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14/09/2013

A arte da metamorfose

Decidi ler um pouco do pensamento de Hannah Arendt. Não exatamente pelo filme que assisti semana passada, mas por uma única cena, que ficou encrustada dentro de mim. É ela, Hannah, deitada numa espécie de divã. Nada acontece na cena em tons ocres e marrons, a meia luz, a cinza de um cigarro acumulando-se na ponta, sem falas, sem música, sem nada. E tudo acontece. Foi esse "tudo" imóvel e não-visível que me pôs em movimento.

Entretanto, chegou-me às mãos a foto da cabeça de touro criada por Picasso em 1943. Não lembrava da escultura, mas lembrava de ter lido em algum lugar que o pintor dissera que fantástico mesmo seria ele jogar a sua escultura fora e um homem comum qualquer passar e descobrir que com aquilo podia fazer um selim e um guidão de bicicleta. Era a isso que ele chamava de poder da metamorfose.

Acho que era na metamorfose das coisas que Arendt pensava naquele divã, fumando aquele cigarro, com aquelas roupas sóbrias e aquele olhar que parece dentro e fora ao mesmo tempo. Imagino seu pensamento tomando forma dentro de si própria, esse pensamento que nasce do seu próprio pensamento, essa metamorfose invisível de si mesma. Dizia ela que a capacidade de pensar é a fonte imediata da obra de arte. É nesse lugar, creio, que se aloja Picasso. Dizia também que a troca e o uso são a fonte imediata de todo objeto. É do reino do pensar que a arte nasce, assim como é do reino da troca e do uso que nascem verdadeiramente as coisas. 

Em um de seus livros, que creio ser o mais emblemático e por isso mesmo foi o que escolhi para ler ("A condição humana"), diz-nos que existe uma relação importante entre essas capacidades do homem (o pensar, o trocar, o usar), e seus atributos (os sentimentos, os desejos, as necessidades); uns estão relacionados aos outros, embora não sejam a mesma coisa e embora se precisem entre si. Sentimentos, desejos e necessidades, enquanto não transmutados pelo pensar, pela troca e pelo uso, ficam aprisionados dentro de cada um, não ganham o mundo, não se tornam.

O desejo, enquanto ainda não transmutado, é pura ganância. Eu quero algo, na minha mão, da minha forma, do meu jeito, no meu tempo. É um movimento indomável, incontrolável; fácil ver o sofrimento logo ali. Tanto podemos falar do desejo de coisas como do desejo amoroso. O desejo das coisas deixa de ser ganância quando se troca - tenho uma coisa porque dei/ofereci algo em troca, recebo na minha mão porque algo saiu dela. É um movimento equilibrador. Inspira-se e expira-se. No amor, o desejo cru e violento transforma-se em entidade de feição humana quando a troca acontece, quando o meu desejo descontrolado se entrelaça ao desejo do outro, e desse entrelaçamento nasce a transmutação do próprio desejo, nasce a possibilidade de equilíbrio que permite a respiração.

Necessidade é puro anseio. Precisa-se da coisa, faz-nos falta, como o próprio ar. Enquanto as forças do querer e da vontade (Arendt fala em "forças do uso") não são colocadas em movimento, a necessidade conduz também ao sofrimento. Aquilo de que se precisa precisa ser feito, é preciso que a mão se levante, que o passo seja dado, que o coração seja ativado pelas forças da coragem e se torne movimento. Enquanto se necessita e não se atende a necessidade, através da vontade tornada ação, anseia-se. E sofre-se.

Para Arendt, todo sentimento é uma dor muda - seja dor, seja não-dor. Ausência de dor, para ela, é fragmento minúsculo de tempo entre os estados de dor e não-dor; é diferente de libertação, que seria a saída do estado doloroso, algo que só se equipara em intensidade à própria dor. De qualquer forma, a dor. Sempre presente: a nossa percepção dela é que muda de um lado ao outro. 

É o movimento do pensar que, assim como a troca e o uso fazem desejo e necessidade transcenderem, faz transcender o sentimento. Esse pensar que não se prende, antes se solta pelo exercício da arte. Essa dor muda de Picasso que se transforma em escultura e ao mesmo tempo em pensamento sobre si mesma. Essa dor muda que se transforma em palavra sem destino, apenas para poder absorver e transcender o sentimento que não cabe no peito porque simplesmente não lhe pertence - é do mundo.




Imagem: Picasso, 1943

07/09/2013

7 de setembro

Tive a sorte de assistir dois fantásticos filmes esta semana: Hannah Arendt e Flores Raras. Em ambos coexiste o fenômeno da multiplicidade. Ambos são falados em duas línguas, porque a situação dos seus personagens promoveu essa fusão de dois sistemas linguísticos diferentes num mesmo cenário e enredo. O primeiro é falado em alemão e inglês; o segundo em inglês e português.

Funcionam perfeitamente, os pares de idiomas superpostos, sem que possamos dizer que o filme é falado em uma ou em outra língua. É falado em ambas. Sem que eu faça muita força para isso, o tema-mote da semana (superposição e decoerência) torna e retorna aos meus dedos que pensam.

Sobre Hannah Arendt (porque houve quem me dissesse, sobre o último texto, que seria bem melhor se eu explicasse quem que é o gato do Schrödinger afinal! rs): em 1961, a filósofa judia alemã naturalizada norte-americana, foi convidada pela revista The New Yorker para cobrir o julgamento do nazista Adolf Eichmann em Israel. O artigo gerado por essa cobertura deu origem a uma potente polêmica entre Hannah e a comunidade intelectual (e não só) judia. Dele nasceu também o livro "Eichmann em Jerusalém", onde Hannah cunhou o termo "a banalidade do mal" para designar aquele aspecto da natureza humana em que se age sem percepção do mal que se inflige ao outro, por não se racionalizar a própria ação e por alojá-la no campo da obediência cega às ordens superiores. Arendt, com certo horror, chega à conclusão de que Eichmann não era um monstro de crueldade, mas um sujeito terrivelmente comum e banal. Como qualquer um de nós.

Quando uma pessoa abdica da sua prerrogativa de pensar (que para Arendt é base da condição humana), perde a capacidade de poder distinguir o bem do mal. Ou seja, a sua capacidade de julgamento moral. O homem que abre mão do seu pensar, e justifica as suas ações dentro do campo da obediência cega a ordens superiores (sejam esses "superiores" qualquer instância), não é exatamente um homem, mas algo que se situa no afastamento da esfera humana.

Entre os quatro reinos, o que nos diferencia dos demais, diz-nos o também filósofo Rudolf Steiner, é o termos as mãos livres. As nossas mãos tornam-se livres quando o nosso pensar é livre. A liberdade das mãos está ligada à liberdade do pensamento. Se abdicamos de pensar em liberdade (ou seja, sem estarmos sujeitos à manipulação alheia, por exemplo), abdicamos da responsabilidade sobre as nossas ações/mãos, e abdicamos da própria condição humana. Arendt distancia-se da sua problemática individual de judia perseguida e encarcerada, exilada e asilada, para aproximar-se do sujeito Eichmann. Afasta-se, creio, de seus pré-conceitos, das suas pré-suposições, para poder efetivamente compreender quem é e que motivações teve esse homem para fazer o que fez - para poder pensar em liberdade. Esse distanciamento é condição de uma maior objetividade, e uma maior objetividade firma ideias que deixam de estar tão sujeitas aos vieses das nossas subjetividades e idiossincrasias, assim como das alheias.

Arendt foi duramente acusada, especialmente pela comunidade judia da época, de não condenar a culpa aparentemente óbvia ao monstro nazista. No filme, a cena de sua última aula é um primor de construção de pensamento - para ela, tentar compreender um homem não é perdoá-lo, mas suportá-lo naquilo que ele, de fato, é. Tentar compreender não é perdoar. Eichmann, para ela, abdicou da sua condição humana ao abdicar da capacidade de pensar em liberdade - e, consequentemente, de poder julgar a própria ação como boa ou má. Condená-lo por isso é não compreender e não compreender é não alcançar a capacidade de julgar. Eichmann é culpado de várias coisas, mas de não um crime contra a Humanidade, pois sequer tinha consciência da existência de uma Humanidade à qual a sua ação obediente se dirigia.

A banalidade do mal, percebida por Arendt na década de 60, é hoje prato do dia a dia. A nossa capacidade de pensar é refém de tantos detalhes e pequenos nadas, que somos arrastados e impelidos a não pensar sobre nada, ou a pensar de forma pasteurizada o que convém que pensemos. Pensar dentro da caixa em que precisamos caber, de preferência de forma silenciosa. Nada disso é a forma pensamento que liberta as nossas mãos. Para isso, diz Arendt, é preciso que exerçamos a nossa condição humana de seres pensantes, e que saiamos de dentro da caixa, com todos os riscos, possibilidades e probabilidades múltiplas que representa o que a própria caixa representa: ela mesma, seu exterior, seu interior e todos os seus planos paralelos. Boas coisas pra se pensar num Brasil que festeja a independência neste 7 de setembro e de uma Síria que nesse mesmo momento se arrisca a perder a sua.


"Open Box", de Gavin Turk, 2008

06/09/2013

Moedas, gatos e decoerências

Jogo a moeda no ar, uma vez e outra e outra. Assim que começo a escrever, e portanto penso, alicerço a minha vontade e a minha força em um dos lados da moeda. Presto-lhe atenção, mesmo sabendo que é uma dentre possibilidades. As bordas, o centro, as rugosidades, o tom, o endurecimento do tempo na oxidação do metal. Penso. Procuro entender; não condeno, não perdoo. Apenas procuro compreender a moeda, e enquanto não consigo tê-la em mim em todas as suas formas ao mesmo tempo, observo-a nesse seu lado exposto intensa, completa e apaixonadamente. Depois, lanço-a ao ar outra vez, para que viva na possibilidade aberta, para que seja outra vez cara e coroa ao mesmo tempo. E cai no outro dos dois lados, e o que faço é entregar-me a ele com a mesma intensidade e paixão.

Migro da moeda para a caixa de madeira onde se aninha, à espera, o gato que Schröedinger pôs dentro dela. Enquanto não me aproximo da caixa, o gato está necessariamente vivo e está necessariamente morto. O meu movimento em direção à caixa, o impulso da minha pergunta está contido na mão estendida. Chama-se pensar, o movimento da minha mão, se eu o quero assim. Nasce do interesse-curiosidade, da necessidade de saber que é condição humana. É preciso que o gato seja vivo ou morto, e sou eu, e o pensar que faço conter no movimento da mão, que o faz viver ou morrer no instante em que abro a caixa. Enquanto permanece vivo e morto, não o vejo, não sou sua nem ele meu, dimensões apartadas pelas paredes de madeira da caixa. Mais livres, talvez - mas também mais cativos de tudo o que não tentamos compreender.

A pergunta que não faço, quando escolho olhar a caixa à distância e impedir que minha mão a abra, mantém a possibilidade vida/morte, e mantém a ignorância do meu pensar. Sem pensar, não faço, não sou. Aprisionado no não-interesse, mantenho-me no estado de não-saber. E por isso posso recostar-me na cadeira e respirar um alívio denso que nasce na pessoa que não exerce o seu pensar, e por isso está condenada a não saber o que contêm as caixas que passam em seu caminho.

(O que faço neste momento é escapar das tarefas que me esperam para poder sossegar o espírito. Tudo o que me atinge anuncia-se parte de um todo, e é irresistível não querer parar tudo apenas para poder pensar. Que equivale, em mim, a escrever, essa atividade pensante que me organiza o coração, especialmente.)

Hamlet está diante da mesma caixa com o mesmo gato dentro dela. Somos agora três observando a caixa: Schröedinger, Hamlet e eu. O que fazer, diz Hamlet, com o medo desse país não conhecido que nos aguarda, e do qual nunca ninguém voltou? Abro a caixa ou deixo-a fechada? Hamlet quer saber o que a caixa contém, embora o medo o paralise. Ser vivo e ser morto não é a sua questão: a sua demanda reside no ser vivo ou ser morto. Hamlet procura, em meio ao seu pavor de si mesmo e das forças que movem dentro de si mesmo, ser o agente da decoerência, o que decide a morte e a vida do gato, o que nos joga no modelo clássico fechado e cartesiano onde não seremos duas coisas. Se percebesse que também o movimento de ir e vir da caixa é dúplice e aberto, poderia ir, para depois vir, e depois ir novamente, e a cada um desses movimentos saber-se presente em todos. A superposição é fato, e o não escolher em dado momento um dos lados só nos impede de conhecer ambos.

A experiência aumenta o nosso repertório de compreensão do mundo. É ativa, empreendedora. É atividade de descoberta. E a sua raiz é perire - morrer, perecer. Toda compreensão é morte, toda compreensão é vida, pois vida e morte são os dois lados dessa moeda que atiro ao ar mais uma vez. Perire recua: sua raiz é ire - ir, andar, marchar. Lanço a moeda uma vez mais. Interrogo-a em pleno voo, e ela cai-me na mão aberta como as coisas. Todas essas coisas que parecem, aparecem, permanecem e desaparecem.

As minhas perguntas nascem do sentido da necessidade, do sentido da unidade, do sentido da verdade; querem-se aberturas do ser enquanto ser das coisas. As perguntas que faço sintetizam um ponto de possibilidades, e sinto que devo investigá-lo até que se abra em flor múltipla de várias respostas.

Não posso fazer isso sozinha: os outros são-me fundamentais. E por isso o gato de Schröedinger  por isso a decoerência quântica, por isso o pensamento vivo de Arendt, por isso a fala de seu Cobra Coral, por isso esse Caravaggio que me oferecem ao final, por isso a conversa destes professores grávidos ao meu redor, a informarem-me em mil tons de verdade que estamos e somos. Ao mesmo tempo, íntegros e inteiros. É desta forma, e de todas as outras que se abrirem pelo caminho, que quero viver.


Muitas informações sobre a experiência do gato de Schröedinger 
e sobre decoerência na internet. Frases magistrais no filme Hannah Arendt. Uma sucessão de informações que não consigo localizar no espaço. Fico a dever as referências exatas, mas preciso agradecer ao Ivan Guerrini e à Regina Arnab pelas coerentes postagens sobre decoerência, à Karla Neves pela Hannah e pelo Caravaggio, e ao Ivan pela voz de seu Cobra Coral.