02/09/2009

Das medidas do tempo

Tenho recebido umas estranhas criaturas no meio das minhas noites, vindas do mundo antigo, todas elas aparentadas com aquilo que nós chamamos de “tempo”. Primeiro foi Chronos, advertindo-me de alguma coisa que na altura só entendi parcialmente, talvez porque me chegou sozinho, ou talvez porque não lhe entendi corretamente a mensagem. Agora, nas últimas semanas, chegou Kairós, em auxílio àquele seu quase-irmão na tarefa de trazer à minha superfície o que me movimenta as entranhas. (É pena que às vezes as entranhas entendam bastar-se a si mesmas, como se estivessem destacadas do nosso universo completo, fossem seres autônomos num projeto ilusório do próprio corpo. É pena, porque há coisas que as entranhas ainda sabem e o resto de nós já esqueceu. Mas não era sobre isso que eu queria escrever, e sim sobre esses meus visitantes...)

Com a visita onírica de Chronos tinha eu concluído algumas coisas sobre o uso equânime do tempo. No caso, o meu tempo, porque pensei que a mensagem fosse pra mim. Dizia-me ele em sonhos que, embora fosse eu a bater em sua porta, era ele que vinha buscar o que lhe pertencia. Confesso que o sonho me perturbou um tanto, sobretudo porque se repetiu, com detalhes que eu própria devo ter lhe acrescentado ao longo dos dias, para mantê-lo aceso e consciente.

Kairós veio trazer-me notícias de outro lado, e fazer-me entender com mais clareza (ou crueza) a mensagem de seu predecessor, que me falava da sequência do tempo e do seu estender-se modular. A necessidade da linha que liga o passado (aquele que se insinua muito mais antigo do que a memória desta infância) ao presente, e este ao futuro, permaneceu nítida durante vários meses, sem que conseguisse eu atinar com os porquês de alguns detalhes. Kairós libertou-me do andar em voltas infrutíferas em torno desse tempo dos homens, que tantas vezes se desentende do nosso tempo interno, ou da sua (nossa) percepção. Com Kairós sobreveio-me o tempo do momento certo e oportuno, que intuitivamente sabemos, mas esquecemos. Essa indeterminação ausente em Chronos, substância ativa na presença de Kairós, alivia-me do som do tique-taque implacável, reduz o poder destrutivo da parte pânico das minhas insônias, mesmo que seja a sua exata e retilínea percepção que tenha me mantido acordada durante as últimas horas.

Com Chronos aprendo a medir-me face ao mundo, sei do percurso preciso, da lógica que faz com que as horas e os minutos se sucedam nos ponteiros do meu relógio. Mantenho o olho no semáforo, a mão ao alcance da agenda, as tabelas em que divido os meus dias distribuídas ao longo da semana, cada pessoa a quem pertenço e me pertence claramente à minha frente.

Com Kairós, mais do que medir-me, entrego-me; não vejo percurso a não ser um qualquer difuso, feito de pontos de luz, que não se sucedem e apenas acontecem, com a beleza singular do que lhes é particular. Fecho os olhos e os ouvidos ao ruído incessante da estrada que ouço ao longe, a minha agenda interna comanda a realidade, e não há tabelas, nem semanas, nem dias, muito menos pessoas que não se pertençam. Só o tempo em que o importante não é urgente, e efetivamente acontece.

Lanço mão desse tempo dividido em dois para somar-me por dentro. Não gosto de viver às metades, até porque gosto de fazer coro com aquele que diz que “metade de mim é amor, e a outra metade também”. Talvez por isso o meu último movimento desta madrugada arranque da minha parede imóvel todas as listas de “a fazer” e “feito” que se acumulam à minha frente, com o poder que eu lhes conferi de me medirem por todos os lados, e me impedirem de ser aquilo que devo ser, no tempo em que devo acontecer.

2 comentários:

  1. Mesmo sabendo que é um pensar aflito, angustiante, desde sempre tenho a tendência a tentar compreender se é cedo ou tarde.Vejo-me adiantando para algumas coisas e atrasado para outras. Nos últimos tempos me sinto sempre atrasado, como se já tivessem passado por mim as oportunidades, as chances que a vida nos dá.

    Com a leitura do seu texto tenho a impressão que cedo ou tarde não existe, mas somente o tempo certo, interno, independentemente daquele modular.

    Realmente, o tempo é algo que nos prende e, ao mesmo tempo, nos liberta, cada uma de suas duas faces a seu modo.

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  2. Sincronismos:
    O encontro de dois Kairós no sono de Chronos.

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