07/08/2013

Diário

(side writing)

No dia em que Ofélia, órfã aos 12 anos de idade, conheceu Robélia, moradora da última rua do Morro do Tatu, o mundo quase desaba. A chuva engrossou o rio do Zinco desde manhã cedo, escorreu pela encosta do morro, até chegar à cidade baixa. Os carros foram entupindo ruas e avenidas, desgovernados diante de tanta água, os vidros embaçados, os limpadores inúteis. Ofélia e Robélia lembram-se vagamente desse caos, mais pelas notícias dos jornais do dia seguinte do que propriamente pela vida em si. 

No mesmo dia, a quilômetros dali, Délia abria as portas cotidianas da loja. O dia cinza, o carregamento das obrigações. Sem nuvens nem sol escaldante. A vida como um soltar de cadeado, portas pesadas sob trancas, chumbo erguido dentro das mãos de Délia, mantendo abertas entradas e saídas alheias. Sentada atrás do balcão, rodeada das autopeças que lhe sobraram de herança do marido que saíra e nunca mais voltara, vidrava os olhos nas lajotas desencontradas da calçada.

Ofélia era esguia, alta e otimista. Robélia apreciara especialmente essa última qualidade, sem desconfiar de que não era construção, mas condição. Sintoma de quem nascera para enfrentar o lado duro das coisas sem dar por isso. Parecia a Ofélia, filha única de pais idosos, que a vida de qualquer um fosse mais difícil e sofrida que a sua, o que facilitava relevar e diminuir os obstáculos do caminho. Enganava, por isso. Tudo apenas parecia lhe ser fácil. Até mesmo as conquistas, num efeito dominó, pareciam menores, como que envergonhadas da própria existência diante da miséria que enxergavam pelos becos.

Robélia gostara desse otimismo, porque a sua vida fora privada dele. A dificuldade e a dureza de cada centímetro conquistado à morte eram seu dia a dia, seu conhecimento, o pano com que a sua vida se costurara. Robélia era a quinta filha de oito; perdida em meio a toda a descendência de seus pais, não tinha lembrança que fosse só sua, que não precisasse dividir com nenhum irmão ou irmã. As memórias eram sempre de outro, calejadas pelas vozes que as repetiam sem a incluir. A vida esfumava-se diante das conquistas alheias, e seus olhos sôfregos demoraram a encontrar outros que se fixassem em seu centro sem se desviar. Robélia contaria a Ofélia, meses ou anos depois, dessa infância que só descobrira infeliz depois de conhecê-la. Ao que Ofélia responderia espantada “quem foi que te disse que a infância pode ser feliz?”. 

E Robélia pensou que talvez Ofélia fosse outras além da que via. Mas não deu importância e continuou a vida como se estivesse resolvida e encaminhada. Por coisas assim, dizia-se de Robélia que era prática e simples; àqueles que traziam problemas, Robélia aconselhava com justiça, ponderação, equilíbrio e lucidez. Resolvia contendas, equilibrava opostos e resolvia discussões como se tivesse nascido para conciliar os contrários do mundo. Sua escola foram anos separando brigas de irmãos e resolvendo picuinhas de irmãs, mas ninguém se lembra dessa sua atividade de árbitro e juiz da infância. Ela mesma só se lembrou disso quando Ofélia lhe perguntou, com aquele olhar de quem vê tudo pela primeira vez.

Délia não tinha a quem contar da sua infância. Isolara-se dentro da loja, como se tudo na vida se compusesse de bronzinas, tuchos, bielas e válvulas. Seu mundo seguro. Sem eventos que lhe alterassem a ordem das prateleiras. Interessava-lhe pouco perscrutar o próprio passado, porque se ocupara com afinco em apagar as partes de que não gostava. Apagara tudo. Délia fechava-se como uma ostra que não tem a menor intenção de dividir a construção da sua pérola com ninguém. Orgulhava-se de seu sofrimento contido, das suas lágrimas engolidas, dessa maneira distante e estéril que construíra para ganhar da vida. Não sabia como andava o placar, mas cada vez percebia menos as vitórias do time oposto. Não tinha amigos que se pudessem chamar de íntimos, mas todos que a conheciam pensavam que certamente era convidada para festas e jantares. Porque era basicamente simpática e sabia ser afável sem se doar. Délia saía de casa sozinha e sozinha regressava. Mesmo quando acompanhada.

Naquele dia de chuva torrencial, Ofélia perdera-se. Antes de perceber a presença concreta e palpável de Robélia, encontrou seus olhos e estes os dela. Esqueceu-se de que estava perdida e parara para pedir informação. Saiu do carro, trancou-o e convenceu-se de que tinha fome. O pequeno restaurante em frente pareceu obra da providência, e providencial foi encontrar as mãos de Robélia e poder observar-lhes os nós dos dedos enquanto serviam seu prato. O sorriso de Ofélia desarmou as reservas da cozinheira. Se houvesse um cheiro para esse momento, seria o da hortelã recém-colhida. Ofélia perdeu a entrevista desse dia, e quase perdeu o emprego também. Demorou uma semana para reaparecer, com uma história vaga e mal contada de um carro quebrado e a reincidência de uma gripe mal curada.

Ainda hoje o barulho da chuva tamborilando no batente da janela traz aquele dia para dentro da vida de ambas. Ainda trocam olhares ou mensagens sentindo a falta mútua que a chuva desenha. O limpador do para-brisas do carro de Ofélia parece-lhe um adeus entristecido, assim como as gotas que escorrem pela janela da frente do restaurante lembram a Robélia as lágrimas de um enterro.

A vida quis que passassem mais tempo do que gostariam afastadas uma da outra. Em junho daquele mesmo ano, Ofélia estourou o escapamento do carro a meio de uma viagem. Parou numa loja de autopeças e foi catapultada para dentro da imensa e mansa loucura de Délia. A seu lado, a vida de todos os dias repentinamente desbotava. Mesmo parecendo disforme, não levantou a mão em recusa. Ofélia desfez-se da própria vida para abraçar a de Délia, e apenas a lembrança de Robélia existir em algum lugar enchia seu coração de esperança. O olhar otimista diante do adverso tornou-se escasso, porque o próprio adverso assumiu esporádicos contornos, como se tudo estivesse sendo o que estava previsto que devia ser. A inevitabilidade que Délia transpirava colou nos poros de Ofélia como piche.

Quando Robélia a encontrou, anos depois, Ofélia era um pálido esgarçamento do que fora. Os olhos da quinta de oito irmãos encheram-se de lágrimas que porém não transbordaram, porque também a sua cota de dor fora entregue conforme o tempo passara. Agarrou-a por uma mão e arrancou-a do mundo de graxa em que se enfiara até o topo do pescoço. Ofélia, que nunca antes permitira que a agarrasse pelas mãos, tinha os pulsos marcados e os ombros cheios de pesos que não eram seus. Robélia usou de toda a paciência que aprendera para retirá-los, um a um, enquanto alisava os pulsos de Ofélia e os ungia com o óleo que os santos usam e as igrejas vendem dizendo ser benzido.

Délia retomou o mesmo olhar sobre as lajotas das calçadas, ruminando a vida conforme ela se apresentava. Não se moveu nem mesmo pensou fazê-lo, nenhum quilômetro galgado para conferir se esse afinal não era mesmo seu destino. Porque o destino, e disso ela estava certa, era aquilo que lhe batia à porta e não se fazia força para encontrar ou abraçar ou possuir. Délia era uma mulher sem esperança e sem anseios. Viver ao seu redor era respirar o som do veneno. Sugara o otimismo de Ofélia como quem retira a substância vital de uma planta até fazê-la desabar no solo. Sem esforço, porque Ofélia o oferecera, enorme e belo como era, sem medidas e sem limites.

Engana-se quem achar que os anos de Ofélia junto a Délia foram difíceis, tristes, sombrios. Havia uma bem-aventurança legítima, um senso de compleição necessária, e a sua entrega nunca fora e nunca voltaria a ser a mesma. Não porque tivesse sido esgotada, mas porque era assim que devia ser. Ofélia e Délia arrastavam-se uma para dentro da outra, pela força do destino que era a força maior do universo. Ofélia, que nunca na vida pensara não ser responsável pelo próprio andar, parara de pensar por si própria para absorver por inteiro esse pensamento novo, e enquanto se desocupava para entender a memória da outra, esqueceu o quanto é importante ser previdente e adiantar-se às desgraças. Esqueceu os acidentes, os anos de orfandade e abandono, as cicatrizes da sua alma. Porque a alma de Délia pedia-lhe tanto, pensava ela, que seria triste não lhe oferecer tudo.

Não sei quem, das três, sofreu mais. Ofélia desiludiu-se de si mesma, Robélia deixou de acreditar no poder absoluto do amor, Délia não tinha mais com o que se desiludir. Quando as olho, nas fotografias que guardo dentro desta gaveta que já quase não abro, estremeço como se uma aragem gelada me chegasse pelas costas e me encontrasse desprevenida. Quero tocar-lhes os rostos, abraçar-lhes os braços e dizer-lhes que a vida sempre vale o preço que se paga.

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