29/08/2009

De pinhais e piqueniques

Há uma lembrança de criança que me fez rir uma destas tardes, quando imaginei que um piquenique com o frio que estava seria uma experiência bacana de fazer com as crianças, quem sabe me reeditam internamente e assim a minha mortalidade se vinga. Algumas olharam-me como se eu tivesse endoidecido de vez, porque já estava quase escuro, a tarde no fundo já ia longe, e afinal... “mãe, qual mesmo a graça de comer sopa num piquenique, você tá querendo é nos enrolar...”

Quando eu era menor, a minha avó adorava organizar piqueniques curiosos que se transformavam em motivos de preleções simpáticas sobre a história de Portugal. Um dos locais favoritos eram os pinhais que D. Dinis plantou em longes tempos medievais para deter o avanço das areias sobre a terra firme, perto de São Martinho; punham-nos às duas a declamar felizes da vida o “ai flores ai flores do verde pino si sabedes novas do meu amigo...”, provavelmente a mais conhecida cantiga do rei poeta. Estes pinheiros chamam-lhes por lá mansos, copa larga e acolhedora, não muito altos, transformados hoje em símbolo de Portugal. No verão, por causa deles, é uma profusão de colares de pinhões à venda em todas as feiras, pra pendurar ao pescoço e ir mordiscando rua afora.

Chegando então ao local escolhido, estendia-se a toalha xadrez, e do cesto saltavam as sandes (adaptação lusa do britânico sandwich), que tanto podiam ser de carne assada quanto de tomate e ovo cozido (combinação também very british), as tartes de galinha perfumadas com tomilho, os refrescos de limão quase sem açúcar porque fazia mal aos dentes e as trouxas d’ovos - não há como explicar, é uma espécie de delícia dos deuses feita de gemas, gemas e gemas, além de quantidades imensas de açúcar que, imagino eu, nessa combinação não se imaginava que fizesse nenhum mal à dentadura. As trouxas vinham de casa da prima Madalena, não sei eu muito bem filha afinal de quem - segredo guardado a sete chaves, daqueles feitos de sussurros que silenciam quando quem não deve saber chega.

Eram piqueniques de certa forma velozes: era preciso comer sem demora, porque as formigas logo nos atacavam, pequenas e vorazes. Meu pai invariavelmente irritava-se, sacudindo as formigas do seu pedaço de tarte, minha mãe abstraía a confusão tentando ouvir o som do mar ao longe, minha tia Isabel espantava energicamente as pobres esfomeadas das beiradas da toalha, e a minha avó encolhia os ombros e me arrastava à procura das primeiras bagas do fim do inverno. Íamos, está visto, em excursão, e ocupávamos um longo trecho dos pinhais, andando por metros e metros, porque à beira da estrada, todos concordávamos, não tinha a menor graça. Tia Alice, irmã de meu avô, acusava-nos de parecermos provincianos mas, além de ir, comia no mínimo umas quatro sandes; trazia a sua cadeirinha estofada, que nos ocupava um lugar num dos carros, e suspirava desde que chegava até irmos embora porque “nada nunca mais será como antes”. Meu avô, que já lhe conhecia a conversa, logo declarava que “se a Alice vai, eu fico”. Em outras ocasiões, quando Alice não ia, ele apoiava-se na língua: “tudo o que começa com a letra p sugere-me perdição – praia, parque e piquenique... portanto, não vou”. Essa gracinha parou quando uma de minhas tias, salvo erro a mais nova, lhe disse que era engraçado mesmo, porque pai também começava pela letra p...

Essa mania de piqueniques familiares ficou-se-me lá do lado de lá do mar. Quando me lembro, e penso que puxa vida, que pena que meus filhos não têm essa vivência intensa, sou acometida por um misto de preguiça absoluta de todo aquele movimento preparatório que não tenho com quem dividir e da certeza de que tia Alice tinha mesmo razão, e nada nunca mais vai ser como antes. Nada mais melancólico do que sucumbir a um sentimento assim. Por isso, mal ponho os pés em Lisboa, a primeira providência (não é novidade, levam-me logo lá!) é comprar um frango assado no senhor joão da aldeia, ali à praça central de Cascais, e correr com ele (o frango, é claro) para o Guincho, tratando de comê-lo às pressas para que o vento dos penhascos não me leve embora. E mesmo as coisas não sendo como antes, faço de conta que eu sou, e divirto-me seja de olhos fechados, seja abertos, exercitando uma imaginação tardia do que foi, do que poderia ter sido e do que não importa se será ou deixará de ser. O que fica mesmo é o cheiro característico dessa dobra de terra que assiste ao despejar-se do Tejo mar adentro – a memória olfativa, já bem nos alertou Proust, nunca nos trai.

Um comentário:

  1. Putz, Ana, que lindo....

    Me deu vontade de juntar as minhas conservas de berinjela e o pão italiano, as suas trouxas d'ovos e sandubas de tomate e ovo cozido, e tudo o mais que outros quiserem trazer, vizinhos, amigos, conhecidos, desconhecidos, parentes e irmos todos ao piquenique, em qualquer lugar dessa Demétria e trazer o mar para o lado de cá!

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