do oceano comparada a uma gota d’água (meu pai gostava de dizer isso, antes de tornar-se incapaz de falar), tive a sorte imensa de visitar muitos dos meus poetas favoritos. Alguns, foram-no apenas na altura, mas muitos deles vão permanecer nos meus lugares mais iluminados até o fim dos dias, creio.

Essas visitas não foram coincidências, porque eu realmente sentia a urgência do conhecimento, e de fato no espaço dos dois anos seguintes mais da metade deles morreu, o que me explica a tal da urgência. Todos eles eram já bastante velhos (o que me exime de qualquer responsabilidade), e para essas conversas eu lancei mão, aconselhada pela minha querida irmã, de uma máquina fotográfica.

Máquinas fotográficas produzem-me o mesmo efeito que os livros que carrego escondidos em sacolas para encontros desse tipo – envergonhados uns e outros, ficam-se onde estão, apenas espreitam para ver se têm a sorte de serem descobertos. Só nessas circunstâncias é que fazem a sua aparição, e pedem muito timidamente ora um clic, ora um autógrafo. Nenhum destes meus visitados percebeu a sua existência, e por isso eu não guardo nenhuma lembrança iconográfica desses dias tão cheios de sorte. (Para ser bem sincera, o único que me perguntou pela máquina, o caboverdiano Manuel Lopes, gostava muito de ser fotografado, e justamente nesse dia eu esqueci-me de levar a dita cuja.)

Em vários desses momentos me aborreci comigo mesma, “que disparate de falta de segurança em si própria, isto não tem graça nenhuma, tira lá a fotografia e põe-te a andar...”, mas depois fiquei na dúvida, talvez como consolo – será que eu devia mesmo lamentar a ausência desses registros? Passados os anos, fui chegando aos poucos à conclusão de que talvez tenha sido uma benção, dessas que nos acompanham vida afora e sobre as quais precisamos urgentemente recuperar a capacidade de admiração absoluta, para poder reconhecê-las quando acontecem, e não anos depois.

A imagem, parece-me hoje, poderia turvar-me a memória do real, fazer-me o que faz essa foto que tenho de mim pequena, no zoológico de Lisboa, olhando extasiada um imenso hipopótamo, algo que se parece remotamente com a primeira lembrança que (acho que) tenho da vida, mas uma lembrança de certa forma poluída pela imagem da polaroid do meu pai. Desta outra forma, só com o que me vem mal fecho os olhos, posso repetir a sensação de estar na mesma sala com a que (para mim) é a maior de todas as poetas, vendo-a (atônita) acender um cigarro atrás do outro ao longo de horas, muitas vezes deixando-o a arder sozinho no cinzeiro de prata, sentir-lhe dolorosamente a demência da senilidade instalada, conversar por isso com ela como se realmente eu fosse a sua sobrinha (e porque não?), vê-la esperar ansiosa pela mãe morta há mais de 40 anos. Foi enterrada passados poucos meses, e provavelmente nesse dia deva ter se alegrado com a (a)final chegada de sua mãe.

Mesmo assim, mesmo completamente fora do foco lúcido, continuou nessa tarde escrevendo à minha frente, com a mão livre do cigarro desenhando as letras no ar, como se tivesse uma tela diante de si e a colorisse com a escolha exata das suas palavras. Seu tema manteve-se o jardim e, do lugar onde se senta, ainda posso ver-lhe os olhos azuis opacos demorarem-se na glicínia em flor – “foi meu filho que a plantou, e ela cresceu tanto em um só ano”, ainda a escuto dizer. A flor da glicínia é azul como os seus olhos, ouço-me balbuciar e ela olha-me espantada, como se não me imaginasse capaz de o fazer. Não sei o que dizer, muito menos o que fazer, e devo estar com as mãos irrequietas – ela manda-me à cozinha, buscar-lhe um copo de água, mas primeiro me adverte a passar pela sala de jantar e reparar no magnífico azulejo que seu marido trouxe ontem à tardinha. O marido faz companhia à mãe há algum tempo. E eu vou à cozinha imaginando que bem poderia salvar-me deste roteiro insano o filho jornalista dessa poeta, a quem admiro também, inclusive pelos olhos. Não consigo focar meu próprio pensamento, lembro-me de ter pensado, tanto tempo à espera deste dia, e aqui estou feito uma tonta, sem conseguir eu também dizer coisa com coisa.

Volto e a minha irmã foi-se. Está no jardim, diz-me a empregada que entretanto apareceu,e logo atrás dela o filho outro, azulejista de profissão e com um passado e presente psiquiátricos que a sua agitação delata (eu dediquei tanto tempo a esta poeta que sei-lhe detalhes literariamente insignificantes como esse, lembro de ter-me ocorrido).

Pelo resto da tarde fico-me em silêncio a seu lado, vendo a tarde entardecer para além do Tejo que se vê à esquerda da janela de portada, linhas antigas desta casa secular. Ela diz algo aqui e ali, percebo as imagens que a escalam, que a engolem, que a atormentam e aprisionam em si mesma. O seu mundo é mais o delas que o nosso, e creio que tenta desesperadamente construir uma estrutura que mantenha os dois unidos, ainda que tão frágil e precariamente quanto o faria uma fina teia de aranha.

Por perceber isso, tiro do meu bolso as folhas de poemas que trouxe na esperança de que os lesse, e decido lê-los eu mesma em voz alta. E sinto-me num templo, e falo cada vez mais baixo, e entro tanto naquilo que eu própria escrevo que demoro a perceber que ela saiu do lugar que ocupava e sentou-se ao meu lado no sofá de grandes flores estampadas. Ela não me diz nada, mas quis-me parecer que o azul de seus olhos estava menos opaco e que de alguma maneira eu lhe devolvi um fio da sua esfrangalhada teia, e transportei-me com ela a qualquer lugar que não é nem este, nem o outro, antes aquele da sua provável origem, feito de sons e de sensações tornadas Palavra.

Esse encontro transtornou-me aquela semana inteira, deixando-me imprestável para qualquer outra coisa, e eu demorei muito tempo a refazer-me desse contato com o outro lado do mundo. O outro lado do mundo de alguém que percebo dentro de mim, o outro lado de alguém que me falava como se eu mesma me falasse, portanto meu outro lado do outro lado de mim.

Não tenho grandes medos na vida, mas não há ser humano de verdade que não alimente ao menos algum receio. O de morrer louca, como já me previu uma cigana que lia mãos em Sevilha e me mostrou seriamente esta minha linha da vida que acaba numa forquilha em ambas as mãos, e que eu vejo à espreita, se olho a linha materna da minha família, é provavelmente o que eu me lembro de ter há mais tempo, ainda que com o passar dele eu tenha chegado à conclusão de que isso pode ser uma vantagem. Sobretudo se considerarmos a cada vez maior variedade de loucuras às quais podemos sucumbir. Pode ser que seja uma questão de administração adequada, e pouco mais.

Mas essa tarde com ela fez subir a maré desse medo, uma maré que quase me afoga e me inutiliza. Imaginar-se louca é uma coisa; ver-se, outra bem diferente. Naquela tarde, algo em mim ficou entre um estágio e outro, suficientemente lúcida para poder ver a inevitabilidade da falta de lucidez.

Por isso, e porque realmente em nada valeria a pena, fico feliz de não ter nenhuma fotografia desse encontro. Talvez não tenha sido assim, talvez tenha sido pior, e eu prefiro guardar, dela, a imagem que tenho dos seus olhos a meu lado, procurando em desespero a reentrada no mundo que eu ainda habito, e do qual ela se despede lentamente a contragosto.

Dos talismãs

Gosto muito de guardar coisas. Não necessariamente durante muito tempo, mas muitas delas, guardadas, descobri poderem transformar-se em talismãs de textos. Guardo-as às vezes longamente e um dia, de repente como hoje, despertam-me uma vontade imperiosa de escrever.

Foi exatamente isso que aconteceu, nesta manhã, com um bilhete pequeno, manuscrito, daqueles à toa aos quais quem escreve pode não ter prestado nenhuma atenção. Guardei-o, essencialmente, porque nele meu nome está escrito de uma maneira que me aquece e reconforta. Posso redesenhar dentro de mim todos os movimentos de alma que a sua primeira visão me descobriu. As suas linhas fluidas e imaginativas despertam-me tantas, mas tantas possibilidades, que se o soubesse quem o escreveu talvez tivesse usado uma olivetti antiga. Ou não... quem sabe!?

Tenho pena de não ter prestado atenção ao meu avô quando muito entusiasmado queria me contar sobre seus estudos de grafologia... Mesmo não entendendo o que significa esse traçado diferente das três letras do meu nome, fico-me nesse bilhete, e demoro-me, enamorada das linhas que o desenharam, reparando na forma distinta que assumem ao escreverem o resto do bilhete, mera formalidade sem traço de nada.

Essas pequenas coisas, quando tenho tempo, preenchem-no. Uma vez li numa biografia da Florence Nightingale que os devaneios infantis acompanharam-na por toda a vida. Certamente o que me aproxima desse bilhete está muito perto de um devaneio, embora o teor não seja infantil, e fico pensando se a solução para o atendimento médico da guerra da Crimeia, e os movimentos heróicos da primeira dentre todas as enfermeiras, terá sido filho ou neto de um devaneio. Agrada-me a ideia, porque assim quem sabe o meu devaneio pessoal, que nada tem eu sei de heróico, tenha também uma chance de se perfazer concreto.

Curto, este texto? É para se parecer com o bilhete.

28/07/2009

Dos amigos virtuais

Há dias atrás falei de Adbid, aquele marroquino dono de camelos que conheci brevemente via skype. Uma menção assim tão especial a um “conhecimento de fundo tão breve e fortuito” (as palavras não são minhas, e por isso as aspas em torno delas) deixou meu amigo João Pedro incomodado. O nome é fictício, que eu não quero expor ninguém, embora isso fosse difícil, porque o João Pedro entra naquela categoria pode ser que bizarra de amigos virtuais. Tenho poucos destes amigos (e na verdade resisto um pouco a chamá-los assim, contudo se não o fizer aqui certamente o João Pedro cortará relações comigo, mesmo que de qualquer forma a questão com ele seja outra), mas é interessante o que mantenho com eles. Não sei se de fato são quem dizem, chamam como dizem chamar-se, vivem onde dizem viver ou fazem o que declaram fazer. Podem ser qualquer coisa que queiram, e eu também posso imaginá-los da maneira que eu quiser, e ainda por cima imaginar-me e declarar-me a meu bel prazer. Não me parece que, de maneira simplista como alguns gostariam, sejam necessariamente pessoas solitárias, daquele tipo que não consegue manter amigos de carne e osso, relacionar-se com os outros presencialmente etc e tal. Eu faço parte deles, a bem da verdade, e não me considero assim um ser anti-social.

O João Pedro, por exemplo, escreve poesia e é o máximo que consigo saber realmente dele. Não vi fotos, nem quero, não sei seu msn nem skype nem nada que sugira que bate-papos informais possam surgir. Não lhe conheço orkut, facebook ou twitter. O nosso contato restringe-se aos emails que nos mandamos, depois de um pedido de leitura e opinião de poemas, numa lista de discussão sobre literatura marginal.

Mas o João Pedro ficou incomodado por ainda não ter sido motivo de uma crônica (enquanto que o fortuito do Abdib sim), numa súbita manifestação de ciúmes que eu só consigo mencionar aqui, no anonimato de um nome fictício, porque ao vivo e a cores e através de seu email pessoal seria o fim da nossa amizade. O João lê estas crônicas no blog, e por isso nem precisa sentir-se realmente mencionado, pode ser que nada disto seja de fato real, e assim não há ninguém para se chatear. Pode ser que ele nem seja ele, nem eu, eu mesma, e que afinal apenas estejamos todos resolvendo pendengas síndicas de outras encarnações nesta daqui, via virtual para economizar tempo e espaço.

Os amigos virtuais têm sobre os mortais comuns a vantagem de parecerem sempre prestar muito mais atenção em nós do que os segundos. A tudo respondem, sobre tudo opinam, e parecem felizes pelas mensagens que mandamos e ansiosos pelas que se seguirão. Para quem escreve, é um prato cheio. Tudo passa pelo campo da ficção, pela invenção de nós mesmos se nos der na telha, pela fabulação à qual estamos irremediavelmente – sorte nossa – votados, pela nossa condição humana. Um dos textos de que eu mais gosto do Antonio Cândido, aquele curto “sobre a necessidade da arte”, fala dessa fabulação, e do quanto ela é elemento constitutivo indispensável ao ser humano, do quanto (leitura minha, é possível que eu esteja fabulando as palavras do mestre...) é preciso que encontremos a fabulação no dia a dia, e a aceitemos tal qual é, para nos humanizarmos no sentido mais profundo. Esses amigos virtuais, podendo ser qualquer coisa, e nós para eles idem, permitem-nos uma invenção pessoal que transcende a franja do que a minha avó chamaria de “razoável”. No limite, pode gerar esquizofrenias e desajustes sérios, mas não mais sérios do que aqueles que as nossas relações sociais falsas e hipócritas geram há já bastante tempo.

O mundo virtual, aliás, auxilia-nos na exposição diária, e mesmo amigos que o são no dia a dia e com quem nos encontramos entra semana, sai semana, conseguem refugiar-se de si mesmos nos pequenos textos que a internet guarda e envia – percebo isso pela quantidade de mensagens que recebo sobre estes textos que escrevo, muitas delas revelando lados, cantos, arestas e sensações de muitos que vivem ao meu redor e que de repente se iluminam diferente através das suas mensagens. No sigilo que a escrita pessoal garante. São outros quando escrevem, mas um outros que os torna mais eles mesmos.

Outro amigo, este pouco virtual, bastante palpável e real, embora nos vejamos mais na caixa de entrada de mensagens do que de outras formas, diz-me às vezes, sucinto, simples, direto e seco como só ele sabe ser, que “pô, ana, nisso aí vc viajou na maionese, hein?”, para indicar-me isso mesmo, a viagem do pensamento além do considerável. Aperto a tecla do “enviar” neste momento com a impressão nada vaga de que ele voltará a usar esse lugar comum do qual tanto gosta (e abusa, já lhe disse isso!) como comentário a esta crônica.

27/07/2009

Clima

“Estranha toda esta chuva em julho” – por todos os lugares por onde passei neste mês, se houve algo que os uniu foi esse comentário pela boca de vários. Literalmente, falar do tempo - que é o que pessoas costumam fazer quando não têm muito o que se dizer umas às outras. Ou não querem: o clima é um bom aliado na tarefa de nos escondermos dos que estão em volta.

Eu sinto por vezes falta de conversas de verdade, e talvez essa falta seja no fundo de poder olhar para o outro dentro dos olhos, daquele jeito em que chegamos a ver refletida na pupila alheia a nossa própria imagem – e isso sem manobras discursivas, é algo para ser literal. É uma sensação e tanto, sobretudo se pensarmos que o mesmo acontece com o olho do outro, que se vê refletido em nossa pupila, permitindo um defloramento de alma cheio da única intenção de obedecer à vontade de conhecer o interlocutor. Por dentro e de verdade. Não é a mesma coisa que sustentar o olhar, veja bem, que essa é tarefa de quem está perdido em si mesmo e por isso precisa sustentar alguma coisa de seu quando olha o outro, para não ser invadido onde não quer. Essa história de pupila vem lá de dentro, de onde a razão apenas arranha para entrar.

No meio de toda esta chuva, é difícil achar as pupilas dos outros, e não consigo saber se a falta é minha ou das circunstâncias. Avançar para dentro dos outros é tarefa difícil, delicada, arriscada, com muitas chances de ser abortada quando se imagina já ter completado a missão.

Demanda certo clima.

Às vezes, encontramos olhos que não procurávamos, e recuamos assustados pela invasão inesperada. Outras, são os outros que fogem, pelas mesmas razões. É preciso uma sincronia profunda e uma empatia sincera, uma abertura interna que nos permita, através desse ponto luminoso no espaço da nossa anatomia, sermos um pouco do outro, sem barreiras e sem receios. É uma entrega poderosa, que se mantém durante semanas viva na memória e não admite preconceito.

Nestas férias, fiz-me de algumas pupilas, e hoje, numa espécie de cômputo geral do mês (gosto disso, das retrospectivas valorativas, deve ser um vício ou um engodo, quem sabe uma dobra de caráter), fico feliz com o resultado, e decido registrá-lo por escrito. Logo me imobilizo, porque, se penso muito, deixo de perceber o quão sutis foram esses encontros, quase mal dou por eles, precisei do cômputo geral para perceber de verdade. O quanto passou despercebido aquele, o quanto me incomodou aquele outro, ao qual fugi, covarde de mim mesma.

Fico imaginando de que maneiras estas trocas e estes encontros foram conscientes no outro – será que percebem o que eu percebo? Porque também é dessa matéria, esses encontros: o ser volátil e diáfana (venho há semanas querendo usar essa palavra com propriedade). Conversar sobre ela (matéria), a obrigaria a se desfazer no ar, e de tão incongruente desapareceria até da memória.

26/07/2009

Mistache malabona

Devo agradecer a meu avô e a seus estudos de esperanto essa expressão que a família inteira adotou, há décadas, para definir um estado de espírito que nos ataca e não tinha, até então, definição exata na nossa própria língua. Sei que meu avô me dizia que se tratava de “estar chateado, aborrecido, de baixo astral, algo deprimido”, mas convenhamos que dizer “Ai... mistache malabona” é muito mais claro e expressivo do que “estou um tanto deprimido...”. Se eu não tivesse acabado de descobrir que essa expressão na verdade não existe em esperanto (eu era mais feliz sem esses dicionários online...), continuaria esta crônica, sinceramente, menos estarrecida, mas vai assim mesmo, e passo a entender simplesmente que meu avô fez algumas adaptações suas ao esperanto que estudou. Considere que mistache malabona é mesmo estar assim meio chateado, seja lá em que língua for, e pra frente.

Eu nunca compreendi muito bem (e, que eu saiba, ninguém na família o fez) essa fascinação súbita mas duradoura do meu avô pelo esperanto. Comprou um curso de auto-aprendizagem, da Reader’s Digest salvo erro, tipo de compra que ele adorava fazer porque chegava pelo correio e não era preciso perder tempo em lojas, correndo ainda o risco de ganhar um prêmio em forma de livro ou disco, como as valsas completas de Strauss que motivaram minha avó a me ensinar a valsar pela sala de casa em manhãs de sol fresco.

Meu avô começou a estudar, afincada e organizadamente. De vez em quando, contava algum detalhe – cada vez sabia mais, julgo que tenha realmente aprendido a língua de fio a pavio, mas eu continuei sem entender a razão daquilo. Dizia-me que era porque um dia essa seria a língua universal, e ele queria poder comunicar-se com todos. Mas, primeiro (pensava eu em silêncio, para não lhe diminuir o entusiasmo), demoraria até que isso acontecesse, ele era o único na cidade inteira a aprender esperanto, ele sabia disso, o que faria com que demorasse, e eu tinha consciência do tamanho da juventude do meu avô; segundo, ele não era assim o tipo de pessoa interessada em conversar com os outros e conhecê-los mundo afora, nem sequer inglês ele tinha querido aprender!, e sempre me dizia que era melhor não brincar com os vizinhos e ficar em casa bem quietinha, que os outros era só para quando realmente preciso (acredite, eu obedecia, e por isso, se não tive vários heterônimos como Pessoa na sua infância, tive uma porção de amigos imaginados); e, terceiro, não havia ninguém que ele conhecesse que sequer estivesse pensando em aprender essa língua,com quem é que ele ia treinar conversação? (Se esta última ponderação parecer elaborada demais, é só esclarecer que eu tinha uma mãe que me dizia que a coisa mais importante para aprendermos outras línguas era cuidarmos da conversação.)

Pois meu avô aprendeu esperanto mesmo nunca tendo falado nessa língua com ninguém, e eu acho que ele se sentia melhor e mais inteiro por isso. Na mala de poemas e outros escritos que me ficou de herança em testamento quando se foi, e que eu guardo numa das prateleiras mais altas da biblioteca de casa, lugar das coisas com as quais eu ainda não descobri o que fazer, há vários poemas em esperanto (confesso que depois do dicionário online, eu começo a duvidar...), sem tradução, que um dia eu deverei reunir e levar a alguém que saiba essa língua dotada de esquecimento. Pelo menos vou poder entendê-los, quem sabe traduzi-los, e fazer com que o esperanto do meu avô, afinal, encontre ouvidos para ouvi-lo.

(Eu ia terminar aqui, mas acabei lembrando de outra das palavras de uso corrente na família. Não lhe sei a origem, só falta ser do esperanto do meu avô – embora, depois de descobrir que a que dá título a este texto não o é, passo a ter certeza de que esta segunda menos ainda o será! Meu pai usava-a bastante, quando queria referir-se a algo que era quase bom, mas estava longe de agradar. Algo que quisesse muito fazer-se, mas que nascia já sem os apetrechos necessários para valer a pena. Algo assim “fracativo”.)

(E eu ia terminar de novo, mas pus-me a rir com os dois xingamentos preferidos do meu pai, que estão aqui vindos do passado e ressoando nos meus ouvidos: estafermo e estupor. Nada de esperanto ou invenção de membro familiar, puro lusitanismo. E ainda é preciso imaginar-lhes o acento lisboeta, embora meu pai fosse coimbrão.)

Abdib

Provavelmente acontece com todo mundo. Às vezes meu skype quer apresentar-me a criaturas que me acenam sabe-se lá de onde com um pouco sedutor “Oi, adicione-me à sua lista de contatos!”. Normalmente ignoro-as a todas sem peso nenhum de consciência.

Uns dias atrás, no entanto, alguém de nome Abdib acenou-me com um “Sou marroquino, tenho oito camelos e gostaria de conversar com você”. Além de gostar bastante de Marrocos, dar de cara com alguém que quer conversar e que tem oito camelos (sobretudo os camelos) não foi assim um lugar comum, e deu-me vontade de saber quem era afinal esse sujeito.

Abdib realmente tem oito camelos, sua fonte de subsistência, e logo me alertou sobre a conversa dele ser séria e ter a única intenção de conhecer alguém que vivesse no Brasil. Disse-me morar a oeste do monte Atlas, e que a sua ocupação profissional é a de guiar turistas que querem aventurar-se pelo deserto, fazendo pequenos ou grandes passeios em camelo pelas areias saharianas. “Hum...”, pensei eu, “muito menos exótico do que esperava.” Mas, há anos de olho em Timbuktu, ao sul do Atlas e já em terras malinesas, logo me animo, ao olhar para o mapa da África que tenho atrás do computador: “Abdib, quanto se demora, de camelo, de onde você vive até Timbuktu?”. Ele ri-se, com o mesmo rsrsrs que nós usamos por aqui, viva a globalização linguística!, e diz-me que “muito tempo, mais de 45 dias, será melhor você ir de avião de Bamako até lá”. Pena, penso eu, de camelo seria com certeza mais divertido, mas realmente 45 imensos dias é tempo que eu definitivamente não consigo ver à minha disposição exploradora tão cedo.

Timbuktu faz parte do universo imaginário de qualquer pessoa que tenha pensado seriamente na vida dos povos do deserto. Ponto final da rota dos mercadores que viajavam desde o Nilo (pegue seu mapa múndi, a distância é impressionante e inóspita!), fervilhou de gente de grande parte do mundo não europeu durante séculos e séculos, basicamente até à chegada daquele. O sal e o ouro eram as grandes e mais bem sucedidas trocas, e a sua proximidade com o rio Níger deve também ter tido a sua influência para a sua fama. Quando eu era pequena, uma das minhas brincadeiras favoritas era desaparecer numa hipotética viagem de trem para Timbuktu, onde me esperava uma grande missão evangelizadora, para a qual eu trabalharia e na qual eu adquiriria a mesma doença que a minha tia Teresa, paludismo, só que numa mutação muito mais séria e letal, é claro. (Paludismo, descobri anos mais tarde, vem a ser o mesmo que malária, mas a doença da minha tia parecia-se mais com a sonoridade do primeiro.) De lá tão longe, voltava horas depois cansada e ansiosa por um banho, para tirar de cima toda a areia impregnada durante anos sob o sol escaldante do deserto e escapar ao frio congelante da noite. Minha avó devia rir, mas ajudava-me a manter a grande aventura até à hora do jantar, quando lamentava que só houvesse uma canja, um pouco de pão, e que o carneiro (iguaria que um dia ainda comerei deliciada em Timbuktu) tivesse acabado com os últimos viajantes que ela tinha abrigado. Eu sempre agradecia, humildemente, como devem fazer todos os viajantes que sejam acolhidos por uma tenda itinerante no meio do Sahara.

(Anos depois, quando me descobri às voltas com um mestrado que insistiu em se deter muito perto do mesmo Sahara, mas agora em Cabo Verde, passei meses sentindo o Sahel soprar inclemente desde o deserto, atravessando as águas atlânticas para atormentar essas ilhas com o seu calor sufocante. Sem nunca ter posto os pés no arquipélago, de tanto que o sonhei em forma tipográfica, consigo sentir-lhe a angústia dos meses de seca e a imensidão dos sonhos perdidos no mar aberto. Jorge Barbosa, o poeta, é um infatigável ajudante para quem, como nós comuns mortais, não pode viajar sempre que quer.)

Hoje, imagino eu, Timbuktu deve viver atrelada às lembranças de um passado glorioso, perdida em si mesma e com poucas chances de se libertar ou reabilitar. Lisboa dá-me um pouco a mesma sensação, com o seu apogeu quinhentista ainda vivo nas paredes reconstruídas de um Terreiro do Paço ou uma Casa dos Bicos. Minha arquitetura interna alerta-me – ao seguir por esta trilha, em breve sucumbirei à melancolia que o dia de chuva de hoje prenuncia desde que amanheceu. As cidades que me habitam, como um Ítalo Calvino que me assumisse, pedem que feche essa porta, para que não transbordem. É melhor saber um pouco mais do meu marroquino.

Abdib mora num oásis (não consegui guardar-lhe o nome), e diz-me ser um tuaregue; por isso ainda hoje sente dificuldade em permanecer no mesmo lugar durante muito tempo. Seus filhos vão à escola, aprendem o Alcorão, e assim é preciso fixar-se em um lugar. Diz também que, graças ao misericordioso Alá, há bastante turismo na sua região, franceses e belgas, como sempre, mas também muitos japoneses, e por eles pode sair durante uma ou duas semanas com seus camelos, levando-os até à fronteira com a Argélia. Conta que, nesses dias, e assim que os estrangeiros param de falar e escutam o silêncio do deserto que se impõe imenso, ele se sente finalmente em paz, como nunca consegue sentir-se quando está no seu oásis, mesmo rodeado pelas pessoas a quem ele mais ama.

Termino a conversa com Abdib prometendo-lhe que sim, que assim que me decida à viagem sonhada ao Mali, hei de mandar-lhe um e-mail, para que quem sabe possamos nos conhecer também pessoalmente – a sua família e a minha, porque Abdib, além dos oito camelos, tem três mulheres e 15 filhos. Imagino que tanto ele quanto eu saibamos que esse e-mail dificilmente será escrito, e não porque eu não tenha intenção de voar até o Mali. Esses encontros que delimitam a solidão de cada um não podem refazer-se, sob risco de se perderem as verdades que só o são enquanto não nos aproximamos demais, enquanto podemos manter o anonimato dos nossos desejos. Seu oásis, seus camelos e as imagens desérticas que as suas palavras fizeram crescer em mim precisam delimitar-me por dentro; a sua confrontação palpável com a realidade dar-me-ia a exata medida do quanto não tenho mais nenhum braço de avó que compreenda, como o poeta, “que o sonho comanda a vida”.

De todos os nossos fogos

Nestas noites de frio, dá-me logo vontade de acender os três fogos que tenho sob o meu alcance. Nada que ajude muito a situação ambiental calamitosa do planeta, mas às vezes eu cedo à tentação, e desfruto desta situação privilegiada em que me encontro, senhora de três possibilidades ígneas.

Começo pelo fogo do fogão de lenha, que me cozinha por dentro, tanto que, às vezes, preciso quase entrar dentro dele para soprar as brasas que se acumulam nessa caverna escura que é sua câmara de queima. Arde lentamente, esquenta a água, cozinha o arroz e o feijão, assa a torta de banana dentro de seu forno, prepara os aromas que em pouco tempo enfeitam toda a casa. Às vezes deixa cair uma das suas madeiras em chamas, e o chão perto dele já está marcado, de tantas que caíram e demoraram a ser percebidas. Sempre se deixa acender, sem demora e sem resistências – esse é o fogo que domina o centro da minha casa, e junto a ele congregam-se os filhos meus e dos outros, seus amigos, os meus e os conhecidos de ambos. A bancada de madeira que o protege por trás pode apoiar hoje um copo de vinho, amanhã quem sabe um cotovelo, no meio de uma conversa a meia luz, nessas horas em que o melhor é manter uma penumbra protetora,l que nos proteja de nós mesmos, nossos desejos, nossas querências.

O fogo que acendo na lareira, junto à parede da sala que neste mês se tornou da cor das laranjas ao sol poente, abre-se ao mundo sem medos nem cinzas a esconder; as suas labaredas passeiam atrevidas pelos meus olhos, salamandras mutantes desejosas do inspirar de sonhos. As madeiras que se entrelaçam, para que o ar circule, misturam-se sem reservas, quase promíscuas no compartilhar de seu mútuo calor. O fogo da lareira acolhe tudo o que lhe lançam: papéis perdidos pela sala, feitos de anotações de jogos noturnos, números e contas em profusão alucinada; retalhinhos de papel de balas furtivas, das não permitidas; restos do jornal de domingo esquecido (ou guardado?) debaixo do sofá, dias atrás. Aglutina-se e resolve os impasses que possam trazer as diferentes substâncias, e no fim consome-as todas, transformando-as em sua própria substância.

Mas é lá fora, no frio da noite e na noite escura, que ardem as fogueiras. Essa, que acendo enquanto espero, traz-me a desacomodação do ter de sair lá fora, pra fugir da corrente de vento que enche os meus olhos de fumaça e levanta as cinzas de ontem, deixando-as todas a flutuar à minha volta, e eu sozinha perdida entre elas. As chamas elevam-se com mais voracidade, e são fáceis de alimentar: qualquer tamanho, qualquer forma, qualquer quantidade é bem vinda e acolhida. Posso vê-lo, a este fogo, confundindo-se com as estrelas, nessas pequenas fagulhas incandescentes que se levantam e alçam vôo por cima do círculo de pedras que determinei para esse arder. Dormir junto a esse fogo, com essas estrelas todas como teto, não é difícil, e aninhar-se e deixar-se levar pelo ruído sibilante, pelo marujar suave de tudo o que queima, consola e embala os mais poderosos sonhos. Quando acordo, invariavelmente ainda é noite, e mais uma vez percebo que esse fogo, como qualquer outro, apaga-se se não alimentado, nutrido, acarinhado e, sobretudo, percebido.

Por entre os que me levam da fogueira à cama, tenho tempo para guardar, num recanto da minha mente consciente, que o melhor de tudo é poder manter acessos os fogos que escolhemos como legados, e que por isso se tornam responsabilidade nossa. É preciso ter certeza de que os mantemos aquecidos, prontos para entregar ao outro quando ele chegar. Muitas vezes é isso que esse outro procura – um fogão de lenha para o corpo, uma lareira para a alma, uma fogueira para o espírito.


Das pastas e das malas

Eu não gosto de fazer malas. Por muito que goste de viajar (e eu gosto), fazer malas é sempre um processo angustiante, como se a certeza de não levar o que deveria me atormentasse do começo ao fim, e a grande vontade fosse de não precisar carregar nada mesmo. Já desfazê-las, é uma delícia – voltam desorganizadas e cheias das pequenas bobagens que vou colecionando pelo caminho, porque lá no fundo sempre tenho a intenção de fazer um diário de viagem bem documentado, com todos os tickets de todos os museus e de todos os ônibus e trens que se usaram pra ir de um lugar ao outro, as contas de cada lugar onde comi, arrastando atrás de si as escolhas do cardápio do dia. Ficam um tempo por cima dos móveis, essas lembranças, todas juntinhas num montinho; depois, migram para alguma pasta que aparece do nada, que se junta a outras num outro monte, ao qual se agrega a poeira diária. Diáfana, ia eu acrescentar, mas é redundância sonora demais, e eu hoje acordei concreta, como devem acordar as pessoas que vão viajar e precisam organizar mil pequenos nadas que podem ser urgentes, mas estão longe de serem importantes.

Diário assim planejado eu só consegui concretizar uma vez, depois de uma viagem à Califórnia. Romaria de visita aos muitos parentes de minha mãe (todos emigrados dos Açores para terras americanas, desejosos e esperançosos da possibilidade de se tornarem sobrinhos do tio Sam), a lembrança mais persistente na minha memória ainda é o quase-tombo da minha mãe, desequilibrada na sua enorme mochila ao encarar uma imensa escada rolante no aeroporto – a escada era imensa provavelmente só naquela altura, mas a mochila continuaria hoje enorme, porque realmente era grande. A ajuda que tivemos de um senhor simpático e atencioso, muito simpático e atencioso mesmo, rende-nos até hoje umas tantas gargalhadas. Mas é estranho, convenhamos, que essa seja a primeira e quase única lembrança viva dessa viagem. É por coisas assim que é bom fazer esses diários, tudo fica mais justo.

Hoje estou sem pressa para viajar (os filhos ressentem-se desse meu estado algo letárgico...) e posso ir em busca do diário dessa viagem. Dentre as muitas coisas que parecem desnecessárias e eu guardo, encontra-se esse caderno. Só que é graças a ele que eu posso lembrar-me do museu de cera de São Francisco; do pôr do sol sobre a baía, que me deixou sem fala e sem fôlego; da máquina 2-em-1, de secar e lavar, da tia Francisca, que no espaço de tempo que me levou tomar banho e jantar, lavou toda a roupa de uma viagem pontuada pelo acampamento improvisado na casa de uns e de outros; da primeira vez de um Kentucky Fried Chicken, que até hoje não consigo recuperar em termos de paladar; e a surpresa por tantos homossexuais sentindo-se e agindo livres. Acho que eu tinha 13 ou 14 anos de idade na altura, e Portugal, mesmo democrático e incorporado às nações livres do mundo, não tinha me acostumado a essa sensação diferente.

Preciso recuperar as lembranças de outras viagens. Pensando nisso, e previdente com relação ao futuro que se aproxima ao virar da esquina desta viagem de hoje, lanço da mão da pilha desequilibrante de pastas na prateleira à qual não dediquei muita atenção na arrumação feita. São as pastas das viagens que me acompanham ao longo do ano, e que eu tento não se repitam e se descubram diferentes a cada visita. Não é fácil, porque só o fato de se guardarem em pastas etiquetadas faz com que se imobilizem no tempo, e me contagiem com esse sentimento que a duras penas suporto. A subversão é a melhor medida, e é por isso que, ao abrir a que se denomina a si mesma “Trovadorismo”, dou logo de cara com um poema do Ivan Junqueira... Pelo menos passo a pensar no que poderia eu mesmo estar pensando quando entendi que este poema do nosso contemporâneo e carioca Ivan tinha uma relação assim tão estreita-evidente-possível com algo saído da pena de um galaico-português Nuno Fernandes de Torneol, e isso atapeta a minha fuga do óbvio redundante e da mesmice de todo dia.

Por tudo isso, na viagem desta semana, decidi pôr no carro todas essas pastas-viagens. Ocupam quase metade do porta-malas, entre lembranças de vida e vidas de lembrança. Espero, nesta que suponho ser a última escapada destas férias, dar sentido a esses pequenos não sentidos das minhas pastas. Que, ao voltar, e ao abrir qualquer uma delas, possa encontrar de fato lá dentro o que a etiqueta externa me anuncia, sem ao mesmo tempo negar-me as surpresas. Que não se misturem mais, nas minhas pastas, a objetividade realista com o devaneio romântico, a austeridade parnasiana à audácia decadentista. Que ao abrir a pasta das “Alegrias” seja incontestavelmente alegre seu conteúdo, que a das “Expectativas”, além de se manter escassa e quase vazia, não me deixe a sensação ambígua do gosto amargo do boldo, que a das “Memórias” me alegre com mais de muitas, e que todas elas (alegrias, expectativas e memórias) possam traduzir-me neste semestre que já anuncia o fim do ano.

E as crianças suspiram aliviadas porque parece que, afinal, vamos mesmo partir!

21/07/2009

Das sopas

Hoje de manhã levantei-me com a perspectiva de fazer duas sopas para alimentar as pessoas que convidei para jantar em casa à noite. Esses dias vêm encontrar-me invariavelmente animada e cheia de energia – cozinhar para os outros provoca-me essa comichão de prever e antecipar os encontros, de curtir cada instante dentro da cozinha que, em outros dias, daqueles cotidianos, desanima só da gente passar perto da porta. Quando há coisas especiais a fazer, a vida enfeita-se de outros tons!

São boas oportunidades, essas dos convites, também para limpar, varrer, lavar e arrumar a casa – e a família, embora às vezes lance um suspiro coletivo quando aviso que “a propósito, convidei algumas pessoas para almoçar/jantar/lanchar...”, alegra-se com essa ventania de arrumação que, de repente, me sacode. No fundo, no fundo, sei que todos gostam desse movimento, e gostam das pessoas chegando e das conversas acontecendo. Mas faz parte da encenação com a qual também nos divertimos.

Assim foi nesta manhã: as sopas fumegando no fogão de lenha, a cozinha naquela temperatura morna que chama todos pra perto, as maçãs assadas aproveitando o calor do forno. Como o fogão de casa tem serpentina por onde circula, esquentando-se, a água, os lavadores de louça de plantão têm ainda mais essa alegria: água quente pra lavar a louça, que mesmo em dias de comilança coletiva não deixa de ser deles. Ou às vezes, para bem da verdade, até deixa, porque há convidados simpáticos que em duplas assumem a tarefa, aproveitando o momento para uma conversa especial a dois.

Uma das sopas baseou-se numa engenharia necessária a quem faz listas de compras detalhadas e as esquece em casa, tendo depois de lembrar-se de cada coisa e saber que provavelmente esquecerá a metade. Desenterrei mais uma das receitas da minha bisavó (sua sopa de peixe) e descobri que, dos vários ingredientes, faltavam-me apenas quatro – porque a lista, de fato, ficara em casa. No meio da azáfama de cortar cebolas, tirar as espinhas aos peixes e cortar bem miudinhos os coentros, passa-me pela cabeça que mesmo não estando na receita, um vidrinho de leite de coco viria bem a calhar... Passa-me pela cabeça porque dentro do armário ele acenou-me entusiasmado, desejoso de mergulhar naquele caldo aromático que assomava da panela grande. Lá foi, e o resultado confirmou as suspeitas de que faria sentido. Essa imprevisibilidade das receitas, que precisam dialogar com as sensações que vão sendo despertadas pelo que se faz, é uma benção do ato de cozinhar, e vale pra refletir sobre outras coisas - se não, nem falaria disso aqui!

A escolha da panela também obedece a movimentos da alma. Quem me conhece sabe que o souvenir máximo é uma panela – o que mais trazer de Morretes, que uma panela de cozinhar barreado? O que mais das areias de Itaúnas, que uma outra de barro legitimamente capixaba? Da casa da vizinha que se mudou pra outros mundos, e decidiu antes fazer aquela venda de suas pequenas e grandes coisas que não caberão na mala, o que escolher parta manter a sua presença em casa? E dos confins de Minas, onde um senhor nos mostra no torno a sua arte de fazer panelas? Ora pois, diriam meus conterrâneos: panelas! Quando escolho uma delas, evoco esses momentos e eles enfileiram-se todos diante de mim; ao escolher, sei que escolho aquelas magias pequeninas das coisas que ficam na memória porque significam. Um prazer a mais!

Prometi um caldo verde a um dos convidados, e junto à panela da sopa de peixe, com mexilhões a boiar escarlates, vem aninhar-se uma menor (a do senhor de Minas), com as batatas já cozidas amassadas ao garfo, como recomenda minha mãe ao telefone (ela também saboreando o jantar a milhas de distância, lá onde caldo verde é prato do dia a dia). A couve responsável pelo verde do caldo virá depois, facilitada pela mais recente aquisição em terras cariocas – um legítimo cortador de couve de feira comprado ali perto da Barata Ribeiro.

Viagens não são viagens sem sua contra parte gastronômica – comer por onde se anda, sobretudo se é o que as pessoas do lugar usam para se alimentar, é engolir a cultura do lugar, como queria Oswald de Andrade fazer com o mundo da cultura alheia, antes de incorporá-lo deglutido ao nosso tupiniquim. É claro que demanda atenção e intenção, porque senão é como comer qualquer coisa em qualquer lugar. As sopas de hoje à noite levarão para dentro das pessoas a quem quero bem todas as alegrias e lembranças que esta manhã de cozinha fez assomar em minha alma. As montanhas de Minas e as praias do Espírito Santo estarão em momentos dentro de todas elas, ainda que não o saibam. As minhas intenções de leveza, de alegria, de encontros que se repitam e imprimam tatuagens coloridas nas almas de todos nós, também farão parte, em poucas horas, da corrente sanguínea que regue cada uma das células destes meus amigos.

Com este pensamento, deixo esta crônica por aqui – há ainda outras coisas que lembrei de fazer... Palitos de pão, frito no azeite bem quente, já experimentaram?! Acompanhamento fantástico para qualquer sopa, desde que quente!

Bom apetite a todos, neste dia 21 de julho!

20/07/2009

De associações de ideias

Numa crise de solidão noturna, agarrei-me hoje a um livro, salvação absoluta dos meus momentos mais negros. Decidi-me pelo velho e bom Vinícius, que nos ajuda a recordar o perdido, imortalizado nas chamas que não se extinguem. Do Vinícius, que não me tomou muito tempo, os olhos escorregaram-se-me para o Jorge de Sena da prateleira ao lado.

(Curioso que, na arrumação feita aos livros, quase tudo tenha mudado de lugar, mas algumas categorias tenham se mantido na mesma posição. As poesias portuguesa, brasileira, africanas de língua portuguesa e “universal” (uma manobra ideológico-espacial de inventar um universo vip para os lusófonos!) estão todas em seus devidos lugares, em prateleiras que se relacionam entre si na horizontal, bem diferente sensação da verticalidade da arrumação narrativa.)

Esse tal Jorge de Sena foi um sujeito interessante, pai de muitos (muitos mesmo) filhos, que se refugiou no Brasil fugido à ditadura salazarista, e depois disso na Califórnia, onde acabou ficando. Por aqui, fixou-se em Araraquara, onde escreveu e lecionou durante anos. Eu também vivi uns anos por lá e, nesse tempo, o Sena ocupou-me um tanto de horas, como monitora do Centro de Estudos que lhe adotou em homenagem o nome; foi lá que andei às voltas com o primeiro acervo de biblioteca que me passou pelas mãos. Várias histórias se contam do Sena. Entre elas, que, ao sair de Portugal para seu exílio quase-voluntário (qual deles não o será?), ergueu a sua taça, no jantar que lhe ofereceram, e dirigiu-se a seus colegas professores, que não se retiravam por conta própria, dizendo: “Insignes ficantes...”. Lembrei-me disso e ri-me, e logo a seguir, nessas associações de ideias rápidas que fazemos, lembrei-me do outro Jorge que me contou essa história – Cury, de sobrenome.

Professor de literatura portuguesa em Araraquara, tive o grato prazer de ser sua aluna durante o primeiro semestre do curso de Letras. Professor à moda antiga, sentava-se na sua cadeira e de lá falava durante duas, três, quatro horas. Falava, não – discorria sobre o que lhe dava na telha porque, já passados seus 70 anos de idade, lia e esquecia as ementas de curso com uma velocidade estonteante. O que era uma grande vantagem, porque salvo erro na ementa desse primeiro semestre estava escrito que estudássemos a origem da literatura portuguesa, e o Jorge era especialista absoluto em Camilo Castelo Branco, nada de origens portanto, e aposentava-se nesse semestre – portanto, teria eu ficado sem o Camilo desse senhor, situação lamentável. Aproveitei bem a oportunidade e ele percebeu – já naquela altura era difícil aluno que gostasse dessas aulas magnas semanais. Mas eu realmente gostava, até porque ele me trazia pra perto o cheiro do mar quando se encontra com o Tejo, entre o farol do Bugio e a curva da estrada que mostra de repente a linha tortuosa da costa lisboeta.

Não foi difícil que nos tornássemos amigos, e que ele fosse, depois de um tempo, a pessoa que me ajudasse a retirar obviedades do meu texto – algumas; outras, como ele diz, infelizmente fazem parte de mim mesma e dificilmente desaparecerão. Além de poético, o Jorge é também um sujeito cáustico, daqueles que é mesmo melhor ter como amigo!

A idade, longe de nos separar, garantiu-nos a possibilidade de trocas muito intensas, agarradas umas às outras de tão verdadeiras, coisa que talvez tivesse sido mais trabalhosa de acontecer dessa maneira simples e tranquila não fossem tão distantes os anos e as expectativas. Ainda agora, quando vou a Araraquara, é visita que nunca quero perder.

Quando acontecia de passar em sua casa com os dois filhos que tinha na altura, era certeza de exasperação de ambos; achavam-no parecido com o outro do livro (o Camilo de quem ele era especialista, incrível como se colam em nós as coisas das quais gostamos!) e o mais novo deles, mal se percebia virando a esquina da rua 4, quase em frente à antiga escola normal de Araraquara, começava a cantarolar - “manicure, pedicure, jorgicure... não chegamos em casa tão cedo!” Era entrar e demorar pra sair – livros, conversa, cafezinho, “fica pra jantar não vai ainda não”...

De solitária, hoje à noite, passei-me a saudosa, e decidi telefonar-lhe, um tanto estúpida por não olhar o horário. Mas com os amigos é assim mesmo: a gente lembra, não pensa, age – e acerta! Estava o Jorge justamente acabando de despedir o último dos filhos que lhe tinha vindo desejar feliz aniversário! Tivesse eu pensado, teria perdido essa chance. Só me esqueci de lhe perguntar em quantos anos ele já vai!

(Para quem se pergunta onde foi parar o Jorge de Sena, volto a ele, com dois de seus poemas que, espero, ajudem os insones a passar a noite.)

Escrito em Verona

As coisas não se vêem por metade.

Ou passas e as fitas de repente

pousando um longo olhar de eternidade

que logo vai aos fumos da memória,

ou viverás com elas lentamente,

gastando-te com elas, nelas vendo-

-te como em espelho que te sobrevive.

Mas o passar como quem visse tudo

e ali ficasse não ficando a vida

faz que as coisas se cubram de um cristal

opaco e as diluindo em corpo falso,

aquele que é quanto então mereces.


Ação de graças

Às vezes, com minha filha no chão junto de mim,

Fecho os olhos numa ação de graças...

Mas logo ela galreia,

Nem isso me consente.

E regresso um pouco triste a uma alegria imensa.

19/07/2009

Da cozinha, a la Laura Esquivel (ou de como é importante devolver às bibliotecas os livros emprestados)

Rissóis de camarão

Massa

1 chávena de água a ferver

1 chávena de farinha

Sal e limão sem casca

Juntam-se todos os ingredientes e, com o resto que sobejar, fazem-se sonhos, depois de bater à mão ou com a máquina, quem a tiver.

Creme de recheio

Coze-se o meio quilo de camarões, com cabeças e tudo, até estarem cor-de-rosa. Depois, descascam-se e pisam-se as cascas e as cabeças dos pequenos crustáceos num almofariz, até estarem desfeitas e poderem ser passadas por um pano fino. Faz-se um bechamel com um refogadinho de cebola picada finamente, e sete colheres de sopa de farinha. Pinga-se a água de cozer os camarões. Fica um tanto líquido. Juntam-se os camarões cozidos, salsa picada, sumo de limão e uma pitada de pimenta.

Abrem-se os rissóis com um rolo. Deposita-se uma pequena colher de recheio frio, fecha-se como num envelope e corta-se com as beiras de uma chávena, apertando bem para fechar o rissol. Passa-se no ovo batido e depois no pão ralado. Fritam-se em óleo quente, com cuidado para não queimar.


É de um dos livros que habitam a minha cozinha, esta receita. Escrita à mão, foi copiada do caderno de receitas da minha bisavó, que eu tanto pedi como herança à minha avó, mas que foi parar nas mãos da minha tia Teresa, que entende que o que ela quer é basicamente dela e pronto. (Nada de rancor, simples constatação. Eu nem preciso mais do livro, que está muito mais feliz na minha lembrança do que estaria na prateleira.)

A cozinha da casa da minha avó era muito maior do que precisaria ser ao tempo em que eu vivi nessa casa. Neta única durante muito tempo, companheira de dois velhos avós, dificilmente conseguiria ocupar o espaço que cinco filhas e um filho tinham deixado vazio. Até tentava, acho eu, inventando muitas e variadas distrações, umas permitidas, outras nem tanto, mas todas elas permeadas pela alegria peculiar aos seres infantis.

Nessa cozinha fervilhavam, ainda assim, panelas e cheiros. A entrada não me era permitida – hoje mesmo fiquei pensando nisso, quando mandei que todos os meus filhos se evaporassem da cozinha onde eu tinha tido a feliz lembrança de resgatar esta receita. Com a consciência pesada, porque afinal é tão bonito todos reunidos na cozinha, mães ensinando filhas, todos encantados com as alquimias alimentares... Pena que todos queiram, como eu provavelmente queria na sua idade, e por isso me vetavam a entrada na cozinha, apropriar-se de tudo e avançar todos os passos, cada um num determinado ponto do caminho. Quando a intenção não é, de fato, cozinhar, está muito bem. Quando se pretende alguma forma de produto final que dê gosto aos olhos e ao paladar, agradando os amigos que vêm para o almoço, o caso muda de figura. E as crianças saem, definitivamente, dos domínios culinários.

Mas enfim: mesmo vetada na maioria dos dias do ano, nos dias em que Dona Jacinta, cozinheira das grandes ocasiões, por lá aparecia, a possibilidade da minha presença na cozinha alterava-se. Dona Jacinta era grande e gorda, como deve ser uma cozinheira das boas, e não se importava de que eu ficasse por ali, desde que (minimamente) calada. Num único dia conseguia fazer o suficiente para alimentar o batalhão de gente que, por exemplo no Natal, abarrotava essa casa normalmente apagada. Os tais dos rissóis, os croquetes, as chamussas, e mais quilos e quilos de pequenas e grandes coisas saíam das suas mãos diretamente para a grande arca frigorífica (freezer, em lusitano) ou para a despensa.

A cozinha da minha avó tinha uma bancada retangular ao meio, mármore branco. Nesses dias, ficava coalhada de rissóis embrulhados na poeira do pão ralado. A luz entrava pelas janelas, e os rissóis pareciam encantados, brilhando nos pequenos pontos dourados pousados. Lembro-me bem que era disso que eu gostava, embora parecesse que o grande barato era passar os dedos no ovo e depois na farinha de rosca, e ficar imensamente melecada com o resultado. Enquanto crianças, guardamos tantos segredos que é difícil até desencaixá-los todos aqui de dentro, percebendo a origem da atenção que se dá, por exemplo, às coisas pequenas. Já me disseram que eu presto muita atenção às coisas, o que é engraçado por não ser tão óbvio, e eu acho que é por causa dos tais dos rissóis. E acho também que a mexicana Laura Esquivel deve ter passado muitas horas na cozinha da sua casa de criança, olhando as coisas do seu posto, imóvel como o meu.

Laura Esquivel é autora de “Como água para chocolate”, que anos mais tarde se transformou em saboroso filme. Se o leitor a quem emprestei este livro estiver lendo esta crônica, por favor devolva-o à Biblioteca Aventura, para que outros leitores possam deliciar-se e entender a origem desta crônica!

18/07/2009

Da música que povoa de gente a vida

Tenho uma amiga paulistana, melhor professora de teoria literária que já tive, que me disse um dia que eu tendo a circunavegar-me quando escrevo, tentando chegar ao meu mesmo ponto de onde saí, como se buscasse sempre uma solução existencial para todos os meus dilemas. Às vezes acho que tem razão, outras nem tanto, que eu não sou tão previsível assim. Espero.

Mas o fato é que as coisas se juntam e agregam, à minha revelia. Senão, vejam.

Ontem mesmo, depois de terminar uma infinita tradução de comandos HTML (atividade que, se não fosse lucrativa, eu certamente deletaria das minhas madrugadas), decidi dar uma volta e olhar para o céu. Já o tinha espiado numa das incursões à cozinha em busca de chá, e essas horas noturnas em frente à tela do computador são eficazmente equilibradas com passeios às escuras, quando todos dormem e eu tenho certeza de que as ruas estão vazias e as casas adormecidas.

Mas, então, lá estava eu ontem andando e olhando pra cima, a imensa via láctea que cruza o Verbena de lado a lado a servir-me de teto. Quase nova, depois dessa cheia de dia 7 de cortar a respiração, a lua recolheu-se e as estrelas são mais que muitas. Voltei pra casa e adormeci muito rápido, para acordar no dia seguinte, hoje, pensando no quanto é fundamental apagarmos as luzes pra conseguir ver o brilho da nossa escuridão interna (é por causa de coisas assim, acho eu, que aquela minha amiga pensa aquilo de mim).

Entre as coisas que tinha pra fazer nesta manhã, o correio estava entre elas, e dentro da minha caixa postal, que nestes tempos internáuticos não me dá grandes alegrias, um pacotinho quadradinho, bem simpático, com carimbo de correio estrangeiro. Como me descobriu aqui esse remetente de outros tempos, tantos anos passados, eu não sei – mas depois do céu de ontem, cai-me hoje nas mãos outro, um Missouri Sky, da dupla Charlie Haden e Pat Metheny – sem lua nem estrelas, somente um céu que parece de chumbo, um cd que vem lembrar-me mudanças de casa e trazer-me associações inevitáveis entre coisas e pessoas e músicas. Assim, quando como hoje ganho de presente sons do passado, volta-me a vida (cheiros, toques, olhares, corpos, mutações do tempo, naftalinas a evaporarem-se de baús cheios de frestas), e volta-me também uma vontade de ter certeza de que as coisas talvez não precisassem ser da maneira como são.

Graças a esse cd, circunavego-me pensando que há nas trilhas sonoras da vida acordes que podem sugerir lembranças de coisas que nunca aconteceram, mas poderiam. Esse tipo de associação talvez seja coisa de mentes pontualmente esquizofrênicas, que se comprazem em se re-fazer dia a dia vivendo situações que poderiam, mas não foram. Demanda um tanto das virtudes da infância, porque ninguém em sã consciência quer ser flagrado na sala de casa dançando animadamente com quem não está lá à vista de todos – só à vista da imaginação do dançarino.

Nessa linha, a minha trilha sonora favorita é Nina Simone, tão versátil que além de me inspirar passos de dança, também me ajuda a escrever tarde da noite, embalando gentilmente essas horas que se arrastam pela madrugada – horas em que, além de traduzir, em outros momentos do ano desfolho cadernos cheios das preciosidades desses seres tão especiais que respondem pelo nome genérico (às vezes pouco apropriado justamente porque genérico) de “alunos”. A mesma Nina Simone resolve meus impasses poéticos – gosto de ler em voz alta, enquanto a ouço, o que me transborda de poesia. Dá certo, às vezes - é a maneira que encontro para descobrir o tom que faltava ao penúltimo verso. E tampouco nesses momentos me agradaria uma plateia surpreendida pelo sarau improvisado, que por isso mesmo também acontece protegido pela madrugada!

Este cd vem juntar-se às minhas últimas semanas, carregadas que têm estado do tom nostálgico que nada mais é do que o pulsar lusitano que eu cubro com alguma maestria - nem sei se é grande a vantagem: para que cobrir uma coisa dessas, afinal?...Tenho perambulado pelas pastas de música do meu computador em busca da evocação dos passados reais, distantes e recentes. Porque ontem já é passado, se formos ver bem.

Redescubro, nesse passeio que agora tem o céu de Missouri a colorir de chumbo o meu dia, a dificuldade de viver transplantada, com recordações e lembranças de vida que habitam vários continentes, países e cidades, fazendo com que nunca uma pessoa possa ser inteira num único lugar. Resolver recordações a dois, ou em grupo, torna-se às vezes impossível, se elas se perdem no passado distante, porque as referências são tão outras que nem há do que falar. E assim a música é às vezes a solução; descobrimos que a mesma evoca algo do passado de todos, ainda que coisas diferentes. No silêncio para ouvi-la, resolve-se aquilo que não é possível dizer, porque a rigor no fundo nem existe. Mas temos a sensação de termos mais alguma coisa em comum, com a vantagem (essa, sim, real) de construir a partir daí uma ponte para o futuro, pelo fato de ter escutado junto.

Há anos atrás, pena que tantos, visitou-me um amigo querido de muito tempo. De repente, houve um passado gigantesco que povoou a minha casa, chegando a deixar seus habitantes desconfortáveis, pelo tanto que não cabia no presente e vivia décadas atrás no passado. Mudou-se a língua de uso, porque eu queria aproveitar cada instante e cada molécula dessa presença para re-vivenciar e re-significar tudo o que me construíra junto a ela. Os dias pareciam voar alucinados, distanciando-me, pela falta de tempo, da possibilidade de revisitar todas as músicas que diziam o mesmo aos dois, coisa tão rara, descoberta tão simples e tão poderosa, que nem sempre tenho como gozar. E foi assim que nos descobrimos relembrando letras de músicas que nem existiam mais, trauteando pequenos pedaços e morrendo de rir, em duo, submersos dentro daquilo que lembrávamos.

Músicas do passado são como levantar o véu do tempo e espreitar para trás – pode ser que dê medo, porque todos temos no passado mais de muitas sensações, momentos, palavras ditas ou não resolvidas, gestos esboçados ou reprimidos que não gostaríamos de resgatar, mas fazê-lo purifica-nos do que nos polui, do que nos impede de ser melhores amanhã, de abrir a janela no fim desta madrugada e perceber o quanto a vida é generosa. Inevitavelmente junto às músicas estendem-se as relações de amizade, esticam-se os dias como elásticos, e podemos tocá-los, aos amigos, mais uma vez, antes de, com suavidade, deixar que voltem ao seu lugar de origem e nos deixem a nós mais tranquilos e seguros de que, no fundo, nada acaba.

Filmes de amor

Ontem à noite escolhi assistir três filmes de amor de verdade. Se os assistisse até o fim, poderia dizer se seu final é feliz ou não, mas eram filmes quase de verdade e seus finais ainda não estão escritos. Aliás, que importam os fins, se é do caminho que se perfaz o amor?

O primeiro dos meus filmes assemelhou-se ao deslumbramento de ter diante das mãos o amor que se imaginou durante anos, e poder tocá-lo; a delicada fragilidade de ter alguém à nossa espera à noite, quando há muito se desfez a esperança de que isso pudesse concretizar-se; o sutil encantamento que dura talvez não anos, mas quase eternidades. Amor juvenil, transformado em maduro pela passagem dos anos e dos dias, que cada amanhecer aproximou do real acontecer. Esse amor expressa-se nos olhos que se beliscam a si mesmos, embriagados com o outro que está realmente sentado ao nosso lado.

O segundo filme, tema preferido quando compro ingresso, conta-me do sentimento que se diz inteiro, mas se realiza aos pedaços. Do amor que é um, mas que o outro percebe como meio. De um amor que tem seu próprio espaço, cristal intacto e límpido, inexpugnável e impenetrável, mas neste pequeno fragmento que me revela o filme, esse cristal está no momento coberto, e é difícil levantar-lhe o véu. Esse amor é antigo, e talvez por isso mesmo tenha espaços difíceis de medir, equilibrar, adequar às necessidades do outro, quando se imaginava que tudo já estava construído e sólido; é um amor que exige, que demanda, que desacomoda e desarranja a cama bem feita. Esse amor rende-se às paixões que se criam à beira do caminho. O que para um dói, para o outro cura, e não é fácil estar-se do lado de cá, tanto quanto não é o lado de lá. Não há soluções, não há receitas, e nessas horas o mundo e suas regras atrapalham o fluir do que se sente, e que só encontra a saída no caminho de si mesmo.

Terceiro filme – um interregno de amor tranquilo, que volta de viagem e traz a família inteira. Um intervalo de tempo construído sobre as vitórias do percurso, sem tempo ainda para olhar-se a si próprio no espelho e incomodar-se com as imperfeições. Mas há anseios que se insinuam por baixo da toalha da mesa, e que um dia virão instalar-se em uma das cadeiras, junto aos convivas, esfriando a refeição ainda não começada.

Aos momentos do amor, quero-os todos. Quero aquele que me aquieta a alma, quero aquele que a desestabiliza e inspira, aquele que se desdobra no tempo e se revela nos anos adiante. Quero a vida à minha frente e o resgate do passado, e quero sobretudo ser capaz de que os outros queiram o que queiram, e a minha capacidade aberta e ampla de deixá-los quererem e alcançarem.

Os dilemas do amor, em filmes ou na vida real, clamam por luzes e cores, para que não nos deixemos a nós mesmos o legado triste do cinza das noites de insônia, imaginando o onde está, o com quem está, o quando volta. Vou-me deitar nesta noite desejosa de encontrar em meus sonhos a solução para as dores de amor. Mas o que mais desejo, e quem sabe consiga sonhar com isso!, é convencer-me de que meus amores estão todos ao meu redor e que os vejo a todos, e sou vista por eles, ainda que partes de mim mesma possam escapar-me e atraiçoar-me o caminho.

Quem sabe sonho com a solução para os momentos em que eu própria me desencontro do meu caminho, e permito que o mundo, e os outros na minha vida, decidam o que apenas a mim compete. Quem sabe nesse momento do sonho, como num filme de amor, os nossos olhos se dispam das máscaras que cultivamos durante tanto tempo e possam se reconhecer no brilho das pupilas do outro.

16/07/2009

Do parto que me faz chegar

Reli uma das minhas últimas crônicas agora à tarde, e lembrei-me da minha prima Inês. Como as lembranças normalmente correm amarradas a um fio que as conecta ao que acontece no presente agora, fui em busca do porquê queria eu resgatá-la aqui nestas páginas.

A Inês foi o primeiro nascimento de quem eu tive realmente consciência. Filha da minha tia mais nova, não me traz nenhuma lembrança especial da gestação em si. A única coisa de que eu me lembro é do seu parto - um despreparo de assustar qualquer um, um medo quase pânico estampado nos olhos, uma despedida à porta do centro cirúrgico de cortar o coração do meu tio aos pedacinhos. Ficamos ele e eu, olhando desajeitados para as unhas das mãos, que ambos roíamos – hábito nada saudável e que cola em nós como piche, mas que naquele momento nos manteve ocupados até começarmos a ouvir os gritos da minha tia. Ficaram-me gravados para todo o sempre. Gravados da maneira como eu os interpretei, e não exatamente como eles deveriam soar se tivessem sido recolhidos numa então fita K7. O que a minha memória guardou foi a descoberta da chave do mistério, das portas abertas para o além, para o sobrenatural feito som naqueles gritos escandalizados, que se espraiavam pelos corredores, subiam e desciam escadas, se infiltravam em todos os recantos, como se transportassem uma alma em busca desesperada pela porta de entrada neste mundo.

Contou-me ela depois o quanto lhe foi horrível, sofrido, terrível – tanto, que nunca mais sequer cogitou ter outro filho. Eu confesso não ter acreditado em uma palavra do que me disse: achei muito mais importante o que eu tinha ouvido. O dia 31 de agosto ficou marcado, e por causa disso a Inês gosta até muito de mim, porque é o único aniversário de primo meu que eu nunca esqueço. Dos gritos, nunca falei a ninguém, e é curioso que, logo hoje, eles apareçam aqui. Mesmo eu já sabendo disso que conto, porque tenho alguém ao meu lado achando engraçado que só agora, sete partos próprios passados, esteja eu tecendo considerações a respeito dos gritos do parto, como se me fossem coisas de repente surpreendentes e desconhecidas...

Do parto da Inês ao próximo que me marcou, do Leonardo, vai uma fiada de anos. O Leonardo é filho da Laís, minha primeira amiga em terras brasileiras. Carioca e médica, a Laís é de um desbocado saudável que nos faz rir de um dia ao outro. Dividi com ela algumas dores que só ela sabe, e com ela descobri os primeiros livros que me plantaram na cabeça a ideia fixa de ter um filho. Muito antes de engravidar, esse filho já tinha nome e maneira de nascer – e sobretudo tinha maneiras de não nascer, e uma delas era o grito, que eu não queria, porque não tinha entendido. Leboyer encantou-me tanto com a penumbra, a suavidade e o silêncio possíveis no momento de nascer, que o grito da minha tia ficou submerso naquelas fotos do livro desse obstetra famoso, a preto e branco e meia luz, de um recém nascido de olhos lucidamente abertos. Esse primeiro parto, anos depois, e os outros que se lhe seguiram, primaram pelo grito que eu não segurei – não porque quisesse soltá-lo, mas porque ele se soltou a si próprio, tarefa de ser autônomo que é, porque não é nosso.

Filhos chegaram e partiram, meus e de outros. Cada um a que eu tenho o privilégio de acompanhar, seja na ida, seja na vinda, instala a meu lado a mesma impressão sobrenatural do grito da minha tia. Hoje consigo avançar na percepção, dar-lhe contornos de coisa terrena, tentativa frágil e imperfeita de transformar em palavras e imagens algo que de antemão eu sei não ser verbalizável. Acho que fico mais tranquila assim; é provável que haja muitas coisas que escondo atrás das cortinas das minhas palavras.

Nessa vontade de conseguir comunicar e transmitir o que sinto, algumas hipóteses se levantam – uma delas, hoje, 14 de julho, permaneceu muito forte e luminosa diante de mim o dia inteiro. Tanto que, embora hoje já não seja dia 14 no calendário, para mim ainda o é, e demorará a passar pelo menos mais uns três dias.

A França inteira deve estar em festa, neste 14 de julho – o feriado que celebra os ideais que fizeram a Bastilha ser rendida deixaram-nos de presente o “dia mundial da liberdade”. João Gabriel escolheu justamente este dia para chegar – ou para partir, e assim chego à ideia que rondou o meu ser durante as horas que antecederam esse momento. Somos chegados ou somos partidos? Que sentimento atávico é esse embutido em meus atos, que faz com que, mesmo no momento do parto, eu precise dizer que chego? O que nos permeia, no processo de encarnação, para entrar neste que será conquistado como nosso mundo, a não ser a dor do ter de sair de onde estamos?

O grito que me encantou no dia de nascer da Inês é o mesmo grito que ouço ressoar nos pulmões da Ana, mãe do João. É o grito de fundação, o grito de decretação, o grito de aviso, o primeiro que jamais se repete. É o grito que nos une, seres que vivemos em dois mundos, num terceiro de substância efêmera e volátil, transcendental passagem, que dura apenas um instante e que, se não estamos atentos, vai-se irremediavelmente. É o grito de poder que junta o que é separado, e o grito do saber-se só daqui a pouco. É o grito em que ressoam abertas todas as possibilidades da vida de quem chega, o grito que alerta quem parte e que o desperta para a nova existência, forçando o seu desprendimento do limbo de lá e o seu adentramento no limbo de cá.

Pudessem os moribundos gritar (e não podem porque precisam escutar quem lhes grita do outro lado), gritariam – para despedir-se de nós, para nos libertarem desse limbo em que ficamos, para nos dizerem que alguém lhes grita do lugar para onde vão, certeza do não sermos nunca sozinhos.

O João nasceu ouvindo o grito poderoso da sua mãe, entregue ao ato que o tornou nosso. Neste dia consagrado à liberdade, o João pode começar a libertar-se das amarras do mundo que ainda carrega ao seu redor, e entrar pleno e rico no mundo que seus pais lhe estendem aos pés, com um amor que se derrama em lágrimas nesse momento do grito. As lágrimas, essas, uniram-nos a todos. Do grito, só a Ana foi capaz.

15/07/2009

Meu primo Luís

Meu primo Luís tinha (e tem) cinco ou seis anos a menos do que eu. Isso costumava dar-me um ar sério de “sou mais velha, porta-te bem”, que hoje até me parece ter se invertido, tão sério e compenetrado é meu primo, a quem vi há alguns meses, no batizado da filha da Inês, outra prima de quem falarei em futura ocasião.

O Luís morava, quando pequeno, em outra cidade, e apenas passava as férias conosco, ou os feriados mais prolongados, às vezes. De qualquer forma, divertia-me quando ele estava, porque eu não precisava mais andar por aí sozinha ou acompanhada de amigos imaginários que só a mim respondiam. Luís apreciava todas as minhas brincadeiras e encarava todas as ideias que eu tinha. Ambos gostávamos de plantar – ou eu gostava, e ele, por gostar de mim, gostava também. E gostávamos de cães – ou a mesma coisa: eu gostava, e ele idem, por gostar de gostar do que eu gostasse.

Num dos invernos da nossa vida juntos, eu decidi, antes das férias, plantar batatas. Escolhi um trecho bastante grande do terreno da casa de meus avós e dispus-me a cavar e revolver a terra com afinco, pois ouvira dizer que boas batatas precisam de solo bem macio. Chovia, e logo passou a chover mais. Minha avó, que apreciava toda disposição que significasse trabalho, e a incentivava mais do que qualquer outra coisa, chamou-me para por as botas e a capa de chuva e ainda me disse que, “com esta chuva, melhores as batatas te sairão!”.

O Luís chegaria logo, pensava eu enquanto cavava, gotas e mais gotas a escorrerem do meu nariz em direção ao chão, cada vez mais encharcado e revolvido. Com a teimosia que minha mãe admirava em mim (chamando-lhe “persistência”), permaneci à chuva até quase escurecer. Decidi então voltar, um tanto decepcionada por estar ainda longe de terminar – talvez, afinal, o talhão das batatas pudesse diminuir com a manhã...

E o Luís chegou, nessa mesma noite, ainda a cheirar “a capital”, como ele gostava de dizer que era onde vivia. Foi tomar banho (pareceu-me que) animado com a grande plantação de batatas quer faríamos no dia seguinte. Antes de dormir, lá fomos ao “oito maluco”: jogo pouco razoável de cartas, daquele tipo em que nos divertimos mandando ao próximo aquela carta que o fará comprar quatro ou oito cartas do monte – sendo que o objetivo do jogo é ficar sem nenhuma. As cartas ficavam guardadas em uma das nossas latas secretas (nossos outros primos, todos mais novos e anos mais tarde, divertiam-se trocando as mesmas de lugar, de tão secretas que eram...). Esta era uma lata de cerelac, o neston da época. De alumínio, beiradas bem apontadas.

O Luís, além de mais novo, tinha pouca sorte no jogo (o mesmo não se verificaria mais tarde no amor, confirmando o ditado) e um temperamento pouco fácil (que, por outro lado, se manteve, parece, no quesito amoroso). Custava-lhe perder e mais ainda lhe custava, nesse ano, perder para uma menina – prima, ainda por cima, e com a capacidade de amolar seu humor como faca de açougueiro.

Lá estávamos, nessa noite, à lareira, no velho tapete surrado com arabescos que era preciso adivinhar, o cheiro da lenha de abeto a arder nas nossas narinas, as luzes iluminando pouco de nós mesmos. Uma boa rodada garantiu-me dois quatros e um oito – e eu ri-me por dentro, certamente sinalizando o riso por fora, porque foi nessa hora que o Luís começou a ficar vermelho (hoje ele fica vermelho por outras razões, que não vêm ao caso). O Luís vermelho era realmente engraçado – as suas grandes e salientes maçãs do rosto pareciam explodir em vários tons, e os olhos injetavam-se de um jeito que me fazia dar graças a Deus por ser a mais velha e não ao contrário. Isso só me fez, de fato, rir, como me disseram mais tarde meus tios, que pareciam ter assistido a tudo de camarote, imobilizados na ação.

Mas então lá estava o Luís já vermelho só com a minha risada interna, e eu com os dois quatros e o oito na mão... antecipando as gargalhadas de despejar uma, duas, três cartas assassinantes em cima do monte entre nós. E lá foram: uma, duas e três. O vermelho tornou-se escarlate, e num ápice o Luís jogou em mim a única coisa que tinha à mão - a lata do antigo cerelac, hoje neston, a tal bem apontada. Com tanta vontade o fez, e com uma pontaria tão certeira (que sempre teve e manteve nas caçadas que o divertiriam anos depois), que a lata me acertou em plena testa, bem ao meio, e de quina. O corte jorrou uma quantidade de sangue tão descomunal (lembra-me a minha memória de menina, que talvez exagere as coisas que em pequenos nos parecem grandes) que o Luís, pouco afeito a histórias que envolvessem hemoglobina, de escarlate passou-se a cera e de cera a desmaiado. Ninguém sabia a quem acudir. Eu gritava que ele acordasse, que não adiantava nada fazer-se de desmaiado porque amanhã ia apanhar era com a enxada das batatas, e por aí fui, perdoada por todos porque afinal a vítima ainda era eu.

Quem me levou ao hospital foi o meu tio Zé, meu modelo de homem à altura (ele não sabe disto, e vai rir quando ler, com certeza). Hoje eu acho que lhe perceberia a preocupação porque, mesmo com a memória infantil, era sangue bastante. Mas naquele tempo ele só queria era fazer-me rir, e eu duvidava que ele entendesse que era sério e que eu queria mesmo era chorar – mas a possibilidade do Luís vir a saber que eu chorara, secava-me os olhos instantaneamente.

O Zé desfiou uma quantidade de piadas com pouca graça, que poderiam ofender-me, mas vindo dele não o faziam. Referindo a alcunha que me dera (”imperatriz do Biafra”, alusão politicamente incorreta ao resultado semanal da minha pesagem, acontecimento familiar de extrema importância), estranhava que tivesse eu tanto sangue. Ao chegar ao hospital (meu avô à porta, batendo o pé imaginando o que teria eu conseguido arrumar àquela hora), levou-me num piscar de olhos até o banco de sangue, pedindo à desnorteada enfermeira de plantão que me desse logo uns litros, porque se metade do meu peso era líquido, com certeza já tinha chegado ao fim.

Foi meu tio Zé quem segurou a minha mão quando o médico (nem lembro qual, seria meu avô?) abriu e fechou o corte com uma mão, enquanto empunhava com a outra uma seringa de vidro de antigamente, com ar pensativo e demorado. E foi meu tio Zé quem deu a primeira gargalhada quando eu me aborreci seriamente porque o médico decidiu que não valeria a pena a sutura, porque ficaria mais aparente e o melhor era mesmo um ponto falso. Não gostei da palavra falso – “Como assim um ponto falso? Eu quero um ponto de verdade, que eu não gosto de falsidades!”. Foi o suficiente para afinal chorar – de raiva do tal ponto falso, que ainda por cima me custaria (como custou) anos de gozação do Luís.

As batatas? Foram plantadas, na chuva do dia seguinte, num reduzido talhão graças à minha testa. Não me lembro se nasceram ou não, mas cada vez que, agora adulta, encontro o Luís, franzo-lhe a testa, e ele olha-me desaprovador – homem sério, com certeza não se lembra de todas as risadas que demos quando éramos pequenos, ou então lembra-se e acha que são coisas que não lhe pertencem mais. Os anos passaram-se e as nossas vidas distanciaram-se, transformaram-se em abismos inesgotáveis de não existirmos mais um para o outro.

É pena que criemos tanta distância de nós mesmos, através do espaço que inventamos para os outros, e que os outros inauguram em nós. Vejo pouco o Luís, mas quando o vejo parece-me que foge das minhas mãos um pouco de mim mesma, que fica à procura dos olhos dele para refletir aquilo que foi, como se sem o seu reflexo o universo da minha vida soasse falso, tão falso como aquele ponto que afinal deixou sim sua cicatriz na minha testa. Além da cicatriz, que me garante ser tudo isto verdade, ficaram-me as palavras, para esse exercício constante de devolução do que fomos ao que somos, para que preservemos a possibilidade de virmos a ser um dia.

Das visitas das férias

Acordei hoje pensando na sorte de viver rodeada de amigos, que entram e saem das nossas vidas e casas com o à vontade das coisas sentidas como naturais e certas. As visitas destas férias têm me transmitido essa sensação. A maioria prefere chegar sem aviso, o que é a delícia suprema – ser-se surpreendido, sem ter sido preparado, para aquela conversa que não se imaginava, exercitando a maleabilidade de deixar pra depois o que é do depois, porque realmente os amigos vêm antes. Precisam vir antes.

Há aqueles que, com sorrisos que às vezes não se decifram, antes se adivinham, trazem outros que ainda não se tornaram amigos, mas o farão certamente, porque o olhar é límpido e constrói pontes de interesse, daquelas que se projetam para atravessar vidas. Esses, introduzidos à realidade desta casa, parecem assustar-se com a profusão de pessoas e de movimento, especialmente quando mais amigos chegam, encontram-se à porta e vão se juntando uns aos outros. Tão natural que nem é preciso apresentar quem não se conhece – as apresentações são lembradas só no fim: “aliás, vocês já se conhecem, não?”. Basta um expirar mais concentrado e um sentar e relaxar verdadeiro, que tudo parece entrar nos eixos e o tempo passa e ninguém percebe.

Há os que demoram a aparecer, e quando o fazem é uma festa de reencontro que parece ter se interrompido ontem. Há tanto a por em dia na conversa, terminando por assegurar que é preciso que nos encontremos mais vezes, e com tempo, já sabendo de antemão que isso não será verdade, porque é assim mesmo: é de repente e naquele dia em que menos se espera que esses encontros são encontros. Senão, seriam outra coisa, presa ao sabor comportado das marcações prévias, que não combina com esses amigos especiais, mesmo que nos unam laços desses que se decidem na igreja.

Há os que reaparecem viajando de outras eras, eliminando a barreira do gap geracional. Trazem-me a sensação indescritível da transformação de filhos em companheiros de alma, diluindo a impressão da responsabilidade materna e lembrando que a substância dos encontros cármicos é de outra natureza que não a terrena e que, em algum momento, aqueles se sobrepõem a estes. Se chegam e se acomodam, metamorfoseiam-se aos poucos: a memória do passado de repente nos trai, e vemos espelhada a imagem do que foi. Novos assuntos, e aquele silêncio que não é o do desconforto, e estamos de volta ao presente.

Os que vêm de longe demoram-se mais tempo, e esses são sim combinados – o que dá a possibilidade da preparação e da antecipação, que valem em si por vários encontros. Se há tempo, e se a visita o consente no passado vivido, antecipam-se até os locais das conversas, pensam-se em detalhes os cardápios dos almoços e jantares, entre os sorrisos fugidos das lembranças do que nos alimentou em outros tempos.

Entre estas visitas, há aquelas com as quais eu sonho; com elas desenvolvo o saudável ainda que estranho hábito de falar sozinha – sabendo que dificilmente virão, pelo espaço, pelo tempo ou pela vida que nos separa. Posso torná-las concretas, a essas visitas, nessas minhas conversas sozinha, perfazendo o que poderia ser. Às vezes é de tal forma urgente que estes encontros se concretizem, que chego a convencer-me de que, se não estiveram, foi por puro desencontro, e nada mais. Esses amigos, de perto ou de longe, servem-me de terapeuta de mim mesma. Dando por terminadas essas conversas, percebo-me mais inteira, e mais entendedeira do que me acontece.

Os amigos, diria eu, são o sal da vida. O meu maior enorme de tão grande amigo (como diria um de meus filhos, na sua fase de encantamento com o tamanho possível das coisas), diz-me que podem ser também as ervas aromáticas, avesso como está ao sódio que lhe faz frequentar mais do que gostaria a sala de espera do seu médico.

E sim, talvez tenha razão: logo penso nos que me trazem o alecrim (aquele que ontem mesmo me disseram ser ótimo para as traças), com a sua ardência e despertar dos sentidos; naqueles que me rodeiam com a suavidade doce da lavanda; nos que me batem à porta através de seu cheiro, esse cominho que me evoca uma cozinha da África oriental, onde estão a esta hora os amigos desses com quem, terminando aqui, conversarei sozinha para trazê-los mais para perto. E há ainda aqueles outros que, às vezes ambíguos, despertam-me sensações de canela – o gosto não se parece com o cheiro, e prefiro só cheirar, evitando o desânimo de me sentir traída.

Os amigos aliviam-me afinal da terrível sensação da indiferença – e foi nela, percebo agora, em que acordei pensando, e não exatamente nos amigos. Acordei, talvez porque meus sonhos me conduziram, na urgência de encontrar o meio de mitigar a indiferença que talvez seja o pior de todos os nossos males. E que nos afasta inconsolavelmente dos encontros que mantêm os amigos, amigos.