02/08/2009

Divagações a propósito de um vinho

Pode ser que seja influência de meus compatriotas, mas tenho por vezes a impressão de que o vinho não pertence ao mundo dos vivos. Como se uma garrafa pudesse conter essência e alma de quem a produz e a olha crescer e desenvolver-se dia a dia, e por isso pode perceber-lhe as virtudes com mais propriedade. A nós, que a compramos deste lado, resta-nos desfrutar seu conteúdo, e quem sabe retirar-lhe algumas conclusões que tornem mais suportável a passagem dos dias e dos sentimentos que se arrastam.

Quando eu era pequena, e isso durou vários anos difíceis de chegarem ao fim, passei muitas horas na companhia de quem entendia, discutia e sobretudo gostava e bebia vinho, enquanto se conversavam veladamente coisas das quais não se podia falar em voz alta. Uma espécie de religião, cercada de rituais e de pode-não-pode-fazeres misteriosos e inexplicáveis. Como aquelas coisas que às vezes temos a sorte que nos transcendam e nos transformem em melhores pessoas, por nos despertarem aquilo que de mais poderoso existe em nós.

Servi por várias vezes de álibi a meu pai, nas suas saídas noturnas e na vida boêmia de quem gostava das horas em que o sol descansava, e em muitas me presenteou com o papel de guia na escolha de um vinho. Eu intuía que aquilo era uma coisa importante, e só mesmo por ser pequena é que aceitava a incumbência. Hoje, recusaria com certeza, pela consciência de ser, de longe, a mais despreparada para a missão.

Primeira boite, (de nome “Inferno D’Azenha”), primeira casa de fados, primeira noite de blues: a necessidade do álibi alheio rendeu-me boas descobertas, a salvo porque com meu pai ao lado. Dentre elas, o vinho - embora se bebesse em casa, na forma de quase-remédio, transformado em beberagens que meu avô às vezes preparava para cuidar-me dos pulmões, que nunca foram famosos. Mas algumas descobertas só vieram mesmo foi com os copos fora de casa.

Por entre as experiências etílicas que meu pai me proporcionou, não cheguei a perceber muito bem a real dimensão do meu paladar. Lembro-me de uma noite, numa casa de fados em Lisboa, de um fadista célebre nos receber com um “lá vem a menina aninhas com a sua garganta de ouro”. Eu achei na altura que teria alguma coisa a ver com o fado que inevitavelmente lá cantaria, empurrada por meu pai, mas hoje desconfio que talvez ele se referisse à brincadeira de me fazerem procurar traços de amargor nos vinhos enquanto se decidiam a qual beber. Entre umas e outras, alguma coisa devo ter aprendido, e o exercício de memória evoca uma pluralidade de sentidos que, a esta hora tardia, me fará adormecer melhor se lhes der livre curso nesta crônica.

Há certos vinhos que não caem, antes despencam em pleno estômago, e somente no dia seguinte lhes percebemos o desastre. Se estivermos atentos ao primeiro gole, ensinava-me meu pai, saberemos parar e escolher o certo, não para abrir mão da dormência, mas para nos livrarmos do mal estar no dia depois. Há vinhos, apenas levemente ácidos, que destroem, assim que nele batem, o palato, que atingem as mucosas ainda da boca e só depois disparam os alarmes do resto do sistema digestivo. A esses vinhos, há que ter-lhes respeito, aprender a pressenti-los e deixá-los longe, poupar o fígado. Depois deles, às vezes é difícil distinguir outros, porque pelo menos a mim deixam-me a boca anestesiada e insensível à sutileza de uma casta de uvas bem dosada na sua fermentação. A isso juntava-se frequentemente um “ouve lá: se beberes vinho não te esqueças dos copos d’água, pra digerires melhor os taninos”. E pouco mais, porque esses ensinamentos não se fizeram de palavras.

Em noites como as de hoje, em que de repente provas de vinho acontecem sem nem terem sido imaginadas, absorve-me uma saudade terrível desses dias de álibi de meu pai, como se essa fosse a mais poderosa lembrança da sua existência. Não saberia beber sem ele, e não saberia parar sem ele. A sua alegria se (e somente se) o tema fosse sair de casa ou juntar nela as pessoas alheias ao dia a dia, apodera-se de mim após anos; durante muito tempo foi assim que nos percebemos, divididos entre a delicada fragilidade do reconhecer a sua melhor parte no outro e o peso de precisar dividir o mundo em certos e errados que acabaram por nos afastar ao longo de toda a vida.

O mundo foi sempre a nossa porta de contato, e sempre que saio, que me entrego ao que só a noite proporciona, porque a meia luz torna possível, e nada mais é tão óbvio e límpido quanto o quer a luz do sol, com todas as suas virtudes, faço-o com um olho e um pensamento nele, e assim ele vai comigo, ainda que já se tenha ido. Essa é a herança que usufruo.

Minha viagem por esta vida com meu pai não foi fácil, mas ensinou-me coisas básicas que normalmente não se aprendem: como abrir uma garrafa sem que o chumbo do material que envolve o gargalo contamine o vinho; como beber o primeiro gole para que ele se abra persistente contra o céu da boca; como fazer para ver e ouvir, com olhos nem abertos nem fechados, o que está escondido por trás dos líquidos; como desfrutar de um jantar, uma festa, um encontro, horas antes que aconteça. Pensar em quem atravessará a porta, e por isso preparar assim a mesa, por isso mudar as cadeiras de lugar, por isso fazer as compras e cuidar dos pratos, por isso conseguir as flores e acender as velas, por isso ter tudo pronto uma hora antes do horário combinado, para poder imaginar os encontros antes deles se fazerem. Poder dançar na liberdade da casa ainda vazia, mas por pouco tempo. Desfrutar sermos nós próprios antes de nos despedirmos dos nossos desejos e vontades, para que imperem soberanos os dos outros, que entretanto chegam.

Muitas dessas pequenas coisas invento-as sozinha, até porque a parte da cozinha não era da responsabilidade do meu pai; mas é um espírito que se instala no ato de receber, uma espécie de alegria incontida que não acontece tanto no momento do encontro quanto no gozo da sua antecipação.

Gostaria de tê-lo tido ao meu lado nesta noite, conduzindo meus tortuosos passos, vendo-me repetir vigilante o que o vi fazendo em mim tantas e tantas vezes, guiando-me a mão nos trajetos e segurando-a no ar para que nada se quebre nem se desfaça, sejam vidros sejam outras coisas. Espero ter podido estar em mim com a mesma dose de atenção e amor (hoje sei) sinceros que ele me dedicou em tantas rolhas arrancadas. Espero que a sua sombra, que me acompanha insone nestas horas que lhe são perfeitas porque cálidas e tardias, eu consiga ser-lhe fiel na busca do que é, e não do que parece. E que os demais, ao meu lado, possam aproveitar-se dessa sensação de beatitude com que ele contagiava o mundo à sua volta nesses momentos.

Um vinho, dizia-me ele, é como uma casa que só aos poucos se torna nossa. Não basta experimentar um gole, de maneira fortuita e sem lhe prestar a atenção que merece. É preciso, como a um ser humano, oferecer-lhe dedicação sincera, acompanhá-lo uma e outra vez em sua viagem dentro de nós, refazer seu caminho, convidá-lo a nova visita, estar atento, pretender que não seja apenas o eu, mas também o ele. Uma amizade e um conhecimento de um vinho não são momentos à toa, acontecimentos banais, coisas que possamos deitar fora e pôr-nos a andar.

Um vinho é como um amor nascido, uma alga que se agarra às nossas pernas quando queremos sair do mar, uma música que queremos ouvir mas nos toma tempo encontrar. Como com os homens, um vinho demanda respiração pausada para observar antes de agir, num longe constante. Pede que se fechem os olhos no instante em que escorrega úmido pela garganta e nos suspende expectante os sentidos. Espera que se entreguem um ao outro o corpo e a alma, e que ambos se naveguem nas possibilidades do desconhecido.

Se conseguimos, se nos abrimos, se nos permitimos e nos revelamos mais verdadeiros a nós mesmos, o vinho surpreende-nos com a sua delicadeza, seu toque macio, seu sorriso vermelho escondido por trás do translúcido de vidro. Se nos entregamos, e nos deixamos permear, podemos até fugir, dizer que não, que não queremos, que vamos continuar com nossas velhas escolhas, com a nossa antiga e paciente felicidade. Podemos sonegar-nos novidades ao paladar, impedir a proximidade do vazio, do vácuo preenchido por esse tipo de vinho que chega e nos engole, de tão poderoso. Mas a um passo do abismo paramos, e assim caminhamos com as mãos e os pés atados, perseguindo as videiras da nossa sepultura.

Quando espalhei as cinzas de meu pai, sob o céu da cidade que ele mais amou entre todas as que habitou, além da sua música preferida, havia uma garrafa do seu vinho predileto, a melhor safra das melhores uvas do centro de Portugal. O bouquet esvaiu-se no ar com mais rapidez do que de costume, tive a impressão, quando a rolha foi puxada. Como se algo se libertasse e lhe desocupasse as cinzas da vida terminada, e ele pudesse preparar-se em paz. E nós pudéssemos ficar apenas com as boas lembranças, como essas de uma noite entre amigos, que o fazem retornar na sua melhor e mais perfeita forma, tão fora do mundo dos vivos quanto as garrafas que foram abertas ao longo da noite.

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