06/10/2013

O parto e a dor

Há vinte e nove anos, minha maior aspiração era garantir um nascimento amoroso a meu primeiro filho. Queria a penumbra, o silêncio, o respeito pleno, a solidão necessária. Queria os cheiros conhecidos, os ruídos tranquilizadores, a panela da minha cozinha. Queria a plenitude diante desse momento que antevia, aos 19 anos, ser um portal para dentro de mim mesma. Não tive dúvidas de que esse lugar de segurança era a casa onde vivia todos os dias, onde a vida se desenvolvia.

Encontrar a pessoa certa que nos fizesse companhia levou quase oito meses. Quando apareceu, trazia na sua mala anos de experiência atendendo partos pelo Xingu. Embrenhamo-nos juntos por essa mata densa que é nascer em casa, e tudo o que se desmonta e remonta dentro de todas as pessoas que se aproximam. Gostei de estar fora do sistema que a tudo sem piedade engole; a minha aspiração buscava o espaço e o tempo em que as coisas se demorassem nelas mesmas, e não houvesse obediência a nada que não fosse, e eu pudesse acertar e errar a partir da minha intuição. Só isso: que fosse, na intensidade do seu ser. Ao mesmo tempo, perceber sem mediações a força primitiva da fêmea que se abre para que outro nasça, e abrir as portas para o divino manifestado na palavra falada assim que o nascimento é nascido. A fêmea, a mulher, a divina.

Demorei muitos anos a sair dessa mata. Agora, a cada convite para entrar dentro desse território, a emoção e a gratidão são as mesmas. Gosto das plantas que crescem nesse lugar. Gosto do cheiro de cosmos. Gosto da explosão de vida e dor e vida e dor, nessa ordem tão caótica que são as forças que não conhecemos entrando no nosso dia a dia.

Mas não posso deixar de reconhecer que o sistema engoliu parte do que me movimentava, nessa capacidade ímpar que tem de engolir tudo o que estiver pela frente e tentar se contrapor a ele. Uma espécie de sucumbir a uma força que parece insuportável. Claro que é maravilhoso que mais e mais mulheres possam ter seus direitos respeitados na hora sublime do parir; que possam optar, que possam escolher; que possam ser o que e quando e como quiserem ser. O problema que fica incomodando esta minha cabeça inquieta é se as escolhas e as opções são internas ou ainda e mais uma vez ditadas pelo que está do lado de fora (e que eu vou chamar de sistema), todo esse discurso certeiro que diz e dita e preconiza o bom. Não sei, mas tem alguma coisa me incomodando. Eu não sei se as mulheres que parem estão mais ou menos donas do seu parir, ou se diluíram por entre outros atores (além do médico que já era tanto) a responsabilidade que é só delas. E que é difícil assumir e carregar até a última consequência. E é solitária. E é assustadora. E transforma tudo.

Foram sete partos em casa, sete experiências de parir diferentes e únicas. Sete trabalhos. Sete bolsas. Sete cordões. Sete momentos. Sete placentas. Horas que o universo me doou para descobrir novas formas de passar pelo mesmo lugar, para que me reinventasse no encontro dos meus fantasmas, dos meus medos, do pânico inevitável do não sentir-se capaz e precisar da mão invisível. Receber a vida terrena de meus filhos em casa foi uma das certezas mais absolutas que já tive na vida. Acho que nasci com ela e não seria quem sou sem ela. Não seria todas as que sou dentro de mim mesma não fosse por ela.

Um dos sete seres que nasceu de mim atravessou o portal de volta, alguns anos depois de ter chegado até nós. Todas as vindas, e muito especialmente essa ida, moldaram-me o caráter. Aprendi a esperar, e a esperar em meio à dor. Aprendi a dormir por entre a dor. A dormir à espera da dor. A viver amparada pela dor. A perceber na dor a razão de estar viva. A olhar no espelho e ver a feição da dor sobreposta à minha própria, e gostar dela. A levantar-me no início dela e ser-lhe silenciosa nas primeiras horas. A ler nas contrações pequeninas a preparação para o Grande Trabalho. Aprendi a olhar-me para dentro em meio às tempestades violentas. A sentir a emergência de uma força que me transcendeu e à qual me dobrei porque é isso que é preciso fazer quando a transcendência se manifesta: dobrar-se, sem quebrar. Com paixão e entrega, irredutível e incondicional. A dor esteve, e está, sempre ao meu lado, companheira fiel disposta a manter-me o estado de acordada. Ao sofrimento, não lhe dei entrada. Porque não cabia. Nunca coube. E parece que me esqueço dessa lição tão implacável. Nunca vai caber.

A diferença entre uma coisa e outra, dor e sofrimento, veio à tona ontem à noite, enquanto assistia "O renascimento do parto". Demorei a ir ao cinema assistir este filme: queria que o pai de meus sete filhos, a coluna de luz que se ergueu inteira e bela a meu lado a cada um desses momentos de luz e transformação, estivesse junto, porque só ele para entender as minhas lágrimas oceânicas. E fiquei matutando, entre cena e cena, o quanto o meu ser sequer tenta fugir à dor, e o quanto se debate para não criar e nem ver criar sofrimento à sua volta, nem em si mesmo nem nos outros.

Olhando à distância de anos estes sete partos, a dor não me assusta como não me assustou; movimenta-me as entranhas, desperta-me centros vitais que o estado não-doloroso não alcança despertar. Nem tento encontrar grandes explicações, porque certamente não as encontrarei (ou entenderei) e o que sei, hoje, é que a dor é alimento da minha alma tanto quanto o seu contrário, que nem sei como se chama ao certo.

O que sei, e sem nuvens, é que dor não é sofrimento. Sofrimento não tem sentido. Sofrimento, ou os outros criam, ou nós criamos. Mergulhamos dentro dele como se panela de óleo fervente, e esse mergulho não é necessário. Necessário é amar e ser amado, é olhar e ser correspondido, é poder correr livremente pelos campos abertos da entrega e ter a retribuição exata do que se deposita nas mãos dos outros. Nesses campos, a dor tem espaço. O sofrimento, não.

Sobre o filme que é preciso assistir:
http://www.orenascimentodoparto.com.br/

Não tenho fotografias dos meus partos, porque quis guardá-los só na memória. A fotografia é da minha primeira inspiração, o livro de Leboyer, "Nascer sorrindo".



03/10/2013

Concha, mar e brisa

"A brisa do mar revolto dentro da concha aberta dos meus dedos": não há nada, em toda a minha vida, que me preencha com a verdade que têm as palavras. Tateiam-me por onde eu passo, oferecem-se nas mãos estendidas dos outros, que às vezes sequer percebem a oferta generosa que me fazem. É preciso que lhes agradeça.

Como concha, mar e brisa, esse presente de três palavras que acabo de receber neste instante, e tão simplesmente. Tenho treinado meus olhos para que não lacrimejem onde e quando não devem, porque as palavras fazem isso com eles, especialmente palavras úmidas, tecidas, inflamáveis; palavras que entram como avalanches dentro de mim e passeiam sem decência pelas minhas  mais internas concavidades. Despertam tatos, lugares do coração, do estômago, das veias, da pele. E os olhos querem transbordar a qualquer custo, porque é preciso deixar sair essa água toda que as palavras fazem catapultar dos meus abismos. Serão saudades da praia, da areia do mar, do calor do sol? Não, é mais fundo do que isso, são motivos que nem mesmo têm memória.

Mas não podem meus olhos lacrimejar - estou quase no final de uma aula. Se ainda fosse a meio dela, poderia até acontecer, porque haveria tempo para digerir. Prometo-me escrever assim que acabe (aqui estou em cumprimento ao prometido), para poder viajar em paz logo mais, sem ser sacudida pelas ondas desses mares que desaguam das palavras. Quero ser rio, hoje, e não mar.

Quando escrevo, automática e espontânea, "a brisa do mar revolto dentro da concha aberta dos meus dedos", não penso. São as palavras que me pensam, são as palavras que me guiam, nessa vida própria que têm e me revelam, a mim mesma, o que a tanto custo tento descobrir pensando. Não preciso, basta que escreva. E mesmo não sendo lida, e quando lida não compreendida, e quando compreendida não abraçada, as palavras permanecem, porque a sua essência é a permanência.

02/10/2013

O justo lugar do outro

Acabo de ler um artigo no The New York Times sobre crack e metanfetamina. Um estudo de Carl Hart, onde se constata que, ao se apresentar uma alternativa econômica a usuários de crack, muitos adictos tendem a preferir a alternativa, derrubando por terra a teoria de que o dependente de crack faria qualquer coisa pela próxima pedra.

Hart conclui que o desenvolvimento da dependência é uma questão fortemente ambiental, uma questão do lugar e da situação social do indivíduo. Mais uma voz que engrossa o discurso de que o que se precisa, em termos também políticos, são profundas remodelações na estrutura da sociedade, na maneira como nos organizamos e compartilhamos entre nós bens e serviços, e não medidas punitivas ou repressoras.

O que me chamou a atenção, e posso expandir em outras direções, é essa constatação da necessidade de serem oferecidas/existirem alternativas.

Alternativa é uma palavra curiosa. Desmembra-se sem demoras, separando o alter do nativa. Há anos que gosto da palavra alter - esse outro que não sou eu, esse conhecimento que me chega através da existência do outro, a corrente que migra entre dois lugares/seres: sempre há um outro além de mim quando o mundo se veste de alter. A solução (se pensarmos que são necessárias alternativas ao que aí está) está, portanto, ligada a um outro que não sou eu, e a a mim mesma quando estou no lugar de "outro" de alguém.

Nativa chega-nos, diretamente e pra variar, do latim: é o original, inato e natural, é o nascido, o ser que começa a existir. Só posso concluir que alternativa seja algo que nasce e é original e inato de um outro. Quando se nos é oferecido/existe, é uma bênção, uma dádiva, um presente sublime. Não vamos sozinhos a lugar algum. Precisamos de mãos que nos façam crescer, e quando o outro as estende, nasce a alternativa. Como é uma via de mão dupla, também o outro precisa da nossa mão estendida, para que possa crescer. Nós somos a alternativa do outro, e o outro é a nossa alternativa.

Porém, para que a alternativa possa cumprir esse seu objetivo (de mudar o rumo, o foco, a atividade, o vínculo, a direção das coisas) é preciso que três qualidades se manifestem (além da do interesse, que é básica e sem ela não há nem começo). Sem essas três qualidades, ou os movimentos são inócuos ou, pior, danosos. A primeira dessas três qualidades é a justiça; a segunda, a fraternidade; e a terceira, o altruísmo.

Se a justiça não rege o movimento que fazemos na direção do outro, levando-lhe o que nasce dentro de nós com clareza, precisão e verdade, criamos uma teia silenciosa e invisível à sua volta, uma teia ardilosa e insidiosa, que oprime, que queima, que magoa. A justiça demanda olho claro e ouvido acordado; demanda que nos ouçamos e àquilo que nos move; demanda que estejamos atentos ao que isso que nasce em nós poderá vir a provocar no outro, e o quanto é justo provocar no outro alguma coisa, se depois não a sustentarmos quando, quanto e como for necessário ao outro. A justiça está ligada a responsabilidade, e a um senso de respeito que ultrapassa quaisquer outras questões.

Esse respeito básico existe se quem vemos no outro é igual a quem vemos em nós: ou seja, nosso irmão. Quando não é a fraternidade que rege esse movimento do estender a mão, o outro distancia-se porque não alcança essa estatura que o torna nosso frater. Sem a luz e a percepção de irmandade, o outro é pouco, e nós somos pouco também, presos a esse pesado solo ilusório que nos faz julgar, supor e determinar sem de fato sabermos do que falamos. Se a fraternidade está presente, há uma doçura e uma sensibilidade nos movimentos que nos impedem de estraçalharmos o outro no que ele tem de mais primordial, que é o ser igual a nós mesmos. Mesmo inconscientes, é a nós mesmos que estraçalhamos.

Nessa troca entre dois iguais, o altruísmo ergue-se como faca de dois gumes. A sua contraparte, o egoísmo, vem-lhe colada e amalgamada. Toda ação comporta o olho no outro e o olho em nós mesmos. As alternativas, quando oferecidas com os olhos mais postos nos outros do que em nós mesmos, lançam-se desenvoltas, naturais, porque antes de pensarem/sentirem em si mesmas, nas suas tranquilidades, nas suas salvaguardas, nos seus confortos, nas suas prioridades, pensam/sentem com o sentimento do outro. Aí, sim, são alternativas a esse mundo que tanto dizemos querer ver transformado, enquanto o reeditamos igualmente duro e distante dentro de nós mesmos e do que vive ao nosso redor.


O artigo pode ser lido em:

29/09/2013

Dia de santo

de e para Júlia

É dia de santo quando Júlia abre a porta. Dia como o de hoje, 29 de setembro, dia de cavaleiro brilhante cavalgar pelo céu azul, dia de carregar espada e vencer as demandas e todos os dragões.

Faz tempo que Júlia não aparece. Mas hoje é dia de coragem, de decisão e de proteção; hoje é dia de deixar o medo esvaziar, dia de empunhar escudo e levantar cabeça; dia de resolver contendas. E as de Júlia são antigas, e cabe-me auxiliá-la.

Por isso Júlia abre a porta. Porque é dia. As dobradiças nem rangem, deslizam sólidas para permitir-lhe passagem. Júlia atravessa o umbral, sabendo com quem, sabendo por que, sabendo para que. Como num ritual, a adega.

Ao fundo, a mesma única janela fechada, os vidros pequenos escorridos. O cheiro brilha no sol que se esgueira por entre eles. O carvalho antigo flutua invisível a meio dos raios. Lá está a escuridão da madeira de outros séculos, e a luz que os tonéis transpiram, e o chão úmido levantado em gotas agarradas aos vidros. O chão quer-se água, mas cai e é chão outra vez, rendido à gravidade. Escorrega pela superfície do vidro prisão.

O cheiro da queda junta-se ao cheiro da adega, ao cheiro da luz esgueirada, ao cheiro da janela pequena, ao cheiro da porta que se abriu lentamente para deixar Júlia passar. Júlia percebe tudo isso de olhos fechados - deixou de espantar-se com o desconhecido que não quer mostrar-se. Entra no espaço que quer fechar, e sabe sagrado, com suas duas mãos cruzadas a meio do corpo.
A adega não é quente e nem fria; é mais um mastigar acre e cálido que desperta os sentidos naquele lugar exato de seu nascimento. A luz parece pequena, mas é densa. Os poucos degraus por onde Júlia precisa descer, em direção a esse cheiro feito de luz, não ressoam. Júlia um dia pensou que fossem duros e de pedra e gastos. Mas na semi-escuridão os degraus não eram degraus, só ilusões por onde os pés passaram sem dar atenção à advertência simétrica.
Ao centro da adega, o cheiro impregna-se. Parece que o tempo não vai a lugar algum. Cada milímetro de relógio diz que nem cheiro nem tempo nem noite acabam. Mas Júlia entrou acompanhada nesse espaço-passado, e as mãos invisíveis impedem que retorne ao que é vazio. O corpo de Júlia afasta-se, o cheiro dilui-se. O lago de tristeza que vive do lado de fora anuncia-se, uma rotina de escassez. E a mulher Júlia, essa que de medida tem os seus sonhos, ainda sequer saiu da adega.
O lago está parado, como é da natureza dos lagos. É um silêncio aquático liso, todo ele à tona, a escuridão calada da profundeza das águas movendo-se por baixo, sem que ninguém a veja ou pressinta. Há um abismo estreito entre a porta da adega e o lago. Nessa parcela escavada de terra, Júlia já se sentou à espera, nesse banco encravado na parede ao lado. Sentou-se ali pelo tempo que pareceu preciso, ou desejado, ou conseguido. Hoje seus olhos passeiam entre a adega e a tristeza do lago. Todo o tempo do mundo, e até fazer de conta outra vez que o lago não é triste e a adega não é o cheiro da noite que chega em passos forrados de velhice. Fazer de conta que se pode ficar o tempo que se queira com as narinas cheias desse cheiro antigo, os olhos fechados e por trás deles a fotografia de uma noite em que fosse possível evitar enfiar os pés no lago, e sentir-lhe as ondas avançarem corpo acima. Fazer de conta que a solidão do lago é diferente da solidão da adega, e esta diferente da solidão do abismo, e esta da solidão do banco, da solidão das noites, da solidão do tempo. E fazer de conta que há um cheiro no lago, quando não há. Fazer de conta que há um cheiro inconfundível na adega vazia, quando também não há.
A vida no lago é feita da solidão silenciosa da morte homeopática.

O lago faz morada, o lago penetra e invade, líquido onde só ar é preenchimento pacífico. O ruído único é o ronco surdo de motor de barco ao longe, no lago a subir em direção à garganta. A Júlia que hoje se posta diante do lago sorri seus olhos fechados: a linha do tempo mostra-lhe a sua própria imagem em busca do ressuscitar lento do carvalho, da janela, da luz e da água que vive no chão. Tudo dentro das suas narinas, nesse mundo feito de cheiros, mas mesmo nesse dia o lago está lá, em silêncio, de mãos dadas com o abismo do lado de fora da porta.
Do lado de dentro do corpo de Júlia, essa mesma que em seu movimento penetra a adega e mergulha no lago, a luz e a escuridão medem e regateiam seus espaços. A luz tateia com seus dedos finos os veios escuros que escorrem do lago, a sombra é como enguias que serpenteiam a sua escorregadez na água lodosa. Em meio à luta silenciosa entre os habitantes dos espaços, Júlia reergue-se no tamanho da lonjura do que enxerga. 
E, nesse instante, um corpo emerge da adega e do lago em simultâneo; olha-se; abre as suas duas mãos, e nelas cada um de seus dedos, e por eles despede as águas do lago e o cheiro doce e acre da adega submersa. Ao centro do lago, as últimas bolhas de água tentam engolir o mundo do ar. Nessa hora, fresca e clara e tingida de vermelho alvorada, não é possível fazer-se de conta que a solidão é prato compartilhado, nem o tempo animal invisível, nem a vida o esperar inerte de sentido.

O lago engole a adega, e ela repousa no fundo dessa água sem cor. Os olhos de Júlia encharcam-se de limpeza, e dessa água que brota de dentro dela levanta-se sem peso o dia de amanhã.

Foto: Thyana Hacla



23/09/2013

A morte, quando ressignificada

Batem-me à porta duas mortes, no dia de hoje. Distantes e diferentes, unidas num repentino quase a mesma hora. Nesse céu de equinócio, pode ser que se encontrem, pode ser que se auxiliem, nesse passeio pelo céu que as une naquilo que as difere.

A uma, leio-a em vida e em morte; tenho-a por perto em forma de livros, de versos, dessa forma de vida sobrevivente. A outra, guardo-a na marca da retina, na estampa impressa do abraço no corpo. As histórias que sei de um destes que se ausentam localizo-as nas páginas impressas, nas conversas de outros, nos retalhos de conhecimento que fui colecionando ao longo de muitos anos. As histórias que sei de outro sei-as porque as ouvi de sua própria boca, porque vi o desconcerto no movimento de suas mãos, a precariedade como manto sobre seus ombros, o ser indefeso na maneira como atravessava os umbrais das portas. Doem-me ambas, e por motivos tão distintos. 

António chama-se um, Julião chama-se outro. Um falou o português que aprendi de pequena; o outro, o português que se fala nas ruas de Santos. De um, tenho a internet plena de imagens da sua pessoa em vida. De outro, a memória dentro de mim.

Ao António, de nome completo Ramos Rosa, guardo-lhe a inspiração da palavra que aspira ao silêncio. Recorto, nesta noite que escolho como réquiem, fagulhas da sua poesia para que me acompanhem no seu acompanhar. É ele o poeta que diz

Escuto na palavra a festa do silêncio.
Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se.
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.

Apago as luzes da noite para escutar-lhe melhor as palavras. Espalham-se sobre mim como poeira dele mesmo.

Escrevo para que se levantem os pássaros de areia
e ao pulverizarem-se espalhem a poeira do seu desaparecimento 

E penso no Julião, esse Julio de sobrenome da Silva tão comum, esse homem de 51 anos que vi diante de mim sonhando com a caranguejada que prepararia para a família assim que fosse de novo um homem livre; esse homem grande, de sorriso largo e gesto acolhedor, sobrante de capacidade de ver na desgraça sua o riso à espera, o chiste certeiro; esse homem perdido dentro da incompreensão do mundo em que se planta, como árvore em busca do sol que nunca chega. 

Julião temia, sem talvez perceber ao certo, a saída da prisão. Temia o dia da soltura, o enfrentar do mesmo mundo de antes reconhecendo-se outro. Quem perceberia a mudança? Quem o veria diferente? Talvez se perguntasse à noite. Retardou o quanto pôde a sua soltura. Até chegar o dia de sair, mesmo dia em que, certeira e rápida, encontrou a morte no virar da esquina. 

Espero, nesta noite estrelada, que a sua ida tenha sido breve, que o seu riso tenha ecoado nos espaços siderais, que os anjos todos do céu estejam sentados à sua volta, gargalhando de alegria com o contador de piadas que acaba de chegar; e que se encontre à porta do céu sendo reconhecido pelos passos que conseguiu dar. E quem sabe António esteja também sentado à mesma porta, esperando a sua vez, e talvez um se sente ao lado do outro, e Julião se lembre dos poemas que lemos juntos, e mesmo que nenhum deles seja de António, que um reconheça no olhar do outro a humanidade silenciosa que só a palavra poesia tornada silêncio consegue conter.

Salve, António! Salve, Julião!


17/09/2013

Consumar

Cada coisa a seu tempo. Cada ser a seu centro.  Consumação foi a terceira palavra que recebi como legado de seu Zé do Coco.

Sento-me à beira do lago aqui perto de casa. Tenho mantido distância de lagos nos últimos tempos, as suas profundezas lembram sangue, sem terem cor nem gosto de sangue. Apenas doem como se sangue que jorrasse de ferida não cicatrizada.

A meio deste lago diante do qual me sento, persigo com os olhos este buraco escuro guardado por quatro paus imóveis. A água escorre para dentro dele com a velocidade do tempo. O lago nem se altera, e a água já se foi. Escoa-se em persistente silêncio. Não há nada a fazer, a não ser deixar-se escoar.

Lembro-me de Isaura, uma das minhas pacientes personagens, à espera do meu tempo de abrir-lhe caminhos. Não tenho como agora, digo-lhe baixinho, preciso dedicar-me ao que está consumado. Como este novo livro, acabado de sair da gráfica. Este novo livro, que assim que sai se torna velho. Tão sutil é a idade dos livros.

Ainda sequer o tenho entre as mãos, a este novo livro que já vejo em imagem. Mas porque o sei nascido, seu Zé segreda-me outra vez, a meio desta madrugada, a terceira das três palavras. E eu acordo com um sorriso pairando entre as pálpebras, viro-me para o outro lado, e durmo em paz. A vida está completa. A vida está consumada.


Imagem: Sergio Oliveira

14/09/2013

A arte da metamorfose

Decidi ler um pouco do pensamento de Hannah Arendt. Não exatamente pelo filme que assisti semana passada, mas por uma única cena, que ficou encrustada dentro de mim. É ela, Hannah, deitada numa espécie de divã. Nada acontece na cena em tons ocres e marrons, a meia luz, a cinza de um cigarro acumulando-se na ponta, sem falas, sem música, sem nada. E tudo acontece. Foi esse "tudo" imóvel e não-visível que me pôs em movimento.

Entretanto, chegou-me às mãos a foto da cabeça de touro criada por Picasso em 1943. Não lembrava da escultura, mas lembrava de ter lido em algum lugar que o pintor dissera que fantástico mesmo seria ele jogar a sua escultura fora e um homem comum qualquer passar e descobrir que com aquilo podia fazer um selim e um guidão de bicicleta. Era a isso que ele chamava de poder da metamorfose.

Acho que era na metamorfose das coisas que Arendt pensava naquele divã, fumando aquele cigarro, com aquelas roupas sóbrias e aquele olhar que parece dentro e fora ao mesmo tempo. Imagino seu pensamento tomando forma dentro de si própria, esse pensamento que nasce do seu próprio pensamento, essa metamorfose invisível de si mesma. Dizia ela que a capacidade de pensar é a fonte imediata da obra de arte. É nesse lugar, creio, que se aloja Picasso. Dizia também que a troca e o uso são a fonte imediata de todo objeto. É do reino do pensar que a arte nasce, assim como é do reino da troca e do uso que nascem verdadeiramente as coisas. 

Em um de seus livros, que creio ser o mais emblemático e por isso mesmo foi o que escolhi para ler ("A condição humana"), diz-nos que existe uma relação importante entre essas capacidades do homem (o pensar, o trocar, o usar), e seus atributos (os sentimentos, os desejos, as necessidades); uns estão relacionados aos outros, embora não sejam a mesma coisa e embora se precisem entre si. Sentimentos, desejos e necessidades, enquanto não transmutados pelo pensar, pela troca e pelo uso, ficam aprisionados dentro de cada um, não ganham o mundo, não se tornam.

O desejo, enquanto ainda não transmutado, é pura ganância. Eu quero algo, na minha mão, da minha forma, do meu jeito, no meu tempo. É um movimento indomável, incontrolável; fácil ver o sofrimento logo ali. Tanto podemos falar do desejo de coisas como do desejo amoroso. O desejo das coisas deixa de ser ganância quando se troca - tenho uma coisa porque dei/ofereci algo em troca, recebo na minha mão porque algo saiu dela. É um movimento equilibrador. Inspira-se e expira-se. No amor, o desejo cru e violento transforma-se em entidade de feição humana quando a troca acontece, quando o meu desejo descontrolado se entrelaça ao desejo do outro, e desse entrelaçamento nasce a transmutação do próprio desejo, nasce a possibilidade de equilíbrio que permite a respiração.

Necessidade é puro anseio. Precisa-se da coisa, faz-nos falta, como o próprio ar. Enquanto as forças do querer e da vontade (Arendt fala em "forças do uso") não são colocadas em movimento, a necessidade conduz também ao sofrimento. Aquilo de que se precisa precisa ser feito, é preciso que a mão se levante, que o passo seja dado, que o coração seja ativado pelas forças da coragem e se torne movimento. Enquanto se necessita e não se atende a necessidade, através da vontade tornada ação, anseia-se. E sofre-se.

Para Arendt, todo sentimento é uma dor muda - seja dor, seja não-dor. Ausência de dor, para ela, é fragmento minúsculo de tempo entre os estados de dor e não-dor; é diferente de libertação, que seria a saída do estado doloroso, algo que só se equipara em intensidade à própria dor. De qualquer forma, a dor. Sempre presente: a nossa percepção dela é que muda de um lado ao outro. 

É o movimento do pensar que, assim como a troca e o uso fazem desejo e necessidade transcenderem, faz transcender o sentimento. Esse pensar que não se prende, antes se solta pelo exercício da arte. Essa dor muda de Picasso que se transforma em escultura e ao mesmo tempo em pensamento sobre si mesma. Essa dor muda que se transforma em palavra sem destino, apenas para poder absorver e transcender o sentimento que não cabe no peito porque simplesmente não lhe pertence - é do mundo.




Imagem: Picasso, 1943

Entre o antes e o depois

Alguns dos últimos textos deste blog foram contaminados pela raiz daquilo que os fizeram nascer, uma quantidade um tanto acelerada de pensamentos emaranhados. Gênese e forma desdobraram-se em direções múltiplas, e cada desdobramento processou-se como novos feixes de pensamentos superpostos sobre a mesma coisa. Chamei "ideia" a essa coisa, esperando estar de fato dentro de um campo de possibilidades abertas. Quem sabe consigo apreender o gato de Schrödinger em sua condição binária.

O primeiro desdobramento andou em direção a esse gato - explico com as minhas próprias e provavelmente incompletas palavras. A proposta de Schrödinger constata que as ondas de matéria diferem das ondas eletromagnéticas e das ondas sonoras. Enquanto que a equação mecânica de Newton permite que localizemos com exatidão um objeto, a equação de Schrödinger permite que cheguemos a uma pluralidade provável de estados em que o objeto pode estar. Se não podemos observar o objeto diretamente, teremos de supor que o objeto, segundo Schrödinger, se encontra em todos os lugares em que a probabilidade diz que pode estar. Essa constatação faz emergir a ideia de superposição de estados da matéria. A experiência com o gato é uma metáfora perfeita. Coloca-se um gato e um vidro de veneno dentro de uma caixa opaca, à qual se liga um mecanismo de possibilidade de quebra ou não quebra desse vidro de veneno. Dependendo do funcionamento do ativador do mecanismo (e tudo isso muito bem explicado em http://www.youtube.com/watch?v=wRp2AEccks4&feature=youtu.be, num oferecimento do amigo Aléssio), o gato poderá estar vivo ou morto. Enquanto a caixa permanece fechada, e portanto a condição do gato alheia à minha consciência, esse gato está vivo e morto ao mesmo tempo. O meu olhar é que legitima de fato a morte ou a vida do gato. Consequentemente, o instrumento de quebra do estado de superposição (que é o estado quântico da matéria, aquele com o qual interagimos ao jogar dados, moedas, cartas) somos nós; os agentes do mecanismo da decoerência somos nós.

A catraca da bicicleta, nessa foto que meu filho Súria acaba de mandar da longínqua Brighton, mostra-me o mesmo. Tenho uma série de seis possibilidades distintas de encaixe para a corrente que não está lá; portanto, tenho como que seis correntes superpostas, invisíveis, diante dos meus olhos. Assim que uma delas se destacar das outras, e fizer uma das coroas rodar, eu passo a "saber" qual das coroas está em funcionamento. Até então, todas estavam no mesmo campo superposto de possibilidade de movimento. No momento em que a corrente "escolher" uma das coroas, quebra-se a tal da "magia quântica". O segredo deve ser permitir que a corrente mude outra vez de coroa, e se restabeleça o universo magístico no instante em que piscamos os olhos e a corrente definidora desaparece (o que me faz imediatamente pensar na Umbanda, pensamento que faço parar agora para desdobrar mais tarde; decoerência em ação).

O fato dessa foto chegar agora, justamente quando me detenho e escrevo sobre o universo da possibilidade múltipla (multiversos?), é quase que uma comprovação dessa mesma possibilidade múltipla. Como se a foto chegasse sob efeito da superposição de pensamentos que se processam, e que fazem com que o que penso aqui e o que ele pensa lá, que provavelmente nada tem a ver com o que penso aqui, possam encontrar-se num mesmo lugar e tempo. Mesmo que eu não saiba exatamente por que e em que momento essa foto saiu de seu computador para viajar até o meu, onde a vejo neste agora. E ainda que ambos, espaço e tempo, sejam virtuais, aqui dentro desta caixa iluminada na qual digito as palavras que exprimem o que penso.

Imagem: Súria Ribeiro


07/09/2013

7 de setembro

Tive a sorte de assistir dois fantásticos filmes esta semana: Hannah Arendt e Flores Raras. Em ambos coexiste o fenômeno da multiplicidade. Ambos são falados em duas línguas, porque a situação dos seus personagens promoveu essa fusão de dois sistemas linguísticos diferentes num mesmo cenário e enredo. O primeiro é falado em alemão e inglês; o segundo em inglês e português.

Funcionam perfeitamente, os pares de idiomas superpostos, sem que possamos dizer que o filme é falado em uma ou em outra língua. É falado em ambas. Sem que eu faça muita força para isso, o tema-mote da semana (superposição e decoerência) torna e retorna aos meus dedos que pensam.

Sobre Hannah Arendt (porque houve quem me dissesse, sobre o último texto, que seria bem melhor se eu explicasse quem que é o gato do Schrödinger afinal! rs): em 1961, a filósofa judia alemã naturalizada norte-americana, foi convidada pela revista The New Yorker para cobrir o julgamento do nazista Adolf Eichmann em Israel. O artigo gerado por essa cobertura deu origem a uma potente polêmica entre Hannah e a comunidade intelectual (e não só) judia. Dele nasceu também o livro "Eichmann em Jerusalém", onde Hannah cunhou o termo "a banalidade do mal" para designar aquele aspecto da natureza humana em que se age sem percepção do mal que se inflige ao outro, por não se racionalizar a própria ação e por alojá-la no campo da obediência cega às ordens superiores. Arendt, com certo horror, chega à conclusão de que Eichmann não era um monstro de crueldade, mas um sujeito terrivelmente comum e banal. Como qualquer um de nós.

Quando uma pessoa abdica da sua prerrogativa de pensar (que para Arendt é base da condição humana), perde a capacidade de poder distinguir o bem do mal. Ou seja, a sua capacidade de julgamento moral. O homem que abre mão do seu pensar, e justifica as suas ações dentro do campo da obediência cega a ordens superiores (sejam esses "superiores" qualquer instância), não é exatamente um homem, mas algo que se situa no afastamento da esfera humana.

Entre os quatro reinos, o que nos diferencia dos demais, diz-nos o também filósofo Rudolf Steiner, é o termos as mãos livres. As nossas mãos tornam-se livres quando o nosso pensar é livre. A liberdade das mãos está ligada à liberdade do pensamento. Se abdicamos de pensar em liberdade (ou seja, sem estarmos sujeitos à manipulação alheia, por exemplo), abdicamos da responsabilidade sobre as nossas ações/mãos, e abdicamos da própria condição humana. Arendt distancia-se da sua problemática individual de judia perseguida e encarcerada, exilada e asilada, para aproximar-se do sujeito Eichmann. Afasta-se, creio, de seus pré-conceitos, das suas pré-suposições, para poder efetivamente compreender quem é e que motivações teve esse homem para fazer o que fez - para poder pensar em liberdade. Esse distanciamento é condição de uma maior objetividade, e uma maior objetividade firma ideias que deixam de estar tão sujeitas aos vieses das nossas subjetividades e idiossincrasias, assim como das alheias.

Arendt foi duramente acusada, especialmente pela comunidade judia da época, de não condenar a culpa aparentemente óbvia ao monstro nazista. No filme, a cena de sua última aula é um primor de construção de pensamento - para ela, tentar compreender um homem não é perdoá-lo, mas suportá-lo naquilo que ele, de fato, é. Tentar compreender não é perdoar. Eichmann, para ela, abdicou da sua condição humana ao abdicar da capacidade de pensar em liberdade - e, consequentemente, de poder julgar a própria ação como boa ou má. Condená-lo por isso é não compreender e não compreender é não alcançar a capacidade de julgar. Eichmann é culpado de várias coisas, mas de não um crime contra a Humanidade, pois sequer tinha consciência da existência de uma Humanidade à qual a sua ação obediente se dirigia.

A banalidade do mal, percebida por Arendt na década de 60, é hoje prato do dia a dia. A nossa capacidade de pensar é refém de tantos detalhes e pequenos nadas, que somos arrastados e impelidos a não pensar sobre nada, ou a pensar de forma pasteurizada o que convém que pensemos. Pensar dentro da caixa em que precisamos caber, de preferência de forma silenciosa. Nada disso é a forma pensamento que liberta as nossas mãos. Para isso, diz Arendt, é preciso que exerçamos a nossa condição humana de seres pensantes, e que saiamos de dentro da caixa, com todos os riscos, possibilidades e probabilidades múltiplas que representa o que a própria caixa representa: ela mesma, seu exterior, seu interior e todos os seus planos paralelos. Boas coisas pra se pensar num Brasil que festeja a independência neste 7 de setembro e de uma Síria que nesse mesmo momento se arrisca a perder a sua.


"Open Box", de Gavin Turk, 2008

06/09/2013

Moedas, gatos e decoerências

Jogo a moeda no ar, uma vez e outra e outra. Assim que começo a escrever, e portanto penso, alicerço a minha vontade e a minha força em um dos lados da moeda. Presto-lhe atenção, mesmo sabendo que é uma dentre possibilidades. As bordas, o centro, as rugosidades, o tom, o endurecimento do tempo na oxidação do metal. Penso. Procuro entender; não condeno, não perdoo. Apenas procuro compreender a moeda, e enquanto não consigo tê-la em mim em todas as suas formas ao mesmo tempo, observo-a nesse seu lado exposto intensa, completa e apaixonadamente. Depois, lanço-a ao ar outra vez, para que viva na possibilidade aberta, para que seja outra vez cara e coroa ao mesmo tempo. E cai no outro dos dois lados, e o que faço é entregar-me a ele com a mesma intensidade e paixão.

Migro da moeda para a caixa de madeira onde se aninha, à espera, o gato que Schröedinger pôs dentro dela. Enquanto não me aproximo da caixa, o gato está necessariamente vivo e está necessariamente morto. O meu movimento em direção à caixa, o impulso da minha pergunta está contido na mão estendida. Chama-se pensar, o movimento da minha mão, se eu o quero assim. Nasce do interesse-curiosidade, da necessidade de saber que é condição humana. É preciso que o gato seja vivo ou morto, e sou eu, e o pensar que faço conter no movimento da mão, que o faz viver ou morrer no instante em que abro a caixa. Enquanto permanece vivo e morto, não o vejo, não sou sua nem ele meu, dimensões apartadas pelas paredes de madeira da caixa. Mais livres, talvez - mas também mais cativos de tudo o que não tentamos compreender.

A pergunta que não faço, quando escolho olhar a caixa à distância e impedir que minha mão a abra, mantém a possibilidade vida/morte, e mantém a ignorância do meu pensar. Sem pensar, não faço, não sou. Aprisionado no não-interesse, mantenho-me no estado de não-saber. E por isso posso recostar-me na cadeira e respirar um alívio denso que nasce na pessoa que não exerce o seu pensar, e por isso está condenada a não saber o que contêm as caixas que passam em seu caminho.

(O que faço neste momento é escapar das tarefas que me esperam para poder sossegar o espírito. Tudo o que me atinge anuncia-se parte de um todo, e é irresistível não querer parar tudo apenas para poder pensar. Que equivale, em mim, a escrever, essa atividade pensante que me organiza o coração, especialmente.)

Hamlet está diante da mesma caixa com o mesmo gato dentro dela. Somos agora três observando a caixa: Schröedinger, Hamlet e eu. O que fazer, diz Hamlet, com o medo desse país não conhecido que nos aguarda, e do qual nunca ninguém voltou? Abro a caixa ou deixo-a fechada? Hamlet quer saber o que a caixa contém, embora o medo o paralise. Ser vivo e ser morto não é a sua questão: a sua demanda reside no ser vivo ou ser morto. Hamlet procura, em meio ao seu pavor de si mesmo e das forças que movem dentro de si mesmo, ser o agente da decoerência, o que decide a morte e a vida do gato, o que nos joga no modelo clássico fechado e cartesiano onde não seremos duas coisas. Se percebesse que também o movimento de ir e vir da caixa é dúplice e aberto, poderia ir, para depois vir, e depois ir novamente, e a cada um desses movimentos saber-se presente em todos. A superposição é fato, e o não escolher em dado momento um dos lados só nos impede de conhecer ambos.

A experiência aumenta o nosso repertório de compreensão do mundo. É ativa, empreendedora. É atividade de descoberta. E a sua raiz é perire - morrer, perecer. Toda compreensão é morte, toda compreensão é vida, pois vida e morte são os dois lados dessa moeda que atiro ao ar mais uma vez. Perire recua: sua raiz é ire - ir, andar, marchar. Lanço a moeda uma vez mais. Interrogo-a em pleno voo, e ela cai-me na mão aberta como as coisas. Todas essas coisas que parecem, aparecem, permanecem e desaparecem.

As minhas perguntas nascem do sentido da necessidade, do sentido da unidade, do sentido da verdade; querem-se aberturas do ser enquanto ser das coisas. As perguntas que faço sintetizam um ponto de possibilidades, e sinto que devo investigá-lo até que se abra em flor múltipla de várias respostas.

Não posso fazer isso sozinha: os outros são-me fundamentais. E por isso o gato de Schröedinger  por isso a decoerência quântica, por isso o pensamento vivo de Arendt, por isso a fala de seu Cobra Coral, por isso esse Caravaggio que me oferecem ao final, por isso a conversa destes professores grávidos ao meu redor, a informarem-me em mil tons de verdade que estamos e somos. Ao mesmo tempo, íntegros e inteiros. É desta forma, e de todas as outras que se abrirem pelo caminho, que quero viver.


Muitas informações sobre a experiência do gato de Schröedinger 
e sobre decoerência na internet. Frases magistrais no filme Hannah Arendt. Uma sucessão de informações que não consigo localizar no espaço. Fico a dever as referências exatas, mas preciso agradecer ao Ivan Guerrini e à Regina Arnab pelas coerentes postagens sobre decoerência, à Karla Neves pela Hannah e pelo Caravaggio, e ao Ivan pela voz de seu Cobra Coral.


05/09/2013

A luz do trabalho

Tudo começou com um Ê do lado de dentro, hoje, logo ao acordar. Atrás desse Ê vibrátil, desdobraram-se a partir da nuca, num lugar que vou chamar de "atrás da garganta", dois emaranhados de letras: elaborar e elucubrar. A alma em processo de retorno à matéria procura seu espaço, nessa povoação de outros seres que encontra ao voltar, e atravessa-me como forma de imaginar. Tenho trabalho pela frente, sei que penso um segundo antes de levantar. Ê permeia o dia inteiro, suave canto de alguém que se aproxima.

Esse trabalho que sei ter pela frente, porque estou disposta a perceber onde se origina e qual é o combustível que o faz avançar, produz uma espécie de agitação interna que só vou chamar de criativa porque não tenho outra palavra melhor, e também porque o I-Ching me ofereceu, de bandeja, o seu primeiro hexagrama: Chi'en, O Criativo. O céu em cima, o céu embaixo. A certeza da duração do tempo em cima; a atitude do homem sábio embaixo. Essa agitação que chamo de criativa não incomoda, não altera o rumo nem fere o prumo. Produz-me, no mais das vezes, isto: escrita.

Volto a meio do dia em busca do Ê. Do que o explique. Sinto-o em formação dentro da boca, batendo-se como um barco contra os dentes e logo a seguir contra as paredes de carne; reflui pela longa caverna que é a boca. Um eco de som dentro dessa gruta, um cruzamento abaixo do céu da boca. Deve haver um homem sábio dentro dela, penso, talvez seja através dele que esse Ê se prolongue e me alcance. Os nervos que se cruzam por todo o corpo, os trançados de músculos quase encruzilhadas, todos a um só tempo respondem: Ê-ê. O coração vibra vida, o pensamento perde a neblina, a ação dirige-se certeira. Os índios Tubuguaçu diziam que é aqui, na altura da garganta onde este meu Ê vibra, que a alma se torna livre. A mesma garganta que se contrai, se abre, deixa o outro passar, acolhe-o numa doçura de nuvem prestes a chover. No Ê vibrante desse lugar tão interno e sensório e primitivo, nasce a parte de mim mesma que me faz mais humana. Como encontrar o amante do mundo do espírito.

Em seu desdobrar-se ao longo da tarde, Ê torna-se elaborar. Aquilo que, de laborare - o trabalho, a labuta, o esforço, a luta -, só por causa desse Ê que vibra em mim, se transforma em tomar cuidado, em atender o chamado. Elaborar, essa coisa que pensamos fazer quando pensamos em algo e lhe conferimos significado, é antes de mais nada ter e tomar cuidado. Tudo o que é frágil, tudo o que é forte, demanda cuidado. Ê vibra em mim demandando cuidado.

Começo de noite, Ê migra para as terras do elucubrar. Penso que derive de locus, o lugar. E até me divirto pensando "eureka!: o lugar do trabalho!". Mas não, longe disso. Elucubrare é (apenas) compor à noite, queimar até o óleo da meia noite acabar. Como fazem meus olhos quando não querem fechar-se, nem os de fora, nem os dentro. Até o óleo da meia noite queimar. Leuk, essa palavra tão antiga, mãe de lux, é a luz branca que brilha onde moram as trevas, e é de lá que nasce a palavra elucubrar. É preciso, à noite, trabalhar sob luz. É preciso imaginar o contorno da sombra, o seu preencher, os seus pontos de toque e contato.

Ê, como bisturi preciso, atravessa-me o sentimento. Distancia-me. Objetiva-me. É forte, paixão em estado primitivo. Não se permite recusas, não admite meios termos. Elaboro o lugar em que estou, sob a luz que me acendo. Como se essa antipatia do Ê cruzado em meu peito fosse recurso válido de salvação. Feixes de força dançando ao meu redor. Já é madrugada, e eu durmo de olhos fechados.




Os índios Tubuguaçu, e outras coisas, estão citados em http://www.ouvirativo.com.br/mp7/pdf/tx_am2_anadenise.pdf
A imagem representa Iansã

02/09/2013

Indiferenças, irrelevâncias e insignificâncias

Dentre os vários problemas que o cosmos enfrenta, creio que o mais aflitivo é o da lei de oferta e demanda. Menos simplista que a lei básica de consumo, o cosmos faz uso de formas peculiares de reorganização do (des)equilíbrio entre os circuitos energéticos que regem a tudo e a todos. Uma das formas é a transformação do mundo a partir do prefixo "in".

A negação.

Não existe propriamente uma régua que indique o quanto se oferece e o quanto se procura. Nem de que maneiras mil esse movimento duplo pode compor-se a si mesmo. Mas o dar-se ao outro é sempre uma moeda de dois lados, e o milagre acontece quando a conseguimos equilibrar de pé. Quando o que se dá e o que se recebe estão de acordo e em paz. Diferente de medidas iguais, veja bem: é mais, creio eu, uma questão de acordo daquilo que permite que a moeda se equilibre e não pese nem num ombro, quer dizer coração, nem em outro.

O acordo pressupõe, antes de antes, percepção de que se recebe. Consciência daquilo que depositam em suas mãos. Sem perceber o que o outro dá (repare: não é o quanto, mas O que dá), não há nem como começar a pensar em acordar nada. Tudo dorme. Tudo é inconsciência.

Mas pode ser que se perceba, mas não se dê atenção. Porque pode ser que não se realize, de fato, tudo o que se eleva acima do nível horizontal cotidiano. Pode ser que não se perceba o relevo, a suave ondulação que o outro processa na sua vida, os meandros que o novo rio desenha em sua paisagem. Não se percebe o relevo, e as coisas tornam-se irrelevantes. Nem peso têm, e logo perderão a forma. E aí, de irrelevantes a invisíveis.

Pode também ser que não se atribua significado; que de tão ocupados com os nossos próprios mundos, não exista o movimento de dar sentido/significado ao que se nos oferece. Talvez porque a oferta nos seja estranha, talvez porque não a tenhamos recebido antes, e porque o novo assusta. Ou porque pareça estranhamente familiar, já andamos ali por perto, pensamos - e o velho assusta, mesmo que saibamos que tudo se recria e tudo se transforma. Pode ser que nos sintamos donos e senhores daquilo que acreditamos ser nosso por direito. Porque (podemos dizer) se chegou até nós é porque era para ser nosso. O cosmos ri-se, e tudo aquilo a que não conferimos significado, torna-se insignificante.

E pode ainda ser que olhemos em volta e não percebamos a diferença. Que consigamos apenas ver o nosso próprio reflexo. E como de nós mesmos só conhecemos uma parcela, e mesmo com o cosmos aos gritos, passamos reto pela parcela de nós mesmos que o outro nos desperta e desvenda. Nós preferimos ignorar. E avançamos estrada afora, vida afora, tempo afora, cada vez mais indiferentes, desacordados da transformação que se opera debaixo dos nossos olhos.



29/08/2013

Contorno

Acordei hoje com o pensamento em um querido amigo, através de uma das palavras que usa na busca de si próprio. Contorno. Sinto-me muito à vontade, porque a raiz da palavra é muito óbvia e assim é como se eu mergulhasse num rio sem margens. Nasce da palavra torno, que sempre foi isso mesmo: torno. Tanto o instrumento em que se prendem coisas para torná-las arredondadas, quanto o verbo tornar, ou seja, voltar. Talvez por isso meu amigo ande sempre com ela a tira-colo.

Contornar deve ser algo esférico, linha curva que torna ao lugar de onde saiu. Assim, contorno fecha, encapsula. Contorno é linha que circunda centro. É a linha periférica que delimita e diferencia o fora e o dentro. Espaços. Quase me deixo levar pela corredeira dos caminhos da vida reencarnatória, mas não. Quero nadar em outras águas.

Não sei se meu amigo estará certo na sua busca de contorno. Olhando a palavra, assim de frente, e percebendo-a linha em torno do que está quase do lado de fora, tendo a crer com ele que os outros podem dar-nos contorno, podem guardar-nos as proporções, podem fazer-nos acreditar na própria massa concreta, ajudar-nos a saber o que somos dentro, o que é o fora. Porém, apenas se tivermos centro, e recheio. De nada nos salvará uma linha a contornar o espaço vazio. A vida não é maniqueísta.

E assim, desde manhã cedo até agora, quero muito dizer-lhe que vale a busca do contorno, sabendo que é preciso haver o que contornar. Ele já sabe disso que lhe digo, mas é sempre bom ouvir a mesma coisa, o retorno daquilo que já se sabe. Quero dar-lhe uma espécie de contorno, que de repente se parece com aconchego.

Por outro lado, tornos são coisas perigosas. O mesmo mecanismo que permite o torneado perfeito de um pedaço de madeira, promove o desmembramento do todo em partes. Nem é preciso lembrar do "potro", tão velho quanto a velha Inquisição. Basta pensar no dia a dia, nos tornos que encontramos e nos desmembram, nos estraçalham, nos rompem os tecidos mais delicados e frágeis, sem que depois consigamos juntar as peças que nos faziam uno.

Por isso, estou em dúvida se se deve desejar o contorno através da mão do outro. O conhecimento de mim mesma que me chega pelas mãos e bocas do outro, encantador exercício de alteridade, sim. Mas ao contorno talvez seja melhor, meu amigo, procurá-lo na camada fina que dá forma às nossas próprias mãos. Os traços que desenhas com tanta maestria (sejam letras, sejam formas) serão aquilo que dá contorno à tua alma, que dá contorno àquilo que de teu se encontra com o contorno do outro. Porque ainda há isso: o contorno do outro, que ele desenha como quer, deixando ou não espaços porosos por onde os outros possam permeavelmente entrar. Por onde nós possamos entrar. 

A imagem acima retrata um torno eclesiástico, um torno de bancada especialmente desenhado e construído para párocos, abades e acólitos que gostem de marcenaria. A boca do torno são essas duas mãos de ferro, que eventualmente poderão ser revestidas com luvas de veludo, para não danificar as peças mais delicadas. Nem sempre quem usa o torno saberá reconhecer a delicadeza do material, e pode ser que se confunda, e deixe de usar o veludo que impediria as dores no corpo torneado. As mãos podem ser de aço, e podem ser de seda: de pouco servirá se não souberem reconhecer os veios da matéria com que trabalham.

Melhor isto: transformar-se em esponja de contornos fluidos, que ora se mergulha na água do banho, ora se põe a secar na janela escancarada ao sol. A substância interna está lá, num estado variável que não lhe altera a essência. O contorno que lhe dermos dependerá do ambiente externo que a acolha, sim. E nós dependeremos de manter o centro no centro, e o contorno no contorno.




26/08/2013

Convergência Jedi

É a solução. Nada de quebrar, de se dobrar até o chão da própria alma para (imaginar) seguir em frente. A solução é a convergência.

Recebi a tarefa de pensar a palavra. De pensar-lhe as letras. De pensar-lhe o uso. Nesse momento tão raro e único em que pensar e sentir precisam encontrar-se, em paz, é o que de melhor posso fazer: pensar as palavras para poder senti-las.

Decido investigar. Graças a são google, descubro não só a etimologia da palavra-pensamento-de-hoje, mas ainda outras coisas que me intrigam. Não necessariamente por elas mesmas, mas pelo fato de me virem parar às mãos. Descarto umas, porque parecem becos sem saída; insisto em outras, não porque lhes veja a saída, mas pela impressão de que a possuam. Pode ser tudo um engano. Mas...

Convergência, que à primeira vista poderia dizer de duas coisas que se dirigem para o mesmo lugar, até que se encontrem, deriva de convergens. É algo, sim, em conjunto - mas é a ação de inclinar-se junto. Numa associação de ideias a la Rubem Alves, penso nos bambus do sítio. O lugar comum do bambu-que-se-inclina-sem-quebrar. Talvez sejam precisos dois bambus, um inclinando-se sobre o outro, um convergindo para o outro. Ou talvez dois sejam um. Até porque dando dois passos etimológicos para trás chega-se a vergere: inclinar-se. Talvez o con não tenha tanta razão de existir assim, e talvez essa seja a raiz também da palavra vergar? Não. Pura especulação. Vergar deriva de virga, que tanto se aplica a broto, quanto a caule, quanto a galho. O esforço etimológico frequentemente conduz a mal entendidos e enganos.

Vergere responde por mais coisas. Depois de muitas, incompletas e cefaleicas leituras, venho a saber que Vergere foi uma cavaleira Jedi que instruiu Jance Solo (sobrinho de Luke Skywalker e filho da Princesa Leia) no uso da Força. Segundo seus ensinamentos, a Força não tem lados. O "lado negro da força" (aquele do Darth Vader, lembra?) não existe na Força em si, porque a Força é monista. O que existe é a noção de que as suas ações valem mais do que as suas intenções, de que é necessário escolher e agir, e de que é preciso ir ao encontro do universo com amor. "The dark side of the Force" é responsabilidade do cavaleiro Jedi e de quem mais dela se aproximar. Não consegui entender, nesse "universo expandido" em que os anos se contam como ABY e DBY (ou seja, antes e depois da batalha de Yavin), se os ensinamentos chegaram a bom termo ou não, porque afinal de contas o tal do Jance acabou por transformar-se em Darth Caedus, depois de muitas idas e vindas entre os lados de todos os tons de cinza da Força.

O importante, dentro deste (para mim) caos altamente organizado em que qualquer jogador de RPG deve circular com desenvoltura e habilidade, é que Vergere decreta a não existência de lados da Força. Deve ser por isso que um bambu baste, cada um de seus gomos inclinando-se suavemente para permitir que a estrutura não colapse. Convergência, a palavra legado que me cumpre investigar, fala-me agora da necessidade de inclinar-se com a suavidade do bambu e a determinação de um cavaleiro Jedi. Com a atenção e a consciência de que a Força aí está, a serviço daquilo que se determine dentro desta vida nossa de universo tantas vezes encolhido. A serviço daquilo que se perceba como matéria ou como seu reflexo no chão duro da vida - escolher e agir, dentro do propósito maior que, seja aqui, seja na República Galáctica, responde pela mesma palavra: amor.


A foto é da Thyana Hacla, e parte do "meu conhecimento Jedi" devo-o 
ao Robert Coelho e ao Antonio Laverde, em animada conversa facebookiana.


Promessas são precariedades

Eu já conhecia a maioria de seus amigos, senão todos, mas a ele ainda não tinha tido o prazer. Tinham-me falado dele, com uma espécie de respeito que fez surgir dentro de mim uma das palavras que vinha caçando há semanas sem encontrá-la: veneração. Bom sinal, este de alguém que ainda não chegou já me presentear com as palavras que explicam. Especialmente essa, que deriva de nome de deusa e é a palavra do que falta; e assim que a pronuncio, que a faço vibrar dentro de mim, a falta acomoda-se, porque o som cria o mundo em que posso respirar.

E seu Zé do Coco chegou. Bem falante, aparenta a idade que tem (longa) e o conhecimento das coisas que a sua passagem lhe conferiu. As frases que pronuncia atravessam tempo e espaço e algo lhes confere o poder que, um dia bem longínquo, toda frase feita teve. (Frases feitas tornam-se agremiações de palavras que repetimos pasteurizadamente, achando que de fato pensamos. Não pensamos: são palavras que se climatizaram, palavras pre-cozidas.) Acho que veneração chegou antes dele para que eu pudesse estar preparada. Posso nomear o que sinto conforme o ouço, e assim ouvi-lo melhor.

Conversamos um tempo comprido. Nessa troca atenta e presente, seu Zé deixou comigo o legado de uma série de palavras, e eu ocupo-me delas como há tempos não me ocupava de nenhumas. Pensar nas palavras é a minha forma de meditação. Os dias em que recorto uma delas e a coloco à minha frente, observando-a de todos os lados e formas que posso, ora distante, ora alcançando-a com os dedos do sentimento, são os dias mais felizes e concretos, os dias em que o céu azul ou a chuva ou o vento fazem sentido.

Disse-me seu Zé que promessas são precariedades.

Veja bem.

Promessas são precariedades.

Com o passar dos dias, e a repetição das palavras dentro de mim, vou avançando para dentro do que dizem. Separo-as umas das outras. Promessas. Precariedades.

Promessas fluem e pendem. Prometem-se. Recorro à etimologia, nesse movimento que me aproxima do nascer mais profundo das palavras. Promissus, a raiz de promessas, é uma derivação do verbo promittere. Palavra composta por duas: omittere (deixar de lado, omitir, deixar de ir) e o prefixo grego pro (antes). Prometer é tudo aquilo que existe antes de deixar de dizer, antes de deixar de sentir, antes de deixar de lado. Pura precariedade, penso. 

É possível recuar um pouco mais, porque omittere é filha de mittere, que significava para os latinos antigos jogar, arremessar. Promete-se quando, por antecipação, se arremessa algo do passado (o antes) na direção do futuro. Como uma flecha que se cogita enviar para o depois, mas o arco está pousado ao nosso lado. Pode ser que a flecha vá; pode ser que não: o arco não está nas nossas mãos, talvez sequer o olhemos de fato. Uma ideia de mover-se que não pensa como sair do lugar.

Esse mover-se, instrui-me Zé do Coco, é feito de precariedade.

Precariedade nasceu da palavra precário. E precário é algo que, muito corretamente, nos faz duvidar. Coisas precárias inspiram insegurança. Não se sabe onde se pisa. Pede-se (reza-se, até) para que as precariedades se consumem. Se estabeleçam. Se concretizem. Porque a palavra precário é filha legítima de precari, que nada mais é que pedir e rezar. Olhando para trás, nossos olhos caem na sua raiz prex: orar. Precariedades fazem-nos implorar, pedir, suplicar - é isso que prex sinaliza. Pede-se sentido, concretude, realização.

Promessas vivem fora do tempo. Lançam-se do passado ao futuro sem sequer encostar no presente. São precariedades, porque não se ancoram nem no estar que está nem no ser que é. A insegurança e a dúvida geram-se no ar imaterializado, na célula não nascida, na semente inanimada, como se esperássemos que o broto já fosse fruto sem nunca ter sido gérmen. Não é, e nem será. O que é, é o que chamamos de "momento presente", essa frase feita que tão facilmente escorrega das mãos e se torna nada. O passado é uma nuvem que já choveu e o futuro o céu que ainda não clareou. A noite impera, suave e silenciosa, escura e úmida de orvalho. É bom que assim seja, e que assim se perceba. Tudo o mais é precário. Especialmente as promessas.


(A raiz primeira da palavra veneração, para quem se perguntou, o é Vênus, a deusa romana do amor e da fecundidade.)


Foto: Dani Lenton

19/08/2013

Sem

Ao soluço enterrado
no fundo das minhas entranhas,
procuro-lhe o caminho.

Não se move, não sai, não se altera.
Resiste indócil
estoico
heroico
às águas sem leito.

Observo-o de longe e atenta.
Entendo-lhe os limites fluidos.
Não foge.
Não se esconde.
Não se manifesta.
Parte insolúvel
terrosa
do fundo mais fundo das
minhas entranhas
internas,
existe apenas, como
espinho encravado.

07/08/2013

Diário

(side writing)

No dia em que Ofélia, órfã aos 12 anos de idade, conheceu Robélia, moradora da última rua do Morro do Tatu, o mundo quase desaba. A chuva engrossou o rio do Zinco desde manhã cedo, escorreu pela encosta do morro, até chegar à cidade baixa. Os carros foram entupindo ruas e avenidas, desgovernados diante de tanta água, os vidros embaçados, os limpadores inúteis. Ofélia e Robélia lembram-se vagamente desse caos, mais pelas notícias dos jornais do dia seguinte do que propriamente pela vida em si. 

No mesmo dia, a quilômetros dali, Délia abria as portas cotidianas da loja. O dia cinza, o carregamento das obrigações. Sem nuvens nem sol escaldante. A vida como um soltar de cadeado, portas pesadas sob trancas, chumbo erguido dentro das mãos de Délia, mantendo abertas entradas e saídas alheias. Sentada atrás do balcão, rodeada das autopeças que lhe sobraram de herança do marido que saíra e nunca mais voltara, vidrava os olhos nas lajotas desencontradas da calçada.

Ofélia era esguia, alta e otimista. Robélia apreciara especialmente essa última qualidade, sem desconfiar de que não era construção, mas condição. Sintoma de quem nascera para enfrentar o lado duro das coisas sem dar por isso. Parecia a Ofélia, filha única de pais idosos, que a vida de qualquer um fosse mais difícil e sofrida que a sua, o que facilitava relevar e diminuir os obstáculos do caminho. Enganava, por isso. Tudo apenas parecia lhe ser fácil. Até mesmo as conquistas, num efeito dominó, pareciam menores, como que envergonhadas da própria existência diante da miséria que enxergavam pelos becos.

Robélia gostara desse otimismo, porque a sua vida fora privada dele. A dificuldade e a dureza de cada centímetro conquistado à morte eram seu dia a dia, seu conhecimento, o pano com que a sua vida se costurara. Robélia era a quinta filha de oito; perdida em meio a toda a descendência de seus pais, não tinha lembrança que fosse só sua, que não precisasse dividir com nenhum irmão ou irmã. As memórias eram sempre de outro, calejadas pelas vozes que as repetiam sem a incluir. A vida esfumava-se diante das conquistas alheias, e seus olhos sôfregos demoraram a encontrar outros que se fixassem em seu centro sem se desviar. Robélia contaria a Ofélia, meses ou anos depois, dessa infância que só descobrira infeliz depois de conhecê-la. Ao que Ofélia responderia espantada “quem foi que te disse que a infância pode ser feliz?”. 

E Robélia pensou que talvez Ofélia fosse outras além da que via. Mas não deu importância e continuou a vida como se estivesse resolvida e encaminhada. Por coisas assim, dizia-se de Robélia que era prática e simples; àqueles que traziam problemas, Robélia aconselhava com justiça, ponderação, equilíbrio e lucidez. Resolvia contendas, equilibrava opostos e resolvia discussões como se tivesse nascido para conciliar os contrários do mundo. Sua escola foram anos separando brigas de irmãos e resolvendo picuinhas de irmãs, mas ninguém se lembra dessa sua atividade de árbitro e juiz da infância. Ela mesma só se lembrou disso quando Ofélia lhe perguntou, com aquele olhar de quem vê tudo pela primeira vez.

Délia não tinha a quem contar da sua infância. Isolara-se dentro da loja, como se tudo na vida se compusesse de bronzinas, tuchos, bielas e válvulas. Seu mundo seguro. Sem eventos que lhe alterassem a ordem das prateleiras. Interessava-lhe pouco perscrutar o próprio passado, porque se ocupara com afinco em apagar as partes de que não gostava. Apagara tudo. Délia fechava-se como uma ostra que não tem a menor intenção de dividir a construção da sua pérola com ninguém. Orgulhava-se de seu sofrimento contido, das suas lágrimas engolidas, dessa maneira distante e estéril que construíra para ganhar da vida. Não sabia como andava o placar, mas cada vez percebia menos as vitórias do time oposto. Não tinha amigos que se pudessem chamar de íntimos, mas todos que a conheciam pensavam que certamente era convidada para festas e jantares. Porque era basicamente simpática e sabia ser afável sem se doar. Délia saía de casa sozinha e sozinha regressava. Mesmo quando acompanhada.

Naquele dia de chuva torrencial, Ofélia perdera-se. Antes de perceber a presença concreta e palpável de Robélia, encontrou seus olhos e estes os dela. Esqueceu-se de que estava perdida e parara para pedir informação. Saiu do carro, trancou-o e convenceu-se de que tinha fome. O pequeno restaurante em frente pareceu obra da providência, e providencial foi encontrar as mãos de Robélia e poder observar-lhes os nós dos dedos enquanto serviam seu prato. O sorriso de Ofélia desarmou as reservas da cozinheira. Se houvesse um cheiro para esse momento, seria o da hortelã recém-colhida. Ofélia perdeu a entrevista desse dia, e quase perdeu o emprego também. Demorou uma semana para reaparecer, com uma história vaga e mal contada de um carro quebrado e a reincidência de uma gripe mal curada.

Ainda hoje o barulho da chuva tamborilando no batente da janela traz aquele dia para dentro da vida de ambas. Ainda trocam olhares ou mensagens sentindo a falta mútua que a chuva desenha. O limpador do para-brisas do carro de Ofélia parece-lhe um adeus entristecido, assim como as gotas que escorrem pela janela da frente do restaurante lembram a Robélia as lágrimas de um enterro.

A vida quis que passassem mais tempo do que gostariam afastadas uma da outra. Em junho daquele mesmo ano, Ofélia estourou o escapamento do carro a meio de uma viagem. Parou numa loja de autopeças e foi catapultada para dentro da imensa e mansa loucura de Délia. A seu lado, a vida de todos os dias repentinamente desbotava. Mesmo parecendo disforme, não levantou a mão em recusa. Ofélia desfez-se da própria vida para abraçar a de Délia, e apenas a lembrança de Robélia existir em algum lugar enchia seu coração de esperança. O olhar otimista diante do adverso tornou-se escasso, porque o próprio adverso assumiu esporádicos contornos, como se tudo estivesse sendo o que estava previsto que devia ser. A inevitabilidade que Délia transpirava colou nos poros de Ofélia como piche.

Quando Robélia a encontrou, anos depois, Ofélia era um pálido esgarçamento do que fora. Os olhos da quinta de oito irmãos encheram-se de lágrimas que porém não transbordaram, porque também a sua cota de dor fora entregue conforme o tempo passara. Agarrou-a por uma mão e arrancou-a do mundo de graxa em que se enfiara até o topo do pescoço. Ofélia, que nunca antes permitira que a agarrasse pelas mãos, tinha os pulsos marcados e os ombros cheios de pesos que não eram seus. Robélia usou de toda a paciência que aprendera para retirá-los, um a um, enquanto alisava os pulsos de Ofélia e os ungia com o óleo que os santos usam e as igrejas vendem dizendo ser benzido.

Délia retomou o mesmo olhar sobre as lajotas das calçadas, ruminando a vida conforme ela se apresentava. Não se moveu nem mesmo pensou fazê-lo, nenhum quilômetro galgado para conferir se esse afinal não era mesmo seu destino. Porque o destino, e disso ela estava certa, era aquilo que lhe batia à porta e não se fazia força para encontrar ou abraçar ou possuir. Délia era uma mulher sem esperança e sem anseios. Viver ao seu redor era respirar o som do veneno. Sugara o otimismo de Ofélia como quem retira a substância vital de uma planta até fazê-la desabar no solo. Sem esforço, porque Ofélia o oferecera, enorme e belo como era, sem medidas e sem limites.

Engana-se quem achar que os anos de Ofélia junto a Délia foram difíceis, tristes, sombrios. Havia uma bem-aventurança legítima, um senso de compleição necessária, e a sua entrega nunca fora e nunca voltaria a ser a mesma. Não porque tivesse sido esgotada, mas porque era assim que devia ser. Ofélia e Délia arrastavam-se uma para dentro da outra, pela força do destino que era a força maior do universo. Ofélia, que nunca na vida pensara não ser responsável pelo próprio andar, parara de pensar por si própria para absorver por inteiro esse pensamento novo, e enquanto se desocupava para entender a memória da outra, esqueceu o quanto é importante ser previdente e adiantar-se às desgraças. Esqueceu os acidentes, os anos de orfandade e abandono, as cicatrizes da sua alma. Porque a alma de Délia pedia-lhe tanto, pensava ela, que seria triste não lhe oferecer tudo.

Não sei quem, das três, sofreu mais. Ofélia desiludiu-se de si mesma, Robélia deixou de acreditar no poder absoluto do amor, Délia não tinha mais com o que se desiludir. Quando as olho, nas fotografias que guardo dentro desta gaveta que já quase não abro, estremeço como se uma aragem gelada me chegasse pelas costas e me encontrasse desprevenida. Quero tocar-lhes os rostos, abraçar-lhes os braços e dizer-lhes que a vida sempre vale o preço que se paga.

05/08/2013

Las huellas

  1. Sabe aquelas palavras, as de difícil tradução? Como huellas, por exemplo.
Encontrar-lhes similares em português é tarefa ingrata. Às huellas, eu prefiro-as assim, na língua de Antonio Machado, e é dele que me lembro no momento em que me aparecem. Porque Machado é o poeta do caminho, e eu penso no caminho que segue adiante, no caminho que se solta no vento ao passar, nos caminhos aos lados que às vezes se trilham, às vezes se sonham, às vezes enganam. E tudo porque lembrei de que "Caminante, no hay camino/se hace camino al andar".

A quem caminha, o alerta do poeta: "son tus huellas el camino y nada más". Aí estão as huellas. Volta-se a vista atrás, sob o olhar do poeta sevilhano, e lá está, claro e nítido como o amanhecer da areia, o caminho desenhado a cada passo. "Golpe a golpe, verso a verso", porque é de golpes e versos que se constroem os homens.

Mas as huellas. Como traduzi-las? Pegadas? Impressões? Rastros? Marcas? É tudo muito pouco, nada diz diante das huellas: mais fundas que as pegadas, mais marcadas que as marcas, mais sutis que os rastros, mais sensíveis que as impressões.

São elas, as huellas, isto que permanece em mim nessa amálgama que não sei se chamo de caminho, se de tempo. Huellas construídas no compasso dos dias, espaço a espaço, galgando terreno por dentro de mim. São e ficam, espécies fossilizadas no chão do próprio caminho. "Todo pasa y todo queda", e de tudo o que os meus olhos veem, são as huellas o que fica, são as huellas o que resta.

Huellas, descubro, deriva do verbo hollar. Pouco usado, tanto significa pôr os pés sobre algo quanto abater e humilhar. Talvez romântico, esse Machado para quem o caminho seja o andar, e as huellas sejam o que resta desse ofício de andador que é o nosso. Estas marcas de pés sobre nós: abatem-nos? Humilham-nos? São essência? Ou existência?

Ouço Machado em vários destes passos que ando no continente da memória. Ouço-o na voz do aluno a meio do filme "La lengua de las mariposas", à porta da Guerra Civil espanhola que dilapidou a vida (também) de Machado. Ouço-o num quarto de hospital, último registro da voz de Miguel, a quem levei o único livro que tinha de Machado, porque Miguel estava indo, às portas do outro mundo, e achei ser-lhe boa companhia, eu que o conhecia tão pouco. Ouço-o dentro de mim nos versos que na minha boca têm gosto de espuma de mar: "Yo amo los mundos sutiles/ingrávidos e gentiles/como pompas de jabón".

Entre o primeiro livro publicado, Soledades, em 1903, e o último poema encontrado no bolso de seu casaco, em 1939 ("Estos días azules y este sol de infancia"), vive um poeta que vale a pena ler, na sua própria língua, saboreando esses encontros de letras que a nossa língua não tem. Porque permite que nos carregue ao domínio da linguagem antes dela ter sentido, como a vida às vezes não tem sentido, e é bom que a linguagem lhe faça companhia. Especialmente quando não se vê nem ouve o caminho, e os pés decidem aquecer-se na areia para desgastar suas dores caminhantes. Depois, então, dá-se outra vez a razão a Machado: "se hace camino al andar". Porque é preciso andar para tecer os caminhos.