09/08/2009

São Paulo, ontem

São Paulo, a cidade, tem a capacidade de despertar-me tudo o que de mais rápido vive em mim. Quando estou na disposição correta (e ontem estava), isso diverte-me imensamente, porque consigo quase que ver-me de fora, manipular-me até, transgredindo o que seria o meu normal, vendo o que acontece nessa inversão da ordem que me diz do que faria fosse eu outro. Parece estranho ao pensar nisso pela primeira vez, mas demora-se pouco para perceber o tamanho da recompensa.

Ontem, por exemplo, precisei ir a São Paulo para algo que tinha que fazer apenas às 18h. Ainda assim, decidi sair cedo, de manhãzinha, porque pensando na ida e oferecendo carona, logo me apareceram duas, que precisavam ir cedo, e cheguei à conclusão de que seria interessante sermos companhia uns dos outros. E lá fomos – meus planos, de um vácuo vazio, apenas possibilidades que deliberadamente deixei por conta da carta com que o tarot me perseguiu nas últimas semanas: a roda da fortuna. Portanto: nada de planos, porque não me pertencem. Quando essa demanda se amalgama à própria percepção e acompanha o ritmo natural do dia, é ótimo; quando não, é um pesadelo.

Dias como esse, de tão intensos e completos, parecem vários, e tanta foi a explosão de sensações e tantas as impressões que se acotovelaram à minha superfície, forçando a entrada avassaladora e descontroladamente, que até dirigindo eu precisei dar um jeito de rascunhar algumas coisas, porque iam escapar-se de mim com certeza, com tal velocidade me chegavam, de todos os lados. (Sim, é claro que é perigoso, não aconselho ninguém a seguir-me a ideia de rascunhar coisas em plena marginal, imagino que seja proibido e comporte até uma multa, mas exemplifica bem, e a rigor, o estilo de urgência que me ataca de vez em quando, e ontem em especial.)

Essas inspirações, que não marcam hora e são como aquelas visitas que chegam quando você está de saída e atrasado, atingem-me no centro do peito e alteram-me a respiração de uma maneira caótica. Escrever resolve o que poderia ser esse primeiro problema – mas é na verdade a absoluta solução, e eu sei disso mesmo que de fora pareça outra coisa. Ontem não teve mesmo nada de problema, antes uma agitação de caráter sublime, que fiquei observando em mim mesma, encantada com o que me acontece de vez em quando, graças a vai-saber-o-que.

E cá estou, São Paulo luminosa e ensolarada. Deixo minhas caronas simpáticas e confiantes na minha capacidade de direção, e vou em busca da amizade que há tempos não encontro. Entrego-me absoluta em suas mãos: que me leve onde queira, faça comigo o que deseje, alimente-me ou alimente-se de mim, que pra mim tanto faz, a felicidade do encontro já é tudo e não preciso de mais nada. Graças a essa possibilidade aberta com que acordei, e que consigo examinar agora, tudo é um todo completo, que chega para me dizer tantas coisas que eu quase me perco, atônita com a sintonia à minha volta.

Pra começar (e terminar, senão isto fica longo demais), entre várias opções, decidem-me pela da exposição de Sophie Calle. Sim, lembro-me de ver seu nome em meio aos tantos da FLIP deste ano, mas não sei nada dela, estou afastada de tantas coisas. Descubro que essa criatura francesa, ícone da arte contemporânea (“arte de amplo espectro”, leio na introdução ao folheto que me entregam), tem por caminho a exposição da sua própria vida, nua, crua e de dentes e ossos abertos; custa-me fechar a boca, de tanto que me percebo. Desta vez, nesta exposição/instalação que aliás fica no SESC Pompéia até o dia 7 de setembro e vale a pena ser visitada, o objeto do seu trabalho parte de um email de rompimento amoroso que recebeu de um homem, o seu próprio amor. De cara, antes mesmo de entrar, mal ponho os pés no Sesc e vejo lá embaixo (a exposição é num dos galpões inferiores) o título da exposição (“Cuide de você”), sei que algo de significativo se abriga ali, ainda que não saiba do que se trata. Não são exatamente as palavras, nem me dizem tanto, mas talvez o cuidado gráfico, a disposição de banners ao vento que chama a minha atenção, que se desatina e nem realiza o recital de cítara no salão principal deste Sesc com recordações de tantos anos. Ou talvez não seja nada disso, e apenas a intuição antecipando-me a vida.

O tal email, que a destinatária deixa sem resposta, foi enviado a mais de 100 mulheres, cada uma de um quadrante da vida, para que a analisem a partir da sua própria percepção e ocupação profissional. Nada de pedir ajudas, ou de compartilhar a dor; o intuito é perceber como os outros perceberiam (creio eu que ainda assim isso é um compartilhar, mas vamos lá...). A exposição destacou algumas destas contribuições à dor de Sophie, numa estranha e complexa espécie de terapia auto-coletiva mediática: uma jurista, uma encarcerada, uma papagaia, algumas atrizes, dançarinas, uma especialista em direitos da mulher, outra em boas maneiras, uma tradutora de linguagem sms, uma etnometodologista (?), uma intérprete do talmude, uma headhunter, uma mestre em ikebana...

Cada uma, uma percepção e recepção; cada uma, espaços possíveis de uma resposta que nunca acontecerá, num processo em que não se vislumbram as linhas divisórias da ficção e da realidade, provavelmente (penso eu) porque toda realidade seja uma ficção de cada um à sua maneira. Sei que não gosto de me pensar realidade, e realizo-me na ficcionalização cotidiana de mim mesma como manobra de pura e banal sobrevivência - e deve ser por isso que a minha boca não quer fechar-se. Não tanto pelo que leio, pelo que vejo, pelo que ouço – mas antes por causa do próprio conceito, pela descoberta de que inventaram nomes para as coisas que faço cada vez que acordo (e compreenda-se que eu acordo várias vezes ao longo do mesmo dia).

Descubro depois que a passagem dessa Sophie por Paraty aconteceu pela mesa redonda da qual participou, e na qual estava também o autor do tal email, também escritor. Terá a exposição despudorada da dor tornado mais fácil o seu filtrar e a sua despoluição? Terá a exposição permitido a dor das pequenas torturas que nos impomos, e que nos são vitais, sem que as rechacemos e nos abstenhamos dos seus ensinamentos?

Às vezes, penso comigo mesma, sinto-me realmente intoxicada. Como esse Tietê aqui ao meu lado, passando por essa cidade cheia de surpresas rápidas, instantâneas, tão dessa modernidade em que não importam mais os quinze minutos de fama, mas cada cinco da própria vida. E nós perdendo tantos deles, brincando de kart pelas ruas sem pneus de proteção, expostos sob a ilusão do capacete em nossas cabeças, achando que tudo é sério, muito sério, e demanda os meses de espera que o passado mais tarde condena.

07/08/2009

Chuva, avós e amor

Perguntaram-me outro dia, por email, porque guardo tantas lembranças de meu avô. Na verdade, as lembranças que mais guardo são as da minha avó, mas ele vem-lhe atrelado, e posso explicar por que. Um acontecimento de uma noite de tempestade pode dar um pouco essa medida. Para eles talvez não tenha sido feliz, porque afinal tratou-se de um acidente de carro, mas eu lembro-me com aquela espécie de ternura que comove a mais empedernida das pedras.

Foi graças a uma das consultas noturnas de meu avô, num inverno molhado como todos os da minha infância. Uma espécie de tempo como este que não nos largou durante o mês de julho, em que chove, chove e chove, e o único alento é que certamente um dia deixará de chover. Lá, na minha infância, todos os invernos eram assim, com o agravante de que o frio era maior.

Nesse dia, o frio estava cortante e a chuva alfinetante. Lá tocou o telefone, não deveria ser cedo porque já tínhamos jantado. Minha avó anotou o endereço na caderneta, e meu avô bem tentou fingir-se de dormido, que eu percebi pelo canto do olho, abandonando a leitura de um dos livros do Enid Blyton que me acompanharam a infância tanto quanto a chuva.

Mas o dever chama, e encolhendo os ombros, talvez pensando que ainda bem que era longe, daria tempo do mau humor se dissipar, arrastou-se em direção à porta de entrada. Minha avó estava curiosamente animada naquela noite, e lançou um “Ó João... e se nós também fôssemos?”. Eu achei a melhor das ideias, aquele frio, aquela chuva, aquela escuridão, e nós no 2 cavalos do meu avô, chacoalhando como natas a caminho da manteiga. Contente com a indicação aceite, pus casaco, botas e luvas e lá fomos.

As horas de espera na salinha da casa do doente foram a parte menos divertida, porque a luz era pouca e não havia nada para fazer; às vezes os doentes do meu avô tinham crianças em casa, o que era animado, mas não neste caso.

Na volta, a chuva piorara bastante e os relâmpagos assustavam. Meu avô detestava dirigir com chuva forte. Aliás, dirigir não era o maior dos atributos do meu avô, embora o tenha feito até o dia em que morreu, aos 86 anos de idade. A cidade inteira (e não se trata de uma cidade pequena, para os padrões portugueses ao menos) conhecia o citroen vermelho do meu avô, basicamente porque já era o único daquele tipo a existir na cidade. Assim que o viam virando a esquina, os demais motoristas abandonavam a corrente noção de que um “pare” signifique que o sujeito vá de fato parar, ou que uma via preferencial seja entendida como tal por todos os mortais. Aparecia meu avô sacolejando na rotatória da Praça da Rainha, obviamente tendo de parar antes de entrar: quem parava eram todos os demais, dentro da rotatória inclusive, para o deixarem passar, livremente e sem dar por isso, em direção ao cemitério e à visita diária a minha avó. Na Praça da Fruta, a mesma coisa: “Lá vem o Dr. João!”, e logo paravam todos, prontamente. Eu, quando pequena, achava aquilo a maior consideração, embora sumisse quase que para debaixo do banco de vergonha. Já mãe de dois filhos, e acompanhando-o nessas visitas à minha avó já morta, admirava-me com aquela compreensão que fazia com que a cidade inteira, novos e velhos, nascidos lá e enraizados também, entendesse que as leis de trânsito não se faziam para aquele senhor de olhos cinza.

Mas enfim. Nessa noite da chuva, meu avô decidiu passar o volante à minha avó. Decisão sábia, que ela dirigia muito mais cautelosamente do que ele. Parece que a chuva a atrapalhou, e meu avô nervoso, dando indicações que pouco ajudavam, devia obter o mesmo efeito. Eu, no banco de trás, mais calada que um rato, não fossem as sobras serem minhas.

A visão quase nula, e muitos carros em direção contrária. Uma guinada transportou-nos a todos para a berma (adoro essa palavra, sinônimo de acostamento, que não uso há séculos!) e o carro resvalou, quase virando.

Minha avó tinha um problema cardíaco sério, que lhe rendia cuidados constantes por parte de todos; cuidados curiosos, como o de manter uma jarrinha de água com uísque ao lado da cama, para tomar um copinho todas as noites antes de dormir, medida que dizia meu avô ser boa para o coração. (Decidindo cuidar do meu por conta própria, fazia o mesmo de vez em quando, mas acho que nunca ninguém deu por isso.) O susto do meu avô, que poderia ter se transformado em cólera, eu já tinha visto disso e fiquei preocupada, colérico que era, metamorfoseou-se repentinamente num gesto que lhe abriu os braços protetores, fazendo-o lançar-se sobre a minha avó para a afastar do perigo que viesse. Foi tão rápido, e ficaram tão perto um do outro, que os olhos tiveram que fazer um beijo acontecer, tendo-me como única testemunha.

Há pessoas que se sentem desconfortáveis em manifestar (publicamente, pelo menos) o seu carinho e o seu amor, e meus avós estavam dentro desse rol de pessoas. Nesse dia, de um sutil e meigo que quase se perde no meio de toda a chuva, o amor dos dois tornou-se muito palpável, e porque não o era no dia a dia, gravou-se na minha memória, e tornou-me fácil compreender anos depois as saudades absurdas do meu avô, depois que a minha avó morreu.

Lembrei-me de tudo isto hoje, quando fui acordada no meio da madrugada por um telefonema de longe, que me trouxe de volta a voz do amor da minha vida. Agora que o dia amanhece, e eu percebo o quanto os dias se arrastam sem ele a meu lado, percebo-lhe a qualidade simples, inteira e sólida daquele instante de uma noite de chuva e acidente. Com todas as alegrias, dificuldades e promessas que trazem consigo as coisas simples, inteiras e sólidas, porque nunca são, é claro, apenas isso.

04/08/2009

Do latim

A etimologia sempre me interessou. Não necessariamente, ou logo de início, como ciência exata (que não é mesmo) ou como curiosidade histórica, mas mais como oceano de possibilidades e conexões misteriosas e ocultas entre nós e os que estiveram por aqui antes. A própria substância autônoma das palavras, ainda naquele estado de dicionário que lhes acusou Bandeira. Presenças e ausências alfabéticas que criam essas possibilidades de existências além dos nossos olhos.

Descobrir que “confraternizar” tinha uma ligação tão íntima com o perceber no outro um nosso irmão, e por isso é que meros encontros são momentos de alegria e regozijo nos braços da fraternidade, acompanhou-me assim que o latim entrou na minha vida. “Frater meus, alter ego” (meu irmão, outro eu) foi um bom tempo a missiva que circulava entre eu e meus fraternos amigos da altura.

Na verdade, um pouco depois. O latim apareceu-me antes, com uma das minhas tias, a que gostava das línguas mortas e até se parecia já naquele tempo com alguma delas. Aconteceu na voz de um belga morto em 1978, Jacques Brel. Tinha ele musicado a primeira declinação latina (Rosa rosa rosam/Rosae rosae rosa/Rosae rosae rosas/Rosarum rosis rosis
, numa letra da música sem coincidência exata com a declinação clássica), chamando-lhe, por entre isso que era o refrão, de “tango dos que farão a França de amanhã”.

Queria a minha tia introduzir-me dessa forma a todos os casos declinados da língua de Roma, mas eu fiquei-me durante anos na música de Brel, e ela acabou por se frustrar e, segundo disse, “ficas abandonada à própria sorte”. É bom saber que nessa altura nem estava eu ainda alfabetizada, como é que ia me interessar por decorar obscuras declinações latinas sem melodia anexa?

Anos depois, tive a sorte (jamais diria isso naquele tempo, mas enfim...) de ter aulas de latim por algumas das escolas por onde passei do 5º ao 8º ano. Foram vários professores, todos eles homens, creio eu, mas um deles, que aliás era padre, é o que guardei na memória, provavelmente por ser o mais bem humorado e por, ainda por cima, saber “de fato” latim: falava latim. Imagino que por causa dele eu tenha passado por todas essas experiências, frustrantes na sua maioria porque aprender que foi bom, nada - e até hoje goste de latim. Na faculdade nem cheguei a me sentir perseguida pelo querido professor Alceu, que literalmente caçava os alunos pelos corredores e por várias vezes me (nos!) deixou em imensas e quilométricas recuperações de traduções, que eu fazia livremente pelo que me parecia soar, sem grande paciência para descobrir-lhes o caso (e, coincidentemente, o significado) exato. Chegava perto, mas Alceu queria as coisas exatas, e explicadas.

Numa dessas recuperações (isto não vem nada ao caso, foge ao plano inicial desta crônica, que é outro, mas lá vai), decidimos marcar a tal da recuperação na casa dele, talvez já ele estivesse farto das tais das recuperações no campus da faculdade. E lá fui eu, e mais alguém de quem agora não me lembro, porque a figura até que terminou rápido e logo se foi, puro alívio. Eu rabisquei algumas coisas e levantei-me. Fui ficando, que a biblioteca do professor Alceu era respeitável. Encontrei tudo o que devia traduzir no original, em edições antigas; nada que me ajudasse na tarefa em mãos, mas eram livros com aquele tipo de cheiro que traz tudo menos livrarias: traz mãos e toques antigos, horas noturnas sob mesas pouco iluminadas, cigarros acesos e mentes pensando, sussurros ao pensar numa possibilidade, saboreada do único jeito possível - em voz alta. Quando dei por mim, o Alceu estava sentado na sua poltrona, muito feliz de que alguém mexesse naquelas prateleiras. Conversamos tempos e tempos, e quando fui embora já estava de noite, e eu preocupada com as crianças, o jantar, a casa... Quando lá cheguei, descobri que a prova tinha vindo comigo, e esqueci-me dela. Alceu nunca me perguntou por ela, e aquele foi afinal meu último semestre de latim.

A digressão vale-me agora a sensação de que é disso que a vida é feita e é por isso que vale a pena, independente, o Pessoa que me perdoe, do tamanho passível das almas.

Tudo isto para chegar ao que me prendeu hoje, e que na verdade até (reparo agora) tem a ver com esta história do Alceu. A diferença imensa entre as palavras “partilhar” e “compartilhar”. Debato-me com elas há meses, tentando perceber-lhes no meu dia a dia onde mesmo é que se encontram e onde é que enfrentam caminhos distintos.

Senão, vejam.

Não são forças opostas, parece-me a mim, antes energias manifestas de coisas bem distintas. Uma envolve o outro, objeto do partilhamento, na sua dimensão ausente, sem dele nada requerer, um pouco como se ele apenas existisse como as estrelas do céu que não imaginamos nos estejam atentas, apenas nós a elas; é um impulso de dentro pra fora, e o dentro é auto-suficiente; não há nada no fora que se queira ter de volta.

As três ínfimas letras que se juntam ao “partilhar” acomodam esse outro ao nosso lado, confortavelmente (ou não) instalado na poltrona defronte da janela aberta, ouvindo o eco dos silêncios da vida. Incorporam uma outra explicação do mundo, uma outra porta aberta, por onde esse outro se expressa e por isso nos transforma, por isso nos deixa passíveis de sermos um eu melhorado e mais inteiro, por conter aquele outro que até então expectava (se é que tal palavra existe; meu corretor ortográfico aqui diz que não mas eu não vou ao dicionário porque a palavra me agrada quer ele diga que exista, quer não).

Compartilhar implica movimento, disponibilidade, entrega, admiração, encantamento, liberdade, aceitação. Uma forma especial de fluir que se parece com o movimento da água. Invisível, sutil, permeada pelo silêncio do que se move no subsolo, quase sem forma. Compartilhar expande o que se quer na direção do que se descobre.

A energia desse “partilhar-com” abriu-se na minha vida através destas crônicas, atingindo-me em cheio dentro de um movimento que pretendia apenas e tão somente partilhar. Partilho deste lado, um tanto a medo confesso, porque a exposição acontece. E quando menos espero, e no momento exato em que preciso, ouço ou leio alguém que me retorna, que me norteia, que me traz o parâmetro que sozinha não posso ser, e o meu ser inteiro se abre em asas que me transcendem e me movem na direção que não é minha apenas. Recebo esse compartilhar como recebo outros tesouros: com os dedos trêmulos e com os olhos em brilhos de satisfação de ler e reler, e sempre me deixar surpreender pelos milagres que não podemos nunca deixar escapar por entre os dedos.

Acabei de ler aqui num blog a palavra com a qual me vou deitar: “vigiai” – está tudo aqui, diante de nós, e somos nós quem dizemos sim ou não. Sermos solitariamente partilhados ou em graça dividida com-partilhados.

Da origem da escrita

Meu avô, além de ser médico, escrevia. Entre uma consulta e outra, entre um e outro receituário, riscava no caderno que guardava no bolso esquerdo umas quantas linhas, sobre as quais se debruçava nos longos serões perto da lareira, pleno inverno.

Muitas vezes interrompia-se o serão. Lá saía meu avô, a cavalo, precisando correr para acudir ao parto que lhe doava, no final, aqueles dois versos de inexplicável beleza com que nos brindava assim que raiava o sol, no dia seguinte. À mesa do café da manhã, já pronto para sair de novo, repetia-os uma vez e outra, parecendo saborear, junto com a bolacha e o copo de leite quente, cada som, cada palavra.

Minha avó, ao fogão, respondia pelo lado prático: “O leite, João!”, “A hora, João!” “O hospital, João!”. E ouvia sorrindo entre dentes, satisfeita de que a vida assumisse, assim sem querer, um brilho mais límpido, mais transcendente.

Meu avô escrevia crônicas também. Um dia, publicaram-lhe uma. A revista circulou pela família como relíquia, e meu avô, tão feliz, gostava de ler-se uma e outra vez.

As primeiras letras que eu quis decifrar foram as que ele escreveu. E as primeiras que eu escrevi, escritora mirim querendo ser grande, imensa, como os sons das palavras de meu avô, foi a ele a quem mostrei. Olhou-me sério, e embora me dissesse nada entender, eu entendi que tudo ele compreendera. Mas não podia dizer, porque não podia quebrar o segredo das minhas palavras. Sorri-lhe agradecida, cúmplice, e nunca mais parei de escrever.

Meu avô tinha um grande amigo, grande escritor também. Todos os anos o encontrava, porque eram da mesma turma de curso de Medicina, de um tempo que prezava a reunião anual, o confraternizar como irmãos de fato. Uma vez acompanhei meu avô. A esse escritor, vi-o ao longe – quando ele se aproximou, suspendi a respiração, apertei-lhe a mão e, surpresa, constatei que era quente, como a de um mortal comum. Fez-me sentar ao seu lado, e presenteou-me com um de seus livros – eu, pequena do tamanho de pouco mais de 10 anos, pouco entendia do que ele escrevia, numa letra miúda em página inteira, mas na prateleira por cima da minha mesa de trabalho, lá está, luzidio, o volume dos “Diários”, dia sim dia não inspirando as minhas próprias palavras.

Minha avó, enquanto isso, dava-me livros, poemas, receitas, notícias... e muitas outras coisas, mas que eu quase não via, porque não eram escritas. A sua caligrafia miúda, inclinada, desenhada, preenchia meus cadernos com exercícios de escrita que ela corrigia, depois, com paciência e respeito de quem tinha por marido um poeta. Sua caligrafia serviu-me de modelo para subverter, quando a idade o pediu, a caligráfica medida.

Há vários livros em minha estante que acusam a oferta – “Para minha neta, no seu 13o aniversário” ou “A minha neta, em mais um Natal” ou ainda “Do avô querido, ao término de mais um ano escolar”. Guardo-os como testemunhas de um outro tempo, mesmo que já não os leia porque outras leituras agora me aguardam. Mas assim que adoeço, que preciso deitar-me, que a saudade de ser pequena e cuidada sacode a minha alma, é a eles a quem recorro: sinto-lhes o cheiro, releio-lhes as rugas, volto a ser aquela que fui e que permitiu ser a que sou.

Numa dessas ocasiões de oferta, o mal-estar instalou-se entre meus avós. Na hora do almoço, chegada eu da escola, molhada em dia de chuva e longa caminhada, chegado meu avô do consultório, sacolejando em seu vermelho citroen dois cavalos, lá estava um embrulho na mesa, de laço amarelo, papel encerado de uma cor só. Meu avô de olhos brilhantes e minha avó já desconfiada.

- Sim, está bem, João, mas antes vamos sentar e almoçar.

Ninguém discutiu a norma, e lá nos sentamos os três à grande mesa órfã dos muitos filhos destes avós. Imensa nesses dias, parecia encolher-se na Páscoa, ou no aniversário festivo da minha avó, dia 15 de Agosto, dia também de tourada, para horror da pobre senhora a quem horrorizava essa trágica tradição. Mas agora lá estávamos os três – e o pacotinho embrulhado, piscando o tempo todo, entre uma garfada de purê de batatas e um pedaço de frango. O garfo interrompia o caminho do prato à boca e lá se ouvia minha avó:

- Ande, menina, coma.

Meu avô olhava de rabo de olho, e pedia um pouco mais disto, um pouco mais daquilo. Resmungava contra a dieta que ele próprio se impusera, cuidando do coração e do colesterol – ...”ah, que saudades do pernil, lembra Ofélia?” ou “Ih, que vontade de um bifinho empanado...” – e o tempo da refeição se passava sem que o frango grelhado e o purê de batatas recebessem qualquer elogio.

Ninguém tomava café, por isso foi só a pera cozida da sobremesa (“maldita dieta!”) e logo o passar rápido de mão à procura da ponta da fita para desembrulhar o que eu já sabia, claro, só podia ser um livro. Assim que o abri, vi logo que era uma edição para gente da minha idade – “O clube da Karla”, numa capa vistosa e com desenhos que, se não primavam pelo bom gosto, certamente chamavam a atenção e despertavam o interesse de uma menina de mais de 10 e menos de 13 anos.

Minha avó, assim que passou os olhos pela capa, leu o título e viu os tais desenhos, não se conteve:

- Ó João, mas... tu leste? Folheaste? É sobre...? Eu não estou a gostar disto...

- Ora, Ofélia, olha lá o título da coleção: “Mestres infanto-juvenis” – o que é que eu preciso ler?

Minha avó arregalava os olhos: - João, parece que não sabes o mundo como está, cheio de malandragem, a levar as crianças para os piores caminhos?

E meu avô encolhia os ombros e sentava-se em sua cadeira, disposto a desfrutar a sua sesta cotidiana. E eu tentando ler o livro, pôr-lhe as mãos de novo – mas quem disse que minha avó o largava?!

O telefone tocou. Minha avó, telefonista de plantão daquele que fora o primeiro médico rural a instalar-se na região, caneta a postos, disposta a anotar o endereço do chamado. O suspiro de meu avô fez-se ouvir assim que deu com os olhos no papel – lugar longe, de acesso difícil de terra e cascalho, ainda mais nesses dias de chuva e frio...

- Ofélia, eu vou a cavalo. E a menina, se quiser, que venha também.

A contra-gosto, e sem meu livro novo, lá fui, no fundo feliz porque não era sempre que podia acompanhá-lo nessas visitas.

O lombo do Trovão era tão grande que servia aos dois, avô e neta. Na minha imaginação ele corria ligeiro, saltava pontes e cercas caídas, galopava com as crinas ao vento pelos campos afora, e até mesmo uma lua cheia iluminava as curvas e escondia o depois delas, embora fosse dia claro. Mas na realidade ele pouco galopava, muito menos saltava, limitando-se a um trote muitas vezes incômodo, mas seguro, e a uma paciência sem fim para longas esperas à porta do doente.

Seu Custódio estava de cama, com um aspecto sofrido, mas nunca soube que doença o atacava. Sei que meu avô, com sua maleta na mão, entrou pela porta estreita da casinha e lá ficou duas, três, quatro horas, saindo suado e cansado e deixando seu Custódio aliviado e devedor (“Pagar, senhor Custódio? O senhor há de pagar-me lá por volta do Natal, com um de seus perus!”). O caminho de volta, mais silencioso e mais escuro, via as sombras da noite aproximarem-se. Anoitecia cedo, naquela época do ano, e o vale onde se encontrava a casinha do senhor Custódio era tão fundo, mas tão fundo, que certamente anoitecia lá antes do que em qualquer outro lugar do mundo. Cães latiam aqui e ali, e as luzes do poente iluminavam o céu. O ombro do meu avô deixava-me às vezes ver a estrada adiante, conforme o trote do Trovão permitia. Mas a paisagem a ambos os lados era suficiente para encher-me os olhos. A cada casinha, perguntava-me quem a habitaria, e muitas vezes o descobria, porque à janela lá assomava a senhora Vicenta, a senhora Elisa, a menina Maria, que o meu avô cumprimentava com um aceno de cabeça, um gesto de uma das mãos ou um “boa tarde!” às que lhe acenavam.

Meu avô era conhecido de todos – e não é força de expressão. Como único médico do lugar durante anos, e mesmo depois da chegada de outros, único que ainda fazia visitas na região rural onde só se chegava a cavalo, a qualquer hora do dia ou da noite, era querido pelos tantos que já ajudara: mulheres em trabalho de parto, homens com crise de gota, crianças com difteria.

Ao chegar a casa, entrando pelo amplo portão recém pintado de azul, encontramos minha avó à porta, feliz e sorridente. Foi conosco até à baia do Trovão, ajudou a tirar-lhe os arreios e ficou encostada às madeiras fortes da armação do estábulo enquanto meu avô passava uma rápida escova pelos flancos do animal. Água fresca à vontade e uma braçada de feno, que eu fui buscar, e lá voltamos para casa, quase já noite escura.

A porta da cozinha estava entreaberta, e um cheiro de bolo de laranja fugia pela fresta, vindo encontrar-nos a meio do caminho. Assim que chegamos e abrimos a porta, minha avó foi até à sala e de lá voltou com uma mão atrás das costas e um sorriso nos lábios. Chegou perto de mim, esfregou-me a cabeça como sempre fazia com a mão à vista e apresentou a outra, dentro dela o “Clube da Karla”. Tranquila e segura, disse-me que certamente eu ia gostar, e que era uma pena que fizessem capas tão feias para livros interessantes. Agarrei-me ao livro e a um pedaço de bolo de laranja e comecei ali mesmo a mergulhar no clube dessa menina, apaixonada como eu por livros e que, parecia, também tinha uma avó atenta e carinhosa.

Meu avô adorou a novidade do bolo, embora reclamasse que “Mas sem cobertura?! Ora mas que chatice...”. Afundada no sofá verde da sala, vi-o ir buscar o seu livro de poemas e sentar-se em sua cadeira favorita. Minha avó já tinha sua leitura entre mãos, que eu reparei ser também de poesia. O silêncio instalou-se, permeando mais um fim de dia, que se mantém intacto, e vem à tona quando o mundo vem buscar-me e não me encontra pronta.

02/08/2009

Sonhos

Acordei no meio da noite passada, acho que graças a um sonho que há muito tempo eu não tinha: acordo de repente e não sei onde estou. Literalmente – acordo do sonho e olho em volta e não reconheço nada do que me rodeia. Ou de repente até sei, variante da versão dominante deste sonho, mas tenho certeza de que não é o lugar onde devia estar. Se alguém desse lado leitor puder ajudar-me a interpretar estes sonhos, eu agradeço, porque (já faz tempo, mas) cheguei ao limite de acordar e não saber, durante bastante tempo, em que casa estava e com quem dormia.

Já me disseram que pode ser uma crise de sonambulismo, mas eu sei distinguir uma da outra, e percebo claramente que estou acordada, só não faço ideia de onde esteja. Num passado típico de adolescente, tive vários episódios de sonambulismo, daqueles que rendem boas anedotas para entreter tios e tias à mesa do jantar. As do meu pai, entretanto, sempre superaram as minhas, porque ele, já longe da adolescência, continuava sonâmbulo, atividade pouco adequada à sua vida diplomata. Num de seus acessos, que eram cíclicos e quando chegavam duravam alguns dias, estava ele em algum hotel de algum país. Acordou de manhãzinha, enroscado em si mesmo diante das portas dos elevadores do saguão do hotel, com o time de recepção de plantão à sua roda, pasmo, olhando aquele senhor de pijama xadrez roncando suavemente no tapete do hotel. O episódio garantiu-lhe uma popularidade invejável durante a conferência de turismo da qual participava, e foi notícia nos jornais da cidade. Bem humorado como era, divertiu-se às pampas com o fato.

Este sonho que me acorda hoje é daquele gênero que já me preocupa – nunca vem sozinho, prolonga-se por várias noites, e tende a um crescendo de intensidade que com certeza me garantirá horas e horas de insônia, metade delas à cata de explicação. Há dois tipos de insônia na minha vida: um, produtivo, em que me levanto e decido o almoço, a arrumação da gaveta, a solução para o problema poético que não se resolvia há semanas, a lista de compras que esquecerei ao entrar no carro, a organização das aulas da semana; outro, desgastante, que me faz rolar na cama com receio de adormecer de novo e certeza de devê-lo fazer, uma idiota sensação embutida de que a noite obedece às minhas vontades, e assim por ali fico horas de olhos fechados à força, sem conseguir dormir.

Este é o sonho que, por excelência, faz com que eu me vista com o segundo tipo. Imagino que seja porque parece que vivo em vez de sonhar; para sair do sonho, preciso levantar-me, ir até à cozinha, dar tempo à minha consciência de se refazer do lugar de onde vem. Aliás, não vem: cai, de tão abrupta que é a chegada. E logo decido voltar para a cama, rio sem jeito para mim mesma no espelho do corredor, balanço a cabeça num querer me convencer da grande bobagem de tudo isso. Mas é só me deitar, e me desconvenço, e a solução é tentar compartilhar a insônia com quem dorme a meu lado, e tem a santa índole de dizer que sim, que é verdade, ou não, como você quiser, agora deita aqui e dorme que ainda é cedo.

Divagações a propósito de um vinho

Pode ser que seja influência de meus compatriotas, mas tenho por vezes a impressão de que o vinho não pertence ao mundo dos vivos. Como se uma garrafa pudesse conter essência e alma de quem a produz e a olha crescer e desenvolver-se dia a dia, e por isso pode perceber-lhe as virtudes com mais propriedade. A nós, que a compramos deste lado, resta-nos desfrutar seu conteúdo, e quem sabe retirar-lhe algumas conclusões que tornem mais suportável a passagem dos dias e dos sentimentos que se arrastam.

Quando eu era pequena, e isso durou vários anos difíceis de chegarem ao fim, passei muitas horas na companhia de quem entendia, discutia e sobretudo gostava e bebia vinho, enquanto se conversavam veladamente coisas das quais não se podia falar em voz alta. Uma espécie de religião, cercada de rituais e de pode-não-pode-fazeres misteriosos e inexplicáveis. Como aquelas coisas que às vezes temos a sorte que nos transcendam e nos transformem em melhores pessoas, por nos despertarem aquilo que de mais poderoso existe em nós.

Servi por várias vezes de álibi a meu pai, nas suas saídas noturnas e na vida boêmia de quem gostava das horas em que o sol descansava, e em muitas me presenteou com o papel de guia na escolha de um vinho. Eu intuía que aquilo era uma coisa importante, e só mesmo por ser pequena é que aceitava a incumbência. Hoje, recusaria com certeza, pela consciência de ser, de longe, a mais despreparada para a missão.

Primeira boite, (de nome “Inferno D’Azenha”), primeira casa de fados, primeira noite de blues: a necessidade do álibi alheio rendeu-me boas descobertas, a salvo porque com meu pai ao lado. Dentre elas, o vinho - embora se bebesse em casa, na forma de quase-remédio, transformado em beberagens que meu avô às vezes preparava para cuidar-me dos pulmões, que nunca foram famosos. Mas algumas descobertas só vieram mesmo foi com os copos fora de casa.

Por entre as experiências etílicas que meu pai me proporcionou, não cheguei a perceber muito bem a real dimensão do meu paladar. Lembro-me de uma noite, numa casa de fados em Lisboa, de um fadista célebre nos receber com um “lá vem a menina aninhas com a sua garganta de ouro”. Eu achei na altura que teria alguma coisa a ver com o fado que inevitavelmente lá cantaria, empurrada por meu pai, mas hoje desconfio que talvez ele se referisse à brincadeira de me fazerem procurar traços de amargor nos vinhos enquanto se decidiam a qual beber. Entre umas e outras, alguma coisa devo ter aprendido, e o exercício de memória evoca uma pluralidade de sentidos que, a esta hora tardia, me fará adormecer melhor se lhes der livre curso nesta crônica.

Há certos vinhos que não caem, antes despencam em pleno estômago, e somente no dia seguinte lhes percebemos o desastre. Se estivermos atentos ao primeiro gole, ensinava-me meu pai, saberemos parar e escolher o certo, não para abrir mão da dormência, mas para nos livrarmos do mal estar no dia depois. Há vinhos, apenas levemente ácidos, que destroem, assim que nele batem, o palato, que atingem as mucosas ainda da boca e só depois disparam os alarmes do resto do sistema digestivo. A esses vinhos, há que ter-lhes respeito, aprender a pressenti-los e deixá-los longe, poupar o fígado. Depois deles, às vezes é difícil distinguir outros, porque pelo menos a mim deixam-me a boca anestesiada e insensível à sutileza de uma casta de uvas bem dosada na sua fermentação. A isso juntava-se frequentemente um “ouve lá: se beberes vinho não te esqueças dos copos d’água, pra digerires melhor os taninos”. E pouco mais, porque esses ensinamentos não se fizeram de palavras.

Em noites como as de hoje, em que de repente provas de vinho acontecem sem nem terem sido imaginadas, absorve-me uma saudade terrível desses dias de álibi de meu pai, como se essa fosse a mais poderosa lembrança da sua existência. Não saberia beber sem ele, e não saberia parar sem ele. A sua alegria se (e somente se) o tema fosse sair de casa ou juntar nela as pessoas alheias ao dia a dia, apodera-se de mim após anos; durante muito tempo foi assim que nos percebemos, divididos entre a delicada fragilidade do reconhecer a sua melhor parte no outro e o peso de precisar dividir o mundo em certos e errados que acabaram por nos afastar ao longo de toda a vida.

O mundo foi sempre a nossa porta de contato, e sempre que saio, que me entrego ao que só a noite proporciona, porque a meia luz torna possível, e nada mais é tão óbvio e límpido quanto o quer a luz do sol, com todas as suas virtudes, faço-o com um olho e um pensamento nele, e assim ele vai comigo, ainda que já se tenha ido. Essa é a herança que usufruo.

Minha viagem por esta vida com meu pai não foi fácil, mas ensinou-me coisas básicas que normalmente não se aprendem: como abrir uma garrafa sem que o chumbo do material que envolve o gargalo contamine o vinho; como beber o primeiro gole para que ele se abra persistente contra o céu da boca; como fazer para ver e ouvir, com olhos nem abertos nem fechados, o que está escondido por trás dos líquidos; como desfrutar de um jantar, uma festa, um encontro, horas antes que aconteça. Pensar em quem atravessará a porta, e por isso preparar assim a mesa, por isso mudar as cadeiras de lugar, por isso fazer as compras e cuidar dos pratos, por isso conseguir as flores e acender as velas, por isso ter tudo pronto uma hora antes do horário combinado, para poder imaginar os encontros antes deles se fazerem. Poder dançar na liberdade da casa ainda vazia, mas por pouco tempo. Desfrutar sermos nós próprios antes de nos despedirmos dos nossos desejos e vontades, para que imperem soberanos os dos outros, que entretanto chegam.

Muitas dessas pequenas coisas invento-as sozinha, até porque a parte da cozinha não era da responsabilidade do meu pai; mas é um espírito que se instala no ato de receber, uma espécie de alegria incontida que não acontece tanto no momento do encontro quanto no gozo da sua antecipação.

Gostaria de tê-lo tido ao meu lado nesta noite, conduzindo meus tortuosos passos, vendo-me repetir vigilante o que o vi fazendo em mim tantas e tantas vezes, guiando-me a mão nos trajetos e segurando-a no ar para que nada se quebre nem se desfaça, sejam vidros sejam outras coisas. Espero ter podido estar em mim com a mesma dose de atenção e amor (hoje sei) sinceros que ele me dedicou em tantas rolhas arrancadas. Espero que a sua sombra, que me acompanha insone nestas horas que lhe são perfeitas porque cálidas e tardias, eu consiga ser-lhe fiel na busca do que é, e não do que parece. E que os demais, ao meu lado, possam aproveitar-se dessa sensação de beatitude com que ele contagiava o mundo à sua volta nesses momentos.

Um vinho, dizia-me ele, é como uma casa que só aos poucos se torna nossa. Não basta experimentar um gole, de maneira fortuita e sem lhe prestar a atenção que merece. É preciso, como a um ser humano, oferecer-lhe dedicação sincera, acompanhá-lo uma e outra vez em sua viagem dentro de nós, refazer seu caminho, convidá-lo a nova visita, estar atento, pretender que não seja apenas o eu, mas também o ele. Uma amizade e um conhecimento de um vinho não são momentos à toa, acontecimentos banais, coisas que possamos deitar fora e pôr-nos a andar.

Um vinho é como um amor nascido, uma alga que se agarra às nossas pernas quando queremos sair do mar, uma música que queremos ouvir mas nos toma tempo encontrar. Como com os homens, um vinho demanda respiração pausada para observar antes de agir, num longe constante. Pede que se fechem os olhos no instante em que escorrega úmido pela garganta e nos suspende expectante os sentidos. Espera que se entreguem um ao outro o corpo e a alma, e que ambos se naveguem nas possibilidades do desconhecido.

Se conseguimos, se nos abrimos, se nos permitimos e nos revelamos mais verdadeiros a nós mesmos, o vinho surpreende-nos com a sua delicadeza, seu toque macio, seu sorriso vermelho escondido por trás do translúcido de vidro. Se nos entregamos, e nos deixamos permear, podemos até fugir, dizer que não, que não queremos, que vamos continuar com nossas velhas escolhas, com a nossa antiga e paciente felicidade. Podemos sonegar-nos novidades ao paladar, impedir a proximidade do vazio, do vácuo preenchido por esse tipo de vinho que chega e nos engole, de tão poderoso. Mas a um passo do abismo paramos, e assim caminhamos com as mãos e os pés atados, perseguindo as videiras da nossa sepultura.

Quando espalhei as cinzas de meu pai, sob o céu da cidade que ele mais amou entre todas as que habitou, além da sua música preferida, havia uma garrafa do seu vinho predileto, a melhor safra das melhores uvas do centro de Portugal. O bouquet esvaiu-se no ar com mais rapidez do que de costume, tive a impressão, quando a rolha foi puxada. Como se algo se libertasse e lhe desocupasse as cinzas da vida terminada, e ele pudesse preparar-se em paz. E nós pudéssemos ficar apenas com as boas lembranças, como essas de uma noite entre amigos, que o fazem retornar na sua melhor e mais perfeita forma, tão fora do mundo dos vivos quanto as garrafas que foram abertas ao longo da noite.

Confissão de fim de julho

Posso agora confessar, terminado o mês de julho, que nada mais fiz, para escrever as 16 crônicas deste mês, do que seguir os conselhos do organizado e ortodoxo Saramago. No aconselhamento que fez (e não só a mim, esclareço, que eram vários os pomposos “jovens escritores portugueses”, para que ninguém pense que posso me dar ao luxo de manter alguma espécie individual de correspondência com um prêmio nobel), contou do seu próprio processo de escrita. A sua sólida formação comunista (que imagino austera, circunspecta e metódica), rendeu-lhe uma disciplina que ele aplica há anos à sua própria produção: todos os dias, um x de páginas, à mesma hora, no mesmo local, 365 dias ao ano. É assim que ele melhor produz, a sua maneira de escrita. Há ainda alguns detalhes sobre a vista da janela, a posição da mesa, o instrumento de escrita etc., que não vêm ao caso porque não estavam dentre os conselhos dados que me pareceram relevantes. Já o da meta da quantidade, sim. O básico, mesmo, eram as x páginas por dia, sobre qualquer coisa, que poderia depois ser (ou não) lapidada, recortada, cortada, acrescentada, mexida, eliminada, reconstruída, multifacetada, fundida etc etc etc.

Eu juntei esses conselhos a outros que li, uns que Manuel Bandeira deu a seu tempo a João Cabral, dizendo que o que escrevemos é pra ser lido, senão pra que é que é escrito, faça o favor de publicar seus poemas. Alguém mais já disse a mesma coisa, mas minha memória que se sabe fraca esqueceu. E eu posso esquecer mesmo, porque isso faz todo o sentido do mundo, e é a mais pura verdade. As teorias literárias da recepção e do discurso estão todas aí dizendo igual.

Confesso, portanto, que nada mais fiz este mês do que seguir os conselhos do amigo Saramago, e por isso a avalanche de crônicas neste alobairro, vítima perfeita dos meus ataques (um tanto obsessivos, disse-me alguém antes de viajar para as terras do meu amigo Abdib) escriturescos. Juntei ainda uma outra, e com ela fiz algumas experiências, que ainda preciso digerir sem somatizar: não ler. Não ler nada. Para quem começou o caminho pela limpeza de uma biblioteca, não deixa de ser curioso. Mas o fato é que, comparado a todos os meus julhos desde que fui alfabetizada, neste eu não li praticamente nada, fazendo-me virgem para a minha própria escrita.

O saldo, para mim, é positivo: a escrita brota agora absurdamente loquaz; os assuntos de hoje ligam-se poderosamente a outros do passado; transformo meus demônios todos em matéria digerível; decomponho todas as minhas neuroses; afino um pouco das minhas frustrações (aliviá-las acontece melhor em verso); falo de outros sem falar deles; tenho imensa ocupação nas minhas noites de insônia (acordo com 2,3 4, ideias para crônicas na cabeça e não durmo mais com medo de perdê-las; escrevo-as e adormeço placidamente); e descobri que um que escreve tem o poder de acordar os outros na escrita. E essa é com certeza a melhor parte, se eu tivesse de escolher uma delas. Como não tenho, fico-me com todas.

Agora, vida normal de volta ao campo de visão, pergunto-me como farei. Não posso (ou não quero?) perder o que conquistei, mas precisarei mudar tudo aquilo que gerei pós-conselhos saramaguísticos, e que agora identifico como o positivo do saldo, talvez erroneamente, mas é o que consigo hoje. Os horários não poderão mais ser os mesmos, aliás eu serei ainda menos dona do meu tempo, mesmo que pareça o contrário. Como farei para encontrar esse estado mental parecido ao vácuo, em que permito que o passado, o presente, os demônios, as confissões, as palavras, as insônias todas, não só as da noite, se encontrem e se amalgamem? Como conseguirei que nesse movimento me reconstruam a cada encontro, espécie estranha de auto-terapia que se parece com o que uma amiga querida chama de “strip-tease da alma”? E, por outro lado, como farei para não o fazer? Como é que vou conseguir fechar os olhos e decidir que isso que se apresenta como caminho fique à espera, num standby de luz vermelha que aumenta o gasto de luz sem de verdade iluminar nada? E só ficar à espera?!

Confesso que tudo isso hoje me atormenta, mas a simples menção ao tormento, aqui, alivia-me dos meses que se avizinham volumosos. Não resolve, apenas alivia, mas assim posso ainda dormir um pouco, antes que amanheça. Hei de perguntar ao Saramago como é que ele faz para resolver as suas crises de inadequação ao mundo.

30/07/2009

Do que não é lúcido

Há uns anos atrás, nem tantos se considerarmos a imensidão do oceano comparada a uma gota d’água (meu pai gostava de dizer isso, antes de tornar-se incapaz de falar), tive a sorte imensa de visitar muitos dos meus poetas favoritos. Alguns, foram-no apenas na altura, mas muitos deles vão permanecer nos meus lugares mais iluminados até o fim dos dias, creio.

Essas visitas não foram coincidências, porque eu realmente sentia a urgência do conhecimento, e de fato no espaço dos dois anos seguintes mais da metade deles morreu, o que me explica a tal da urgência. Todos eles eram já bastante velhos (o que me exime de qualquer responsabilidade), e para essas conversas eu lancei mão, aconselhada pela minha querida irmã, de uma máquina fotográfica.

Máquinas fotográficas produzem-me o mesmo efeito que os livros que carrego escondidos em sacolas para encontros desse tipo – envergonhados uns e outros, ficam-se onde estão, apenas espreitam para ver se têm a sorte de serem descobertos. Só nessas circunstâncias é que fazem a sua aparição, e pedem muito timidamente ora um clic, ora um autógrafo. Nenhum destes meus visitados percebeu a sua existência, e por isso eu não guardo nenhuma lembrança iconográfica desses dias tão cheios de sorte. (Para ser bem sincera, o único que me perguntou pela máquina, o caboverdiano Manuel Lopes, gostava muito de ser fotografado, e justamente nesse dia eu esqueci-me de levar a dita cuja.)

Em vários desses momentos me aborreci comigo mesma, “que disparate de falta de segurança em si própria, isto não tem graça nenhuma, tira lá a fotografia e põe-te a andar...”, mas depois fiquei na dúvida, talvez como consolo – será que eu devia mesmo lamentar a ausência desses registros? Passados os anos, fui chegando aos poucos à conclusão de que talvez tenha sido uma benção, dessas que nos acompanham vida afora e sobre as quais precisamos urgentemente recuperar a capacidade de admiração absoluta, para poder reconhecê-las quando acontecem, e não anos depois.

A imagem, parece-me hoje, poderia turvar-me a memória do real, fazer-me o que faz essa foto que tenho de mim pequena, no zoológico de Lisboa, olhando extasiada um imenso hipopótamo, algo que se parece remotamente com a primeira lembrança que (acho que) tenho da vida, mas uma lembrança de certa forma poluída pela imagem da polaroid do meu pai. Desta outra forma, só com o que me vem mal fecho os olhos, posso repetir a sensação de estar na mesma sala com a que (para mim) é a maior de todas as poetas, vendo-a (atônita) acender um cigarro atrás do outro ao longo de horas, muitas vezes deixando-o a arder sozinho no cinzeiro de prata, sentir-lhe dolorosamente a demência da senilidade instalada, conversar por isso com ela como se realmente eu fosse a sua sobrinha (e porque não?), vê-la esperar ansiosa pela mãe morta há mais de 40 anos. Foi enterrada passados poucos meses, e provavelmente nesse dia deva ter se alegrado com a (a)final chegada de sua mãe.

Mesmo assim, mesmo completamente fora do foco lúcido, continuou nessa tarde escrevendo à minha frente, com a mão livre do cigarro desenhando as letras no ar, como se tivesse uma tela diante de si e a colorisse com a escolha exata das suas palavras. Seu tema manteve-se o jardim e, do lugar onde se senta, ainda posso ver-lhe os olhos azuis opacos demorarem-se na glicínia em flor – “foi meu filho que a plantou, e ela cresceu tanto em um só ano”, ainda a escuto dizer. A flor da glicínia é azul como os seus olhos, ouço-me balbuciar e ela olha-me espantada, como se não me imaginasse capaz de o fazer. Não sei o que dizer, muito menos o que fazer, e devo estar com as mãos irrequietas – ela manda-me à cozinha, buscar-lhe um copo de água, mas primeiro me adverte a passar pela sala de jantar e reparar no magnífico azulejo que seu marido trouxe ontem à tardinha. O marido faz companhia à mãe há algum tempo. E eu vou à cozinha imaginando que bem poderia salvar-me deste roteiro insano o filho jornalista dessa poeta, a quem admiro também, inclusive pelos olhos. Não consigo focar meu próprio pensamento, lembro-me de ter pensado, tanto tempo à espera deste dia, e aqui estou feito uma tonta, sem conseguir eu também dizer coisa com coisa.

Volto e a minha irmã foi-se. Está no jardim, diz-me a empregada que entretanto apareceu,e logo atrás dela o filho outro, azulejista de profissão e com um passado e presente psiquiátricos que a sua agitação delata (eu dediquei tanto tempo a esta poeta que sei-lhe detalhes literariamente insignificantes como esse, lembro de ter-me ocorrido).

Pelo resto da tarde fico-me em silêncio a seu lado, vendo a tarde entardecer para além do Tejo que se vê à esquerda da janela de portada, linhas antigas desta casa secular. Ela diz algo aqui e ali, percebo as imagens que a escalam, que a engolem, que a atormentam e aprisionam em si mesma. O seu mundo é mais o delas que o nosso, e creio que tenta desesperadamente construir uma estrutura que mantenha os dois unidos, ainda que tão frágil e precariamente quanto o faria uma fina teia de aranha.

Por perceber isso, tiro do meu bolso as folhas de poemas que trouxe na esperança de que os lesse, e decido lê-los eu mesma em voz alta. E sinto-me num templo, e falo cada vez mais baixo, e entro tanto naquilo que eu própria escrevo que demoro a perceber que ela saiu do lugar que ocupava e sentou-se ao meu lado no sofá de grandes flores estampadas. Ela não me diz nada, mas quis-me parecer que o azul de seus olhos estava menos opaco e que de alguma maneira eu lhe devolvi um fio da sua esfrangalhada teia, e transportei-me com ela a qualquer lugar que não é nem este, nem o outro, antes aquele da sua provável origem, feito de sons e de sensações tornadas Palavra.

Esse encontro transtornou-me aquela semana inteira, deixando-me imprestável para qualquer outra coisa, e eu demorei muito tempo a refazer-me desse contato com o outro lado do mundo. O outro lado do mundo de alguém que percebo dentro de mim, o outro lado de alguém que me falava como se eu mesma me falasse, portanto meu outro lado do outro lado de mim.

Não tenho grandes medos na vida, mas não há ser humano de verdade que não alimente ao menos algum receio. O de morrer louca, como já me previu uma cigana que lia mãos em Sevilha e me mostrou seriamente esta minha linha da vida que acaba numa forquilha em ambas as mãos, e que eu vejo à espreita, se olho a linha materna da minha família, é provavelmente o que eu me lembro de ter há mais tempo, ainda que com o passar dele eu tenha chegado à conclusão de que isso pode ser uma vantagem. Sobretudo se considerarmos a cada vez maior variedade de loucuras às quais podemos sucumbir. Pode ser que seja uma questão de administração adequada, e pouco mais.

Mas essa tarde com ela fez subir a maré desse medo, uma maré que quase me afoga e me inutiliza. Imaginar-se louca é uma coisa; ver-se, outra bem diferente. Naquela tarde, algo em mim ficou entre um estágio e outro, suficientemente lúcida para poder ver a inevitabilidade da falta de lucidez.

Por isso, e porque realmente em nada valeria a pena, fico feliz de não ter nenhuma fotografia desse encontro. Talvez não tenha sido assim, talvez tenha sido pior, e eu prefiro guardar, dela, a imagem que tenho dos seus olhos a meu lado, procurando em desespero a reentrada no mundo que eu ainda habito, e do qual ela se despede lentamente a contragosto.

Dos talismãs

Gosto muito de guardar coisas. Não necessariamente durante muito tempo, mas muitas delas, guardadas, descobri poderem transformar-se em talismãs de textos. Guardo-as às vezes longamente e um dia, de repente como hoje, despertam-me uma vontade imperiosa de escrever.

Foi exatamente isso que aconteceu, nesta manhã, com um bilhete pequeno, manuscrito, daqueles à toa aos quais quem escreve pode não ter prestado nenhuma atenção. Guardei-o, essencialmente, porque nele meu nome está escrito de uma maneira que me aquece e reconforta. Posso redesenhar dentro de mim todos os movimentos de alma que a sua primeira visão me descobriu. As suas linhas fluidas e imaginativas despertam-me tantas, mas tantas possibilidades, que se o soubesse quem o escreveu talvez tivesse usado uma olivetti antiga. Ou não... quem sabe!?

Tenho pena de não ter prestado atenção ao meu avô quando muito entusiasmado queria me contar sobre seus estudos de grafologia... Mesmo não entendendo o que significa esse traçado diferente das três letras do meu nome, fico-me nesse bilhete, e demoro-me, enamorada das linhas que o desenharam, reparando na forma distinta que assumem ao escreverem o resto do bilhete, mera formalidade sem traço de nada.

Essas pequenas coisas, quando tenho tempo, preenchem-no. Uma vez li numa biografia da Florence Nightingale que os devaneios infantis acompanharam-na por toda a vida. Certamente o que me aproxima desse bilhete está muito perto de um devaneio, embora o teor não seja infantil, e fico pensando se a solução para o atendimento médico da guerra da Crimeia, e os movimentos heróicos da primeira dentre todas as enfermeiras, terá sido filho ou neto de um devaneio. Agrada-me a ideia, porque assim quem sabe o meu devaneio pessoal, que nada tem eu sei de heróico, tenha também uma chance de se perfazer concreto.

Curto, este texto? É para se parecer com o bilhete.

28/07/2009

Dos amigos virtuais

Há dias atrás falei de Adbid, aquele marroquino dono de camelos que conheci brevemente via skype. Uma menção assim tão especial a um “conhecimento de fundo tão breve e fortuito” (as palavras não são minhas, e por isso as aspas em torno delas) deixou meu amigo João Pedro incomodado. O nome é fictício, que eu não quero expor ninguém, embora isso fosse difícil, porque o João Pedro entra naquela categoria pode ser que bizarra de amigos virtuais. Tenho poucos destes amigos (e na verdade resisto um pouco a chamá-los assim, contudo se não o fizer aqui certamente o João Pedro cortará relações comigo, mesmo que de qualquer forma a questão com ele seja outra), mas é interessante o que mantenho com eles. Não sei se de fato são quem dizem, chamam como dizem chamar-se, vivem onde dizem viver ou fazem o que declaram fazer. Podem ser qualquer coisa que queiram, e eu também posso imaginá-los da maneira que eu quiser, e ainda por cima imaginar-me e declarar-me a meu bel prazer. Não me parece que, de maneira simplista como alguns gostariam, sejam necessariamente pessoas solitárias, daquele tipo que não consegue manter amigos de carne e osso, relacionar-se com os outros presencialmente etc e tal. Eu faço parte deles, a bem da verdade, e não me considero assim um ser anti-social.

O João Pedro, por exemplo, escreve poesia e é o máximo que consigo saber realmente dele. Não vi fotos, nem quero, não sei seu msn nem skype nem nada que sugira que bate-papos informais possam surgir. Não lhe conheço orkut, facebook ou twitter. O nosso contato restringe-se aos emails que nos mandamos, depois de um pedido de leitura e opinião de poemas, numa lista de discussão sobre literatura marginal.

Mas o João Pedro ficou incomodado por ainda não ter sido motivo de uma crônica (enquanto que o fortuito do Abdib sim), numa súbita manifestação de ciúmes que eu só consigo mencionar aqui, no anonimato de um nome fictício, porque ao vivo e a cores e através de seu email pessoal seria o fim da nossa amizade. O João lê estas crônicas no blog, e por isso nem precisa sentir-se realmente mencionado, pode ser que nada disto seja de fato real, e assim não há ninguém para se chatear. Pode ser que ele nem seja ele, nem eu, eu mesma, e que afinal apenas estejamos todos resolvendo pendengas síndicas de outras encarnações nesta daqui, via virtual para economizar tempo e espaço.

Os amigos virtuais têm sobre os mortais comuns a vantagem de parecerem sempre prestar muito mais atenção em nós do que os segundos. A tudo respondem, sobre tudo opinam, e parecem felizes pelas mensagens que mandamos e ansiosos pelas que se seguirão. Para quem escreve, é um prato cheio. Tudo passa pelo campo da ficção, pela invenção de nós mesmos se nos der na telha, pela fabulação à qual estamos irremediavelmente – sorte nossa – votados, pela nossa condição humana. Um dos textos de que eu mais gosto do Antonio Cândido, aquele curto “sobre a necessidade da arte”, fala dessa fabulação, e do quanto ela é elemento constitutivo indispensável ao ser humano, do quanto (leitura minha, é possível que eu esteja fabulando as palavras do mestre...) é preciso que encontremos a fabulação no dia a dia, e a aceitemos tal qual é, para nos humanizarmos no sentido mais profundo. Esses amigos virtuais, podendo ser qualquer coisa, e nós para eles idem, permitem-nos uma invenção pessoal que transcende a franja do que a minha avó chamaria de “razoável”. No limite, pode gerar esquizofrenias e desajustes sérios, mas não mais sérios do que aqueles que as nossas relações sociais falsas e hipócritas geram há já bastante tempo.

O mundo virtual, aliás, auxilia-nos na exposição diária, e mesmo amigos que o são no dia a dia e com quem nos encontramos entra semana, sai semana, conseguem refugiar-se de si mesmos nos pequenos textos que a internet guarda e envia – percebo isso pela quantidade de mensagens que recebo sobre estes textos que escrevo, muitas delas revelando lados, cantos, arestas e sensações de muitos que vivem ao meu redor e que de repente se iluminam diferente através das suas mensagens. No sigilo que a escrita pessoal garante. São outros quando escrevem, mas um outros que os torna mais eles mesmos.

Outro amigo, este pouco virtual, bastante palpável e real, embora nos vejamos mais na caixa de entrada de mensagens do que de outras formas, diz-me às vezes, sucinto, simples, direto e seco como só ele sabe ser, que “pô, ana, nisso aí vc viajou na maionese, hein?”, para indicar-me isso mesmo, a viagem do pensamento além do considerável. Aperto a tecla do “enviar” neste momento com a impressão nada vaga de que ele voltará a usar esse lugar comum do qual tanto gosta (e abusa, já lhe disse isso!) como comentário a esta crônica.

27/07/2009

Clima

“Estranha toda esta chuva em julho” – por todos os lugares por onde passei neste mês, se houve algo que os uniu foi esse comentário pela boca de vários. Literalmente, falar do tempo - que é o que pessoas costumam fazer quando não têm muito o que se dizer umas às outras. Ou não querem: o clima é um bom aliado na tarefa de nos escondermos dos que estão em volta.

Eu sinto por vezes falta de conversas de verdade, e talvez essa falta seja no fundo de poder olhar para o outro dentro dos olhos, daquele jeito em que chegamos a ver refletida na pupila alheia a nossa própria imagem – e isso sem manobras discursivas, é algo para ser literal. É uma sensação e tanto, sobretudo se pensarmos que o mesmo acontece com o olho do outro, que se vê refletido em nossa pupila, permitindo um defloramento de alma cheio da única intenção de obedecer à vontade de conhecer o interlocutor. Por dentro e de verdade. Não é a mesma coisa que sustentar o olhar, veja bem, que essa é tarefa de quem está perdido em si mesmo e por isso precisa sustentar alguma coisa de seu quando olha o outro, para não ser invadido onde não quer. Essa história de pupila vem lá de dentro, de onde a razão apenas arranha para entrar.

No meio de toda esta chuva, é difícil achar as pupilas dos outros, e não consigo saber se a falta é minha ou das circunstâncias. Avançar para dentro dos outros é tarefa difícil, delicada, arriscada, com muitas chances de ser abortada quando se imagina já ter completado a missão.

Demanda certo clima.

Às vezes, encontramos olhos que não procurávamos, e recuamos assustados pela invasão inesperada. Outras, são os outros que fogem, pelas mesmas razões. É preciso uma sincronia profunda e uma empatia sincera, uma abertura interna que nos permita, através desse ponto luminoso no espaço da nossa anatomia, sermos um pouco do outro, sem barreiras e sem receios. É uma entrega poderosa, que se mantém durante semanas viva na memória e não admite preconceito.

Nestas férias, fiz-me de algumas pupilas, e hoje, numa espécie de cômputo geral do mês (gosto disso, das retrospectivas valorativas, deve ser um vício ou um engodo, quem sabe uma dobra de caráter), fico feliz com o resultado, e decido registrá-lo por escrito. Logo me imobilizo, porque, se penso muito, deixo de perceber o quão sutis foram esses encontros, quase mal dou por eles, precisei do cômputo geral para perceber de verdade. O quanto passou despercebido aquele, o quanto me incomodou aquele outro, ao qual fugi, covarde de mim mesma.

Fico imaginando de que maneiras estas trocas e estes encontros foram conscientes no outro – será que percebem o que eu percebo? Porque também é dessa matéria, esses encontros: o ser volátil e diáfana (venho há semanas querendo usar essa palavra com propriedade). Conversar sobre ela (matéria), a obrigaria a se desfazer no ar, e de tão incongruente desapareceria até da memória.

26/07/2009

Mistache malabona

Devo agradecer a meu avô e a seus estudos de esperanto essa expressão que a família inteira adotou, há décadas, para definir um estado de espírito que nos ataca e não tinha, até então, definição exata na nossa própria língua. Sei que meu avô me dizia que se tratava de “estar chateado, aborrecido, de baixo astral, algo deprimido”, mas convenhamos que dizer “Ai... mistache malabona” é muito mais claro e expressivo do que “estou um tanto deprimido...”. Se eu não tivesse acabado de descobrir que essa expressão na verdade não existe em esperanto (eu era mais feliz sem esses dicionários online...), continuaria esta crônica, sinceramente, menos estarrecida, mas vai assim mesmo, e passo a entender simplesmente que meu avô fez algumas adaptações suas ao esperanto que estudou. Considere que mistache malabona é mesmo estar assim meio chateado, seja lá em que língua for, e pra frente.

Eu nunca compreendi muito bem (e, que eu saiba, ninguém na família o fez) essa fascinação súbita mas duradoura do meu avô pelo esperanto. Comprou um curso de auto-aprendizagem, da Reader’s Digest salvo erro, tipo de compra que ele adorava fazer porque chegava pelo correio e não era preciso perder tempo em lojas, correndo ainda o risco de ganhar um prêmio em forma de livro ou disco, como as valsas completas de Strauss que motivaram minha avó a me ensinar a valsar pela sala de casa em manhãs de sol fresco.

Meu avô começou a estudar, afincada e organizadamente. De vez em quando, contava algum detalhe – cada vez sabia mais, julgo que tenha realmente aprendido a língua de fio a pavio, mas eu continuei sem entender a razão daquilo. Dizia-me que era porque um dia essa seria a língua universal, e ele queria poder comunicar-se com todos. Mas, primeiro (pensava eu em silêncio, para não lhe diminuir o entusiasmo), demoraria até que isso acontecesse, ele era o único na cidade inteira a aprender esperanto, ele sabia disso, o que faria com que demorasse, e eu tinha consciência do tamanho da juventude do meu avô; segundo, ele não era assim o tipo de pessoa interessada em conversar com os outros e conhecê-los mundo afora, nem sequer inglês ele tinha querido aprender!, e sempre me dizia que era melhor não brincar com os vizinhos e ficar em casa bem quietinha, que os outros era só para quando realmente preciso (acredite, eu obedecia, e por isso, se não tive vários heterônimos como Pessoa na sua infância, tive uma porção de amigos imaginados); e, terceiro, não havia ninguém que ele conhecesse que sequer estivesse pensando em aprender essa língua,com quem é que ele ia treinar conversação? (Se esta última ponderação parecer elaborada demais, é só esclarecer que eu tinha uma mãe que me dizia que a coisa mais importante para aprendermos outras línguas era cuidarmos da conversação.)

Pois meu avô aprendeu esperanto mesmo nunca tendo falado nessa língua com ninguém, e eu acho que ele se sentia melhor e mais inteiro por isso. Na mala de poemas e outros escritos que me ficou de herança em testamento quando se foi, e que eu guardo numa das prateleiras mais altas da biblioteca de casa, lugar das coisas com as quais eu ainda não descobri o que fazer, há vários poemas em esperanto (confesso que depois do dicionário online, eu começo a duvidar...), sem tradução, que um dia eu deverei reunir e levar a alguém que saiba essa língua dotada de esquecimento. Pelo menos vou poder entendê-los, quem sabe traduzi-los, e fazer com que o esperanto do meu avô, afinal, encontre ouvidos para ouvi-lo.

(Eu ia terminar aqui, mas acabei lembrando de outra das palavras de uso corrente na família. Não lhe sei a origem, só falta ser do esperanto do meu avô – embora, depois de descobrir que a que dá título a este texto não o é, passo a ter certeza de que esta segunda menos ainda o será! Meu pai usava-a bastante, quando queria referir-se a algo que era quase bom, mas estava longe de agradar. Algo que quisesse muito fazer-se, mas que nascia já sem os apetrechos necessários para valer a pena. Algo assim “fracativo”.)

(E eu ia terminar de novo, mas pus-me a rir com os dois xingamentos preferidos do meu pai, que estão aqui vindos do passado e ressoando nos meus ouvidos: estafermo e estupor. Nada de esperanto ou invenção de membro familiar, puro lusitanismo. E ainda é preciso imaginar-lhes o acento lisboeta, embora meu pai fosse coimbrão.)

Abdib

Provavelmente acontece com todo mundo. Às vezes meu skype quer apresentar-me a criaturas que me acenam sabe-se lá de onde com um pouco sedutor “Oi, adicione-me à sua lista de contatos!”. Normalmente ignoro-as a todas sem peso nenhum de consciência.

Uns dias atrás, no entanto, alguém de nome Abdib acenou-me com um “Sou marroquino, tenho oito camelos e gostaria de conversar com você”. Além de gostar bastante de Marrocos, dar de cara com alguém que quer conversar e que tem oito camelos (sobretudo os camelos) não foi assim um lugar comum, e deu-me vontade de saber quem era afinal esse sujeito.

Abdib realmente tem oito camelos, sua fonte de subsistência, e logo me alertou sobre a conversa dele ser séria e ter a única intenção de conhecer alguém que vivesse no Brasil. Disse-me morar a oeste do monte Atlas, e que a sua ocupação profissional é a de guiar turistas que querem aventurar-se pelo deserto, fazendo pequenos ou grandes passeios em camelo pelas areias saharianas. “Hum...”, pensei eu, “muito menos exótico do que esperava.” Mas, há anos de olho em Timbuktu, ao sul do Atlas e já em terras malinesas, logo me animo, ao olhar para o mapa da África que tenho atrás do computador: “Abdib, quanto se demora, de camelo, de onde você vive até Timbuktu?”. Ele ri-se, com o mesmo rsrsrs que nós usamos por aqui, viva a globalização linguística!, e diz-me que “muito tempo, mais de 45 dias, será melhor você ir de avião de Bamako até lá”. Pena, penso eu, de camelo seria com certeza mais divertido, mas realmente 45 imensos dias é tempo que eu definitivamente não consigo ver à minha disposição exploradora tão cedo.

Timbuktu faz parte do universo imaginário de qualquer pessoa que tenha pensado seriamente na vida dos povos do deserto. Ponto final da rota dos mercadores que viajavam desde o Nilo (pegue seu mapa múndi, a distância é impressionante e inóspita!), fervilhou de gente de grande parte do mundo não europeu durante séculos e séculos, basicamente até à chegada daquele. O sal e o ouro eram as grandes e mais bem sucedidas trocas, e a sua proximidade com o rio Níger deve também ter tido a sua influência para a sua fama. Quando eu era pequena, uma das minhas brincadeiras favoritas era desaparecer numa hipotética viagem de trem para Timbuktu, onde me esperava uma grande missão evangelizadora, para a qual eu trabalharia e na qual eu adquiriria a mesma doença que a minha tia Teresa, paludismo, só que numa mutação muito mais séria e letal, é claro. (Paludismo, descobri anos mais tarde, vem a ser o mesmo que malária, mas a doença da minha tia parecia-se mais com a sonoridade do primeiro.) De lá tão longe, voltava horas depois cansada e ansiosa por um banho, para tirar de cima toda a areia impregnada durante anos sob o sol escaldante do deserto e escapar ao frio congelante da noite. Minha avó devia rir, mas ajudava-me a manter a grande aventura até à hora do jantar, quando lamentava que só houvesse uma canja, um pouco de pão, e que o carneiro (iguaria que um dia ainda comerei deliciada em Timbuktu) tivesse acabado com os últimos viajantes que ela tinha abrigado. Eu sempre agradecia, humildemente, como devem fazer todos os viajantes que sejam acolhidos por uma tenda itinerante no meio do Sahara.

(Anos depois, quando me descobri às voltas com um mestrado que insistiu em se deter muito perto do mesmo Sahara, mas agora em Cabo Verde, passei meses sentindo o Sahel soprar inclemente desde o deserto, atravessando as águas atlânticas para atormentar essas ilhas com o seu calor sufocante. Sem nunca ter posto os pés no arquipélago, de tanto que o sonhei em forma tipográfica, consigo sentir-lhe a angústia dos meses de seca e a imensidão dos sonhos perdidos no mar aberto. Jorge Barbosa, o poeta, é um infatigável ajudante para quem, como nós comuns mortais, não pode viajar sempre que quer.)

Hoje, imagino eu, Timbuktu deve viver atrelada às lembranças de um passado glorioso, perdida em si mesma e com poucas chances de se libertar ou reabilitar. Lisboa dá-me um pouco a mesma sensação, com o seu apogeu quinhentista ainda vivo nas paredes reconstruídas de um Terreiro do Paço ou uma Casa dos Bicos. Minha arquitetura interna alerta-me – ao seguir por esta trilha, em breve sucumbirei à melancolia que o dia de chuva de hoje prenuncia desde que amanheceu. As cidades que me habitam, como um Ítalo Calvino que me assumisse, pedem que feche essa porta, para que não transbordem. É melhor saber um pouco mais do meu marroquino.

Abdib mora num oásis (não consegui guardar-lhe o nome), e diz-me ser um tuaregue; por isso ainda hoje sente dificuldade em permanecer no mesmo lugar durante muito tempo. Seus filhos vão à escola, aprendem o Alcorão, e assim é preciso fixar-se em um lugar. Diz também que, graças ao misericordioso Alá, há bastante turismo na sua região, franceses e belgas, como sempre, mas também muitos japoneses, e por eles pode sair durante uma ou duas semanas com seus camelos, levando-os até à fronteira com a Argélia. Conta que, nesses dias, e assim que os estrangeiros param de falar e escutam o silêncio do deserto que se impõe imenso, ele se sente finalmente em paz, como nunca consegue sentir-se quando está no seu oásis, mesmo rodeado pelas pessoas a quem ele mais ama.

Termino a conversa com Abdib prometendo-lhe que sim, que assim que me decida à viagem sonhada ao Mali, hei de mandar-lhe um e-mail, para que quem sabe possamos nos conhecer também pessoalmente – a sua família e a minha, porque Abdib, além dos oito camelos, tem três mulheres e 15 filhos. Imagino que tanto ele quanto eu saibamos que esse e-mail dificilmente será escrito, e não porque eu não tenha intenção de voar até o Mali. Esses encontros que delimitam a solidão de cada um não podem refazer-se, sob risco de se perderem as verdades que só o são enquanto não nos aproximamos demais, enquanto podemos manter o anonimato dos nossos desejos. Seu oásis, seus camelos e as imagens desérticas que as suas palavras fizeram crescer em mim precisam delimitar-me por dentro; a sua confrontação palpável com a realidade dar-me-ia a exata medida do quanto não tenho mais nenhum braço de avó que compreenda, como o poeta, “que o sonho comanda a vida”.

De todos os nossos fogos

Nestas noites de frio, dá-me logo vontade de acender os três fogos que tenho sob o meu alcance. Nada que ajude muito a situação ambiental calamitosa do planeta, mas às vezes eu cedo à tentação, e desfruto desta situação privilegiada em que me encontro, senhora de três possibilidades ígneas.

Começo pelo fogo do fogão de lenha, que me cozinha por dentro, tanto que, às vezes, preciso quase entrar dentro dele para soprar as brasas que se acumulam nessa caverna escura que é sua câmara de queima. Arde lentamente, esquenta a água, cozinha o arroz e o feijão, assa a torta de banana dentro de seu forno, prepara os aromas que em pouco tempo enfeitam toda a casa. Às vezes deixa cair uma das suas madeiras em chamas, e o chão perto dele já está marcado, de tantas que caíram e demoraram a ser percebidas. Sempre se deixa acender, sem demora e sem resistências – esse é o fogo que domina o centro da minha casa, e junto a ele congregam-se os filhos meus e dos outros, seus amigos, os meus e os conhecidos de ambos. A bancada de madeira que o protege por trás pode apoiar hoje um copo de vinho, amanhã quem sabe um cotovelo, no meio de uma conversa a meia luz, nessas horas em que o melhor é manter uma penumbra protetora,l que nos proteja de nós mesmos, nossos desejos, nossas querências.

O fogo que acendo na lareira, junto à parede da sala que neste mês se tornou da cor das laranjas ao sol poente, abre-se ao mundo sem medos nem cinzas a esconder; as suas labaredas passeiam atrevidas pelos meus olhos, salamandras mutantes desejosas do inspirar de sonhos. As madeiras que se entrelaçam, para que o ar circule, misturam-se sem reservas, quase promíscuas no compartilhar de seu mútuo calor. O fogo da lareira acolhe tudo o que lhe lançam: papéis perdidos pela sala, feitos de anotações de jogos noturnos, números e contas em profusão alucinada; retalhinhos de papel de balas furtivas, das não permitidas; restos do jornal de domingo esquecido (ou guardado?) debaixo do sofá, dias atrás. Aglutina-se e resolve os impasses que possam trazer as diferentes substâncias, e no fim consome-as todas, transformando-as em sua própria substância.

Mas é lá fora, no frio da noite e na noite escura, que ardem as fogueiras. Essa, que acendo enquanto espero, traz-me a desacomodação do ter de sair lá fora, pra fugir da corrente de vento que enche os meus olhos de fumaça e levanta as cinzas de ontem, deixando-as todas a flutuar à minha volta, e eu sozinha perdida entre elas. As chamas elevam-se com mais voracidade, e são fáceis de alimentar: qualquer tamanho, qualquer forma, qualquer quantidade é bem vinda e acolhida. Posso vê-lo, a este fogo, confundindo-se com as estrelas, nessas pequenas fagulhas incandescentes que se levantam e alçam vôo por cima do círculo de pedras que determinei para esse arder. Dormir junto a esse fogo, com essas estrelas todas como teto, não é difícil, e aninhar-se e deixar-se levar pelo ruído sibilante, pelo marujar suave de tudo o que queima, consola e embala os mais poderosos sonhos. Quando acordo, invariavelmente ainda é noite, e mais uma vez percebo que esse fogo, como qualquer outro, apaga-se se não alimentado, nutrido, acarinhado e, sobretudo, percebido.

Por entre os que me levam da fogueira à cama, tenho tempo para guardar, num recanto da minha mente consciente, que o melhor de tudo é poder manter acessos os fogos que escolhemos como legados, e que por isso se tornam responsabilidade nossa. É preciso ter certeza de que os mantemos aquecidos, prontos para entregar ao outro quando ele chegar. Muitas vezes é isso que esse outro procura – um fogão de lenha para o corpo, uma lareira para a alma, uma fogueira para o espírito.


Das pastas e das malas

Eu não gosto de fazer malas. Por muito que goste de viajar (e eu gosto), fazer malas é sempre um processo angustiante, como se a certeza de não levar o que deveria me atormentasse do começo ao fim, e a grande vontade fosse de não precisar carregar nada mesmo. Já desfazê-las, é uma delícia – voltam desorganizadas e cheias das pequenas bobagens que vou colecionando pelo caminho, porque lá no fundo sempre tenho a intenção de fazer um diário de viagem bem documentado, com todos os tickets de todos os museus e de todos os ônibus e trens que se usaram pra ir de um lugar ao outro, as contas de cada lugar onde comi, arrastando atrás de si as escolhas do cardápio do dia. Ficam um tempo por cima dos móveis, essas lembranças, todas juntinhas num montinho; depois, migram para alguma pasta que aparece do nada, que se junta a outras num outro monte, ao qual se agrega a poeira diária. Diáfana, ia eu acrescentar, mas é redundância sonora demais, e eu hoje acordei concreta, como devem acordar as pessoas que vão viajar e precisam organizar mil pequenos nadas que podem ser urgentes, mas estão longe de serem importantes.

Diário assim planejado eu só consegui concretizar uma vez, depois de uma viagem à Califórnia. Romaria de visita aos muitos parentes de minha mãe (todos emigrados dos Açores para terras americanas, desejosos e esperançosos da possibilidade de se tornarem sobrinhos do tio Sam), a lembrança mais persistente na minha memória ainda é o quase-tombo da minha mãe, desequilibrada na sua enorme mochila ao encarar uma imensa escada rolante no aeroporto – a escada era imensa provavelmente só naquela altura, mas a mochila continuaria hoje enorme, porque realmente era grande. A ajuda que tivemos de um senhor simpático e atencioso, muito simpático e atencioso mesmo, rende-nos até hoje umas tantas gargalhadas. Mas é estranho, convenhamos, que essa seja a primeira e quase única lembrança viva dessa viagem. É por coisas assim que é bom fazer esses diários, tudo fica mais justo.

Hoje estou sem pressa para viajar (os filhos ressentem-se desse meu estado algo letárgico...) e posso ir em busca do diário dessa viagem. Dentre as muitas coisas que parecem desnecessárias e eu guardo, encontra-se esse caderno. Só que é graças a ele que eu posso lembrar-me do museu de cera de São Francisco; do pôr do sol sobre a baía, que me deixou sem fala e sem fôlego; da máquina 2-em-1, de secar e lavar, da tia Francisca, que no espaço de tempo que me levou tomar banho e jantar, lavou toda a roupa de uma viagem pontuada pelo acampamento improvisado na casa de uns e de outros; da primeira vez de um Kentucky Fried Chicken, que até hoje não consigo recuperar em termos de paladar; e a surpresa por tantos homossexuais sentindo-se e agindo livres. Acho que eu tinha 13 ou 14 anos de idade na altura, e Portugal, mesmo democrático e incorporado às nações livres do mundo, não tinha me acostumado a essa sensação diferente.

Preciso recuperar as lembranças de outras viagens. Pensando nisso, e previdente com relação ao futuro que se aproxima ao virar da esquina desta viagem de hoje, lanço da mão da pilha desequilibrante de pastas na prateleira à qual não dediquei muita atenção na arrumação feita. São as pastas das viagens que me acompanham ao longo do ano, e que eu tento não se repitam e se descubram diferentes a cada visita. Não é fácil, porque só o fato de se guardarem em pastas etiquetadas faz com que se imobilizem no tempo, e me contagiem com esse sentimento que a duras penas suporto. A subversão é a melhor medida, e é por isso que, ao abrir a que se denomina a si mesma “Trovadorismo”, dou logo de cara com um poema do Ivan Junqueira... Pelo menos passo a pensar no que poderia eu mesmo estar pensando quando entendi que este poema do nosso contemporâneo e carioca Ivan tinha uma relação assim tão estreita-evidente-possível com algo saído da pena de um galaico-português Nuno Fernandes de Torneol, e isso atapeta a minha fuga do óbvio redundante e da mesmice de todo dia.

Por tudo isso, na viagem desta semana, decidi pôr no carro todas essas pastas-viagens. Ocupam quase metade do porta-malas, entre lembranças de vida e vidas de lembrança. Espero, nesta que suponho ser a última escapada destas férias, dar sentido a esses pequenos não sentidos das minhas pastas. Que, ao voltar, e ao abrir qualquer uma delas, possa encontrar de fato lá dentro o que a etiqueta externa me anuncia, sem ao mesmo tempo negar-me as surpresas. Que não se misturem mais, nas minhas pastas, a objetividade realista com o devaneio romântico, a austeridade parnasiana à audácia decadentista. Que ao abrir a pasta das “Alegrias” seja incontestavelmente alegre seu conteúdo, que a das “Expectativas”, além de se manter escassa e quase vazia, não me deixe a sensação ambígua do gosto amargo do boldo, que a das “Memórias” me alegre com mais de muitas, e que todas elas (alegrias, expectativas e memórias) possam traduzir-me neste semestre que já anuncia o fim do ano.

E as crianças suspiram aliviadas porque parece que, afinal, vamos mesmo partir!

21/07/2009

Das sopas

Hoje de manhã levantei-me com a perspectiva de fazer duas sopas para alimentar as pessoas que convidei para jantar em casa à noite. Esses dias vêm encontrar-me invariavelmente animada e cheia de energia – cozinhar para os outros provoca-me essa comichão de prever e antecipar os encontros, de curtir cada instante dentro da cozinha que, em outros dias, daqueles cotidianos, desanima só da gente passar perto da porta. Quando há coisas especiais a fazer, a vida enfeita-se de outros tons!

São boas oportunidades, essas dos convites, também para limpar, varrer, lavar e arrumar a casa – e a família, embora às vezes lance um suspiro coletivo quando aviso que “a propósito, convidei algumas pessoas para almoçar/jantar/lanchar...”, alegra-se com essa ventania de arrumação que, de repente, me sacode. No fundo, no fundo, sei que todos gostam desse movimento, e gostam das pessoas chegando e das conversas acontecendo. Mas faz parte da encenação com a qual também nos divertimos.

Assim foi nesta manhã: as sopas fumegando no fogão de lenha, a cozinha naquela temperatura morna que chama todos pra perto, as maçãs assadas aproveitando o calor do forno. Como o fogão de casa tem serpentina por onde circula, esquentando-se, a água, os lavadores de louça de plantão têm ainda mais essa alegria: água quente pra lavar a louça, que mesmo em dias de comilança coletiva não deixa de ser deles. Ou às vezes, para bem da verdade, até deixa, porque há convidados simpáticos que em duplas assumem a tarefa, aproveitando o momento para uma conversa especial a dois.

Uma das sopas baseou-se numa engenharia necessária a quem faz listas de compras detalhadas e as esquece em casa, tendo depois de lembrar-se de cada coisa e saber que provavelmente esquecerá a metade. Desenterrei mais uma das receitas da minha bisavó (sua sopa de peixe) e descobri que, dos vários ingredientes, faltavam-me apenas quatro – porque a lista, de fato, ficara em casa. No meio da azáfama de cortar cebolas, tirar as espinhas aos peixes e cortar bem miudinhos os coentros, passa-me pela cabeça que mesmo não estando na receita, um vidrinho de leite de coco viria bem a calhar... Passa-me pela cabeça porque dentro do armário ele acenou-me entusiasmado, desejoso de mergulhar naquele caldo aromático que assomava da panela grande. Lá foi, e o resultado confirmou as suspeitas de que faria sentido. Essa imprevisibilidade das receitas, que precisam dialogar com as sensações que vão sendo despertadas pelo que se faz, é uma benção do ato de cozinhar, e vale pra refletir sobre outras coisas - se não, nem falaria disso aqui!

A escolha da panela também obedece a movimentos da alma. Quem me conhece sabe que o souvenir máximo é uma panela – o que mais trazer de Morretes, que uma panela de cozinhar barreado? O que mais das areias de Itaúnas, que uma outra de barro legitimamente capixaba? Da casa da vizinha que se mudou pra outros mundos, e decidiu antes fazer aquela venda de suas pequenas e grandes coisas que não caberão na mala, o que escolher parta manter a sua presença em casa? E dos confins de Minas, onde um senhor nos mostra no torno a sua arte de fazer panelas? Ora pois, diriam meus conterrâneos: panelas! Quando escolho uma delas, evoco esses momentos e eles enfileiram-se todos diante de mim; ao escolher, sei que escolho aquelas magias pequeninas das coisas que ficam na memória porque significam. Um prazer a mais!

Prometi um caldo verde a um dos convidados, e junto à panela da sopa de peixe, com mexilhões a boiar escarlates, vem aninhar-se uma menor (a do senhor de Minas), com as batatas já cozidas amassadas ao garfo, como recomenda minha mãe ao telefone (ela também saboreando o jantar a milhas de distância, lá onde caldo verde é prato do dia a dia). A couve responsável pelo verde do caldo virá depois, facilitada pela mais recente aquisição em terras cariocas – um legítimo cortador de couve de feira comprado ali perto da Barata Ribeiro.

Viagens não são viagens sem sua contra parte gastronômica – comer por onde se anda, sobretudo se é o que as pessoas do lugar usam para se alimentar, é engolir a cultura do lugar, como queria Oswald de Andrade fazer com o mundo da cultura alheia, antes de incorporá-lo deglutido ao nosso tupiniquim. É claro que demanda atenção e intenção, porque senão é como comer qualquer coisa em qualquer lugar. As sopas de hoje à noite levarão para dentro das pessoas a quem quero bem todas as alegrias e lembranças que esta manhã de cozinha fez assomar em minha alma. As montanhas de Minas e as praias do Espírito Santo estarão em momentos dentro de todas elas, ainda que não o saibam. As minhas intenções de leveza, de alegria, de encontros que se repitam e imprimam tatuagens coloridas nas almas de todos nós, também farão parte, em poucas horas, da corrente sanguínea que regue cada uma das células destes meus amigos.

Com este pensamento, deixo esta crônica por aqui – há ainda outras coisas que lembrei de fazer... Palitos de pão, frito no azeite bem quente, já experimentaram?! Acompanhamento fantástico para qualquer sopa, desde que quente!

Bom apetite a todos, neste dia 21 de julho!