22/04/2014

Mãe de abril

25 de abril de 2014

Mãe:

Este dia, mais do que qualquer outro, é teu. Mais do que o dia dos teus anos, ou o dia de Natal, ou as tantas datas que aprendi a festejar pelas tuas mãos. Este dia, dia maior, devo-o a ti. 

Devo-te também o gosto pela preparação das festas, mais do que o gosto pelas festas em si. O gosto pelos livros, e o gosto pelo cheiro dos lugares onde se guardam: as livrarias, as bibliotecas, as salas de leitura, os chãos dos corredores empilhados de livros órfãos de prateleiras. O gosto pelas Ilhas, incomensuráveis dentro do teu coração. Devo-te o gosto de inclinar-me sobre o fogão a pensar nos outros, o gosto de ir às compras a pensar nos outros, o gosto de, antes de em ti, pensares nos outros. Devo-te uma generosidade única, sem medidas nem limites. Essas medidas e limites que às vezes (uns mais que outros, mas todos) não sabemos como medir e limitar dentro de nós. Essas medidas e limites que ora apertam ora afrouxam com exagero. Essas medidas e limites com que te ocupaste a vida toda, e foi nas faltas, nas falhas e nos descompassos que mais me foste ensinamento de entrega e presença. Sem medidas, e sem limites.

Dentro do avião, ao teu encontro há algumas semanas, pensava no quanto quisera ser-te o que me tens sido. Mas agora, hoje, à beira dos 40 anos desse dia de Liberdade que me ensinaste a cantar com os olhos em luz, penso que te sou exatamente o que me foste. Sou aquilo que me desejaste, ainda que, à distância desse desejo, possas olhar-me com olhos inquietos, e não entenderes porque caminhos andam os passos que já não guias. Li e fiz carne da minha carne todas as tuas lições de liberdade, e engendrei dentro de mim uma face que não esmorece, nem se cansa, mas é capaz de dizer chega quando o fim se anuncia. Isso, no lugar que me cabe, é ser livre a olhos plenos.

Talvez te dissesse hoje que terias feito melhor se pensasses mais em ti do que nos outros, mas que sei eu dos caminhos que nos levam aos lugares onde é suposto irmos? Sei, ao ler esta carta da Clarice Lispector que me caiu nas mãos por estes dias, que é tarefa delicada mexer sem cuidado naquilo que somos, ainda que não nos agrade ou ainda que não saibamos o que fazer com essas coisas desconhecidas que assomam dentro de nós sem aviso nem pedido. Dizias-me, da última vez, coisa semelhante. E o teu olhar refletia-se sério nas paredes imaculadas à nossa volta.

Dizias-me, com palavras do teu âmago, isto que me diz Clarice: até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual é o defeito que sustenta o nosso edifício inteiro. Não sei quais defeitos quiseste cortar em ti, e talvez tenhas pensado, num súbito, que o teu amor pelas festas, e pela sua preparação, o amor pelos livros e pela face livre da verdade, esse amor pelos outros antes que o amor por ti mesma, fossem defeitos. Mas pergunto-te, como sei terás perguntado ao espelho diante de ti: será em algum tempo o amor defeito?

Talvez possas ainda ter pensado que o teu amor à liberdade pudesse revestir-se dessas peles com que se aderem os defeitos, e talvez tenhas pensado que deverias ser e viver como outras mulheres viviam e davam de crescer a seus filhos. Talvez pensasses não ser aquilo que esperavam de ti. E talvez não fosses. Talvez nunca tenhas sido. E eu agradeço-te por, mesmo a meio desse meio em que não te decidiste a ser o que querias ser, teres me legado esta sensação interna que me diz "sê"  antes de me dizer "considera".

25 de abril, sempre.


Foto de Moreno Ribeiro


20/04/2014

Re-nascer-se


Renasço hoje cedo vendo uma entrevista antiga do Laerte. Não andava à procura de nada em particular, um clique levou a outro e o último à tal entrevista. E gostei, gostei demais, e recomendo. A entrevista é do começo de 2012, pouco depois do célebre incidente do banheiro da pizzaria.

Laerte escolhe roupas de mulher para se vestir. Dizia aqui à minha filha menor que, a rigor, é mais ou menos como acontece com ela, que gosta de usar roupas de equitação. Cada um escolhe aquilo de que gosta, e eu me emociono (ela percebe) com esse presente de manhã de Páscoa de um homem que não desiste de si mesmo e nem de ser, a cada momento, aquilo que é. Veja: não é só abdicar de ser os que os outros gostariam que você fosse, mas abdicar de ser hoje o que se foi ontem, e saber que amanhã poderá existir-se de nova ou velha forma. Essa liberdade interna, que ele resume na frase "não quero me proibir de nada", é um renascer-se diário. Bom pra ver neste domingo de Páscoa. Laerte vive em coragem. Há um tipo de dor que faz a espinha dorsal dobrar-se sobre si mesma. E a meio da dor resistir. Essa é a coragem do processo e eu ouço-me em algumas das suas palavras. E sinto que, além de processo, a vida é sobretudo encontro.

Minha filha, aqui do lado, acha "esquisito". Gostaria de ajudá-la a construir-se mais despreconceituada. Mas o mundo às vezes pode mais, e por isso fico feliz de que esteja aqui junto a mim, enquanto assisto esse homem lúcido que distingue sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual, e distingue para saber o que escolhe e por que escolhe. Não que ela preste atenção em nada disso (nem precisa), mas eu presto, e, porque eu presto, ela percebe que há espaço para todos em todos. Mesmo não ouvindo, quando olha de soslaio para a tela, percebe essa calma na fala, essa calma no gesto da mão, essa calma  no olhar - e talvez no seu íntimo registre tudo isso como "calma na alma". A calma na alma de um homem que gosta de se vestir como uma mulher, e se veste, porque se sente no direito genuíno de ser e fazer aquilo que faz sentido para si. Quem sabe essa calma na alma tatuada na sua própria alma dilua os preconceitos que o mundo queira impor a minha filha, como esta impressão de "esquisito" que não é dela, mas do mundo. Este homem vestido de mulher é apenas um homem vestido de mulher, na busca do ser si mesmo, sentado diante de uma mesa e de uma câmera, em fevereiro de 2012. Oferece-me, de bandeja à distância de um ano, a dose de coragem, beleza e integridade que eu precisava neste acordar de Páscoa.



O link para a entrevista é https://www.youtube.com/watch?v=uxD1xXvQWYM
e a tirinha encontrei-a no blog que publica as tiras diárias, o Manual do Minotauro


14/04/2014

De dia, como de noite

Maria Lúcia Bertonelli, nascida a 2 de março de 1912, falecida a 30 de agosto de 1947


Maria Lúcia trabalha há anos na fábrica de camisas. Um emprego bom, cheio de rotinas pequenas e desimportantes que lhe dão sentido à vida. Maria Lúcia cultiva a desimportância. Os botões que se enfileiram diante das pregadeiras, organizados por tons e tamanhos e números de furos. As capas das máquinas de costura, debruadas de vieses no mesmo tom do tecido grosso. À distância de dois palmos, nem se percebem. As coisas da vida de Maria Lúcia estão a dois dedos de distância de seus olhos.

Todos sabem quem Maria Lúcia é, e cumprimentam-na à entrada. Ela é, sempre, a primeira a chegar, e a sentir o ar morno e silencioso do vão aberto. As costureiras enfileiram-se como botões nas suas cadeiras eretas, suas roupas escuras como pontos de bordado, os óculos de aros finos e duros à espreita na frente dos olhos. Escolhem pelo tato o tom, o tamanho e o número de furos dos botões, e pregam-nos sem aproximá-los da vista. Os olhos encontram, às vezes, os de Maria Lúcia. Duros e estéreis, as mãos entrelaçadas escondidas atrás das costas e do sorriso perolado que não se desmancha.

Maria Lúcia não fala com a boca, mas com os olhos. Nem com as mãos, só os olhos. E só à distância. Talvez, no fundo, Maria Lúcia não veja nada à sua frente. Talvez a redução de seu horizonte de dois dedos lhe dê a dureza daqueles que se mantêm ao longe dos outros por terem medo de si mesmos à frente do espelho.

Nem sempre fora assim.

Pequena, sonhara grandezas. Semeara nos colchões das pequenas camas de suas bonecas cada um de seus sonhos maternais. Em cada fita de cabelo das pequenas filhas de sorriso estático, amarrara com firmeza seus desejos e pedidos. Jamais recolheria essa vontade, pensava sem saber que essas eram as palavras do seu pensamento, mas não as de seu destino. Maria Lúcia não sonhava. Maria Lúcia vivia, ali naquele mundo paralelo de quatro paredes forradas, sem saber de que matéria se tece o mundo.

Cresceu e foi à vida. Levou as bonecas dentro dos olhos, as suas particulares lentes de contato para medir a realidade. E a realidade foi-lhe dura e estéril. Maria Lúcia foi recolhendo os olhos, mantendo os sonhos bem perto deles, e pequenos, cada vez menores. Precisou trabalhar, nessa família que não tinha posses. E seu trabalho deixou-se mansamente contaminar por esse gosto incolor pelas coisas todas pequenas do mundo. As grandezas dos sonhos de menina encolheu-se dentro da caixa de botões, imperceptível como o menor dos furos. Estreitou-se por entre as agulhas alinhadas na cartela. Na alfineteira em forma de coração.

Durou pouco, a Maria Lúcia. Um dia escolheu a moldura da sua fotografia última. Quis quatro flores de pétalas ímpares, que brilhassem ao por do sol. A fotografia há de esmorecer, pensou, mas a moldura ganhará distinção, e a impressão primeira dos passantes, em domingo de cemitério, será a da distinção sóbria, e não a da finitude da imagem. Maria Lúcia quis esses brincos e esse broche na eternidade, e o seu sorriso de preferência, a fieira de pequenos dentes perolados, como botões minúsculos das golas das camisas.



12/04/2014

Bala de canela

Para a minha xará tão querida

Virgílio fez ontem 54 anos. Viúvo, grisalho, envelhecido, olhos encovados pelo peso das contas da mercearia. Vende de tudo. Ou vendia. Caixinha de fósforo, batata, Tubaína, pão francês fresquinho que o menino vai buscar ao forno antigo de dona Bastiana. Na prateleira mais lustrada, dentro de vidros leitosos, sonhos de valsa a granel para os gulosos e balas de canela, vermelhas e redondas. Como os calos novos nas mãos antigas de Virgílio.

Ciça vinha só de férias. Tinha a vida noutro canto, mas de vez em quando aparecia, e Virgílio espreitava pelo canto da porta. O carro cor de rosa em que todos reparavam. Ciça vinha à janela, o cabelo escuro ao vento, os olhos curiosos à procura dos olhos morenos na esquina da mercearia tosca. O rapaz descia os dois degraus com a pressa de quem sabia que o tempo é justiceiro cruel, e corria atrás do carro, a mão agarrada ao pacotinho marrom recheado do que Ciça mais gosta. São as balas de canela, e o punhado de sonhos de valsa.

Os vidros grossos de tampas de latão estão lá, com as balas e os sonhos de valsa sem envelhecer. Não mudaram de lugar, e nem Ciça e Virgílio se casaram. Virgílio acertou-se com a filha de dona Bastiana, e a mercearia fundiu-se com a padaria. Ciça ficou na cidade grande, onde a família lhe desenhava o futuro. A alegria de encontrar os olhos de Virgílio sucumbiu diante das luzes do longe. E Ciça não voltou mais, e nem Virgílio a foi procurar. Nem quando Bastiana morreu, e o sonho do carro virando a esquina lhe atravessava os dias, o cabelo ao vento, os olhos úmidos de saudades.

Hoje cedo, ao café com que a surpreendem na cama ao acordar, um pacotinho marrom faz o coração de Ciça parar de valsar dentro do peito: os sonhos estão ali dentro, agarrados às balas de canela que existem só pra disfarçar. Ciça tem os olhos cheios de água, esse amor que atravessa o tempo, e ele, ali, tão fresco e recente, sequer deve ter reparado.

12/03/2014

sem título




A solidão, fera amansada, pasta amarrada debaixo do meu olhar cauteloso. Afrouxo a corda que a prende quando olha para mim com olhos enxutos, e trago-a para dentro de casa quando escava o chão com as patas duras à procura. Com ela em casa, ninguém entra nem eu saio. Torno-me indisponível a quem me costuma ter, e dedico-me só a ela. Aquece os meus pés à noite e os seus olhos são as sentinelas da minha angústia. Estás bem guardada, dorme sossegada, diz-me dessa maneira que apenas as feras amansadas em casa dizem, isto quando conseguem algo dizer. E porque são as palavras o alimento da minha quietude, e porque ela sabe e respeita essa minha condição de nascença, toda a sua aparência se transforma, e até a sua pelagem, que era hirsuta, e suja, e falha, torna-se uma seda suave e lisa, por onde a minha mão escorrega aliviada. Dormimos agarradas, a besta e eu, e, porque lhe perco o medo, ela perde os modos bestiais.

Quando amanhece, e acordamos ao mesmo tempo, e olhamo-nos uma nos olhos da outra, eu levo-a lá fora, porque já se lhe percebem à flor da pele as saudades da vida livre da corda.

E depois volto a casa. A besta amansada pasta outra vez lá fora como se fosse um ser de lã. Deixo a porta aberta e descerro as cortinas. Estou pronta para aqueles que se sabem convidados. Posso ser-lhes sua outra vez. Assim que entram, talvez queiram saber do tempo, e do espaço, e dos outros mundos que vivem dentro desta casa que tem o meu nome. 

Mas nada será dito, porque se afixou à entrada um aviso perigoso: nada pedirás, nada perguntarás. Ninguém diz quem o pôs, embora se saiba e não seja exatamente um segredo, mas um poço de águas que não têm fundo. Sabe-se porque há um brilho opaco nessas palavras poucas, a esconder a verdade por trás de um traçado simétrico. Mas também ninguém discute, porque bem estão as coisas que estão bem, e esta porta aberta, esta fera amansada e este coração a bater no peito sabem bem. 

E passamos uns e outros pelo aviso, ao entrar e ao sair, e mesmo que se percebam as leves farpas que espreitam das letras, escolhemos nada dizer, porque ao longe cavalga um ser que confia. Ouve-se o bater das ferraduras nas pedras do caminho. Pode-se levantar voo e vê-lo ao longe, no exato momento em que as quatro patas do animal então no ar. Nessa suspensão de tempo, nessa evaporação de espaço, vivem a fera, o amor e a espera. E eu entro, e decido fazer-me parte da paisagem em movimento.


Fotografia: Moreno Ribeiro

09/03/2014

O outro nome


Este amor não é um rio,
tem a vastidão do mar

A ti, antes que a ambos nos alcance a morte

Aqui estou, diante das águas do rio que não é o da tua aldeia. Nem sequer o rio onde gostas de nadar, a mergulhares até quase se perder o ar. Só quase: tu não gostas de perder o ar, talvez porque sejas um ser de terra, ainda que em ti se ergam as forças ígneas, e mesmo que tentes delas fugir, elas correm atrás dos teus rastros.

Mas para além disso, sabes o que vejo, eu que fico deste lado de fora d'água, quando nela submerges? Vejo os pesos do teu quotidiano, dessa tua vida que dizes monótona, de números e parafusos e pequenas retortas que antes fossem, mas não são, de alquimista. Boiam ao redor das marcas que o teu corpo deixa à superfície, que são tantas quanto as das enguias a fazerem o mesmo percurso. As tuas espáduas, já te disse há tanto tempo, são peixes alongados a passear nas tuas costas. Talvez mergulhes na água como desejas mergulhar dentro da mulher que ames.

À distância de tantas ondas, olhos postos no barco ao passar, lembro-me dos teus olhos quando fechados. E levanto-me com vagar, porque os anos já não me fazem saltar como mola do lugar em que me escolho sentar. E vou em direção ao café, este desporto nacional que tanto me agrada. Não sei bem (nunca soube) o que pedir à vida, tanto quanto não sei o que pedir agora ao empregado do café que se aproxima de mim com o guardanapo branco pousado no antebraço como uma gaivota. Olha-me solícito, e não sei se o faz de propósito, mas confunde-me o lapso de tempo que existe entre os meus desejos e o seu atendimento. Que mais é a vida do que uma sucessão aleatória de lapsos de tempo, onde eu ora sou esta pessoa sentada à mesa do café, ora o empregado de gaivotas nas mangas a atender com olhos líquidos o espaço vazio da cadeira que ocupei?

Seja a forma ou o tempo de que disponha, não deixarei de ser desta forma de gente que ora se senta à mesa, ora a atende. Esta forma de gente que não se aflige nem se desconcerta com os silêncios teus, inesperados, com as ausências tuas, que não se anunciam, com as distâncias todas que se materializam porque alguém, não importa quem, se esqueceu, e mais nada. O esquecimento é a lembrança adormecida. Esta vida, tu que talvez já tenhas começado a desfazer-te no poente, nada mais é do que o caminho que se abre entre as mãos que servem e as mãos que pedem. Eu tenho em mim dois grandes pares de mãos.

Volto para perto do rio, porque estar perto d'água é como estar perto de ti. E estar perto de ti é o pedido que me faz o coração, e eu, que nada sou a não ser aqueles que me compõem, posso escolher ter-te perto e estar-me perto. Porque estar perto de ti é ter-me perto dos meus pensamentos, como se fosses o pastor e fosses os montes e as campinas que ondulam dentro de mim, à espera. Ainda que não percorras os vales e as colinas desta vida que nos coube, porque desejas o que não temos, alimentas as paisagens que de dedos enlaçados desenhamos na superfície inventada. E são essas as paisagens que todos os dias, pontuais como a sirene do navio a atravessar o rio de banda a banda, se levantam no horizonte da manhã. E é isso o meu bastar-me, e porque me basta e como me basta, sou, basicamente, feliz.

Poderia ficar-me por aqui, e não dizer-te mais nada, porque de certa forma sei que até isto já é mais do que devia, para quem não quer ouvir nem pensar em nada. Apenas ser, e sentir, e deixar-se levar como as folhas que caem no leito do rio, e querem que se acredite que se deixam conduzir sem espreitarem o para onde vão. Mas devo ainda desafogar mais um triângulo da minha alma. Devo acrescentar ainda a esta dose imensa de exposição de carne e sangue e fluidos e densidades, uma coisa.

Penso que o seres dentro de mim feito de tantas letras faz com que esta cidade, hoje, sussurre esse "sou tua" que me embala até a noite já ser alta e já ser amanhã. Esta condição que crias, com as palavras que despertas neste lugar que só tu conheces em mim, esta condição que crias oferece-me o estares em mim, e este estar em ti que escolho mas não imponho e é agora também condição. E é essa a tua presença constante dentro dos versos das minhas linhas: uma candeia acesa, que não sabe onde os teus pés enterram a força da sua vida, mas a ilumina da mesma forma, refletida nestes meus olhos que olham o rio que não é o da tua aldeia, mas é o rio que circula nas minhas veias e, por condição escolhida e aceite, também nas tuas.

Fica bem. E lembra-te de mim.



Imagem: o Forte de São Julião da Barra, em Oeiras. Aquarela de Filipe Almeida
http://tracoslocais.blogspot.pt/
Versos em epígrafe do "Fado perdição", de Maria Duarte.

O amor é uma companhia

O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.


Lisboa amanhece neste 9 de março fria e cinzenta. E ainda assim, a luz impera. De onde tira esta cidade a luz com que sempre amanhece? Saio de casa disposta a olhar com olhos de ver, ainda com a noite de ontem fresca dentro de mim.

Ouvi ontem, como verdade já sabida, que nada é acaso. A mola propulsora de Fernando Pessoa. E de Alberto Caeiro. E de todos esses irmãos que ele se criou para não ser sozinho, e ser o que todos provavelmente somos: muitos dentro de um mesmo envelope.

Fez ontem cem anos do dia triunfal da vida de Fernando Pessoa. E agora que já não é ontem, mas hoje, fecho os olhos. Estou outra vez, e ainda frescos os sentidos porque foi apenas ontem, dentro da casa onde o poeta viveu por 15 anos. Dentro do quarto que habitou, onde escreveu, onde dormiu, onde se postou à janela para ver a rua lá embaixo. Talvez seja esta a mais alta janela da sua casa, e debruço-me nela para ficar mais perto dele. Fico diante da sua cama, encosto-me a ela, sento-me nela. Seu chapéu jaz aí, displicente, como se ele tivesse acabado de sair e o tivesse esquecido, ou como se tivesse acabado de chegar e o tivesse atirado para cima da colcha amarela de chita de Alcobaça. Também está aqui, na parede entre as janelas, a cómoda alta onde esteve, nesse dia triunfal que hoje faz cem anos, um guardador de rebanhos que nunca os guardou, mas é como se os tivesse guardado, porque a sua alma é um pastor. E tanto faz se são fatos ou ficções, todas aquelas linhas que escreveu a Casais Monteiro tantos anos depois. Nesta noite, que porque nada é acaso posso chamar de sagrada, leem-se os poemas deste pastor, depois de sabermos que quem lhes deu vida dedicou-se a pensar muito mais do que este, que agora ouvimos. Desfiam-se as palavras que não são palavras, mas campinas, ventos, ilusões de letras a marcar a substância concreta do mundo. Em silêncio dentro deste quarto, nós que aqui estamos porque nada é acaso, ouvimos o que foi escrito, e a voz melodiosa da Natália Luíza que os lê, sabe o que está a fazer. Ou talvez não saiba, mas faz como se soubesse. O que me leva a ter certeza de que sim: sabe. Dessa maneira caeira de saberem-se as coisas, que é sabê-las porque sentidas, e não porque sabidas.

E aprendi muitas coisas ontem, desse Fernando Pessoa astrólogo que disse a si mesmo sê vários, mas sê inteiro, e que o Paulo Cardoso apresenta tão leve, tão fácil, tão evidentemente. E por querer ser inteiro não podendo ser único, porque somos tudo menos únicos, fingir ser vários para poder ser autêntico. Como nós, mas ao contrário, a fingirmos sermos um só para não nos perdermos entre os vários que vivem dentro de nós - ou para que os outros não se percam nesses vários que palpitam em nós. É mais provável a segunda opção.

A contraparte de dizermos "nada é acaso" está em "tudo é simbólico". E simbólico é que nesse 8 de março estivéssemos nós que estávamos. E as coisas que aprendi, dessa maneira de se aprenderem as coisas que é sentindo-as sem as pensar, são um tropel de cavalos que agora se me impacientam na alma. Não aceitam rédeas nem sela, e nem sequer que eu me aproxime (ainda) para acariciar-lhes as crinas, olhá-los nos olhos, passar-lhes a mão pela maciez forte dos seus músculos lisos. Só posso admirá-los, assim de longe como se olham as paisagens mais secretas da alma. Assim de perto como olho agora, neste instante que se acaba assim que o escrevo, o encontro entre o rio e o mar. E assim como agora neste instante, porque nada é por acaso e tudo é definitivamente simbólico, entrego à fusão destes dois seres, rio e mar, a marulhar conjuras dentro da minha garganta calada, papeis dobrados em quatro, que as ondas vêm receber, com umas mãos que lembram o fado que me estenderam ao nascer. Agora, neste instante, sinto em mim que o amor é (não posso contestar) uma companhia, e não estou só, porque nunca estou sozinha.


Excerto de "O amor é uma companhia", Alberto Caeiro in "O pastor amoroso".
Fotografia: Ana Mata
Palestra da Paulo Cardoso e leitura dos poemas de "O guardador de rebanhos" na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa.

Na cn

Assim como





Fez ontem
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08/03/2014

A cidade feita de luz

Na cidade mais bonita do mundo há uma quantidade assombrosa de recantos que é preciso explorar. Porque pode-se passar à porta, ou diante dela, e achar-se interessante. Mas se não se entra, com a paciência e o sossego característicos desta capital, e uma dose de entusiasmo explorador marítimo, perde-se. E assombro perdido é assombro perdido.

Praça da Figueira, número 7. Vimos desde o Cais do Sodré à procura do lugar. Antes, é preciso comer as últimas castanhas assadas da estação, beber um café que nunca se bebe no Martinho da Arcada, os dedos encostados ao mármore que viu nascer quem sabe um guardador de rebanhos, e vir pela Rua da Prata acima. É preciso desviar das tentações feitas de bustos de Camões e Camilos Castelos Brancos, dos pequenos Afonsos Henriques com vestes templárias espalhados pelas lojas numa súbita paixão nacional pelo primeiro rei de Portugal. Atravessamos a praça que já foi mercado e aterrissamos em pleno Hospital das Bonecas. O burburinho da cidade submerge no lado de fora.

Aqui, a vida é brincadeira. Brincadeira a sério, como são as verdadeiras. Inaugurada em 1830, a Ervanária Portuguesa da dona Carlota em pouco tempo começou a receber as coitadas das bonecas acidentadas das miúdas que por lá passavam ou por ali viviam. Dizem que vinham com as mães e as avós ao mercado, e ficavam encantadas com as roupas de boneca que a jeitosa da dona Carlota fazia, sentadinha à porta da ervanária, entre um cliente que queria tília e outro que perguntava se havia lúcia lima e o outro ainda que chegava apressado para buscar a sua encomenda de amieiro negro. São lindos, os nomes das ervas.

Hoje é a Marta que está ao balcão. Trago a Rosinha, que coitada perdeu a cabeça. Boneca mais querida de casa, prometi que a traria ao hospital. A expectativa é grande. A Marta abana a cabeça: "Coitadinha...". Olha para mim com um olhar compungido (enquanto o filho adulto ao lado não sabe se ri se chora) e diz: "Olhe: ela vai precisar ficar internada". Pergunto-lhe se vai demorar muito tempo e ela diz-me espantada: "Mas, minha senhora... isto é um caso muito sério! Há de ficar aqui conosco por pelo menos um mês!". 

Fico a pensar na coitada da minha filha que acredita que os achaques de boneca são mais fáceis de tratar que os de gente. Engana-se, e nem sabe disso. Especialmente quando se perde a cabeça, e o mundo obviamente destaca-se da sua ordem costumeira, tanto faz se bonecas, se gente. Não é coisa de poucos dias, e não se tem certeza de como se ficará. Digo-lhe que está bem, o que é que se há de fazer, são as coisas da vida, veja lá se conseguem dar-lhe um jeito ao cabelo, já agora... E ela concorda: "Realmente, este cabelo está a precisar passar por uns cuidaditos... Deixe estar que há de ficar como melhor puder ser!", e começa a preencher a ficha da doente. Ao finalizar (precisa de todos os dados, e eu sequer sei o tipo sanguíneo da Rosinha...) instrui-nos: "Vejam, aqui está o telefone (aponta um número no papel), podem telefonar a informarem-se como ela está. Só é preciso que digam o número da cama"  - e aponta outro número, que qualquer incauto chamaria de ordem de serviço, para logo depois ser expulso dali aos pontapés. A Rosinha, que jazia deitada de olhos fechados em cima do balcão, seguiu para a enfermaria, mas não sem antes se despedir de mim, que entretanto quase me vi a encher os olhos de lágrimas. Até porque o respeito pela internação fez esperar os outros clientes da loja, donos da tal paciência, por quase trinta e cinco minutos. Sem queixas nem perguntas, num silêncio que parecia remetê-los às próprias agruras com a saúde dos entes queridos.

Saímos de lá com a alma a precisar de ajuda. Viramos à direita, e outra vez à direita, e chegamos às Portas de Santo Antão, de onde a "Ginja sem rival", da sua minúscula porta, firme e forte desde 1870, nos chamou sem precisar de insistência. Gosto deste gosto lisboeta de gostar das coisas velhas, satisfazer-se e orgulhar-se delas, e mantê-las iguais e idênticas entre um século e outro. O pequeno copo ali à porta, em pé e ao sol, restabeleceu as forças, indo buscar lá aos fundos da memória a sensação de outras épocas.

E continuamos nas andanças. Para esvaziar a cabeça dos problemas das demais cabeças, sejam elas de pessoas, sejam elas de bonecas. Não há, afinal, grandes diferenças, e o que é preciso é paciência, sossego e uma cidade como esta, cheia de luz, de pedras e de esquinas. Uma cidade a ensinar-nos que, para encontrar a primeira, basta aceitar as segundas, e confiar que as terceiras surgirão a cada momento, dispostas a levar-nos exatamente ao lugar para onde devemos ir. 


28/02/2014

Alfa códigos

Esse mundo virtual é um nunca acabar de aprendizado e de inspiração. Entre ontem de noitinha e hoje, repare a quantidade de estímulos que recebi. Por essas e por outras é que não devemos jamais e nunca em hipótese alguma julgar nada nem ninguém, nem antes e nem depois de acharmos que sabemos alguma coisa. Tá confuso? É de propósito.

Ontem de noite, sem querer e um tanto a modo de higiene mental, embarquei numa produção poética coletiva, a partir de um dos poemas do livro Pele, autoria do amigo querido Aléssio Di Pascucci. Outros (Pedro e Má) juntaram-se ao "sarau virtual", como um deles disse, e lá ficamos, umas boas duas horas, mantendo versos quase-quase paralelísticos, regulares na forma, subvertendo-a às vezes com boas sacadas morfossintáticas. Muito bom mesmo. Uma espécie de deglutição do dia que passou, fiquei imaginando, juntando narrativa, poesia e uma dose on the rocks de terapia. Cada um saberá do que falava: num átimo, o que era meu tornou-se nosso, e assim mais fácil de digerir à noite. Bom, né?

Pouco antes disso, havia me deparado com a notícia (que chegou inbox, via uol) para a qual só consegui ligar um adjetivo fora de uso, muito particular do Baixo Minho: estantia. Fiquei estantia. Estupefacta até dizer chega. Mizael de Souza, o triplamente condenado assassino de Mércia Nakashima, a quem o destino fez colocar num dos cursos que dei no Presídio Militar Romão Gomes, declara que vai escrever um livro. O Mizael vai escrever um livro. Para mostrar o seu lado. Os 20 anos a que foi condenado em júri popular, num processo transmitido pela primeira vez ao vivo pela rádio e pela tv, não renderam ibope no facebook, provavelmente porque ele teve a sorte de ser condenado no mesmo dia em que os mensaleiros foram inocentados, e mais sorte ainda porque há uma parcela da memória das pessoas que se esvai como água ralo abaixo. Mizael, aluno do curso de Escrita Criativa do presídio em que cumprirá sua pena, não escreveu na altura uma única linha. Manteve-se numa certa (vou chamar de) soberba convencida, arrogante; deu-se ares de superioridade; quis posar de pop star imaginando ser reconhecido por qualquer um em qualquer lugar. Talvez convicto de que seria inocentado. Errou.

Agora, entro na rede pra ver quem andou se deitando nela. Mole e aleatoriamente vou lendo o que ele, o facebook, sugere que leia: torpor absoluto, que só não é pior porque é consciente. Sim, eu sei que estou lendo o que alguém da além-normalidade me induz a ler. Tudo bem. Manterei o senso crítico.

Mantive, mas não estava preparada para a estultice que cairia sob meus olhos. (Estultice, como estantia, é daquelas palavras que nunca tenho ocasião de usar. Responde por ações estúpidas, insensatas, imbecis e tolas. É o caso.) O blog "Ask Mi" (Mi é uma pessoa) apresenta um alentado (porque só com muito alento mesmo) estudo, recheado de conselhos, resultado de um workshop que a tal Mi realizou com Dora Porto, que por sua vez é orientadora familiar. Nunca ouvi falar dela, mas é na linha daquele "Casamento blindado" à venda em tudo quanto é posto de estrada. Juro que fui lendo achando que a tal Mi estava de sacanagem. Que no final daria risada dos aprendizados recebidos e diria valha-me deus em que século estamos.

Mas não. Os conselhos de "Aprenda a ser uma esposa irresistível" existem pra serem seguidos e são a prova de que não estamos perdidos e há (aleluia!) luz no fim do túnel! Já que

"... a mulher consegue sim fazer mil coisas ao mesmo tempo: comandar uma empresa, cuidar do marido e dos filhos, gerenciar a casa, trocar mil e-mails,  atender o telefone, ir ao supermercado, salão, academia, dentista, médico..... tudo no mesmo dia! Ufa!! E aguentam fazer mais de 2 coisas ao mesmo tempo! O homem nem tanto (...) Eles têm outro ritmo!"

então é melhor se precaver e imprimir e colocar na porta da geladeira a seguinte pirâmide orientadora:

Assim, tudo entrará nos eixos como estava previsto no felizes para sempre e você terá seu marido perpétua e eternamente ao seu lado, como atestam a maioria dos comentários à matéria do blog.

Não sei quem é Mi, não tenho nada que ver com o casamento ou as opiniões dela. Nem as discuto, porque bem se diz que entre marido e mulher não se mete a colher. Cada um saberá das sandices, das convenções, das paranoias e das concessões das suas relações íntimas. Eu tenho as minhas, você terá as suas. Mas é impossível não pensar nessa parcela feminina que em pleno século XXI olha para a sua relação como se ela acontecesse na década de 60 do século passado, aquela mesma década que enormes contingentes de donas de casa tentaram transformar ( e veja: sem considerar que nós não vivemos mesmo na década de 60, onde as mulheres não trabalhavam fora de casa etc. etc. etc.). Isso, por um lado.

Por outro (vá conferindo na tabela), imaginar que o homem (e só ele!) queira uma fabulosa parceira sexual, e que lhe retribua as benesses sendo afetuoso, que à estudada atração que a mulher exerça o homem responderá com honestidade (leia-se: no other women), que o apoio no lar da mulher equivalha ao apoio financeiro do homem, e que a admiração feminina por seu homem criará/manterá nele qualquer forma de compromisso, é demais!

(Antes de ir, passo no mural do Ivan, que acabou de compartilhar uma receita de ovos cozidos em creme de espinafre de dar água na boca. E água na boca é o que há!)



Quer ler a matéria toda da Mi? Clique aqui:

A pirâmide puxei de lá, e os alfacódigos são (claro!) do The Matrix!

Mas bom mesmo é terminar com a tal receita de espinafres e ovos!


26/02/2014

Forma e sentido

Melhor que pensar é sentir. E melhor que compensar é consentir. Melhor do que pensar o que o outro pensa é sentir o que ele sente. Gosto, demais da conta como diz minha amiga Valéria, quando as palavras se encaixam dentro de mim em forma e sentido. E gosto de sentir com o que o outro sente. E, portanto, consinto: tanto faz que pensemos igual ou diferente. Ô sossego.

As palavras têm caprichos: pensa-se sobre elas, e elas ficam mudas, trocistas. Ocupamo-nos de outras coisas, distraídos como borboletas, e elas correm ao nosso encontro, querem contar-nos segredos. Não porque antes não quisessem: nós é que não as abordamos como elas necessitam. Leveza, abertura e sorriso: é disso que as palavras precisam para entrarem dentro de nós e comporem forma e sentido.

Tudo isso a troco do que, pensará você. Porque fiquei pensando um tempo na palavra espiritualidade, surgida a meio de uma conversa gostosa como banheira perfumada. Pensei na sua morfologia, esse ser substantivo que se ergue do raso das coisas para afirmar-se existente. Pensei naquilo que dela dizem os dicionários: qualidade ou condição do que é espiritual. E parei de pensar, porque a nada me conduzia. E senti a tal conversa, mais do que a ouvi.

As palavras precisam da nossa existência mais humana. Daquelas qualidades que se encontram no lobo frontal, como escreveria um neurocientista. As que fizeram Jung dizer "Eu não preciso acreditar em Deus. Eu sei". As que por causa dos gregos nós chamamos de entusiasmo: en-theos, o Deus dentro. As que fazem Leonardo Boff escrever que "é o saber-se pertencente a algo maior". E as que reverbera Daniel Bohm, discípulo querido de Einstein, quando fala da existência de uma "ordem maior subjacente à ordem sensível". São aquelas qualidades em nós que nos humanizam (e que Antônio Cândido diz ser a arte), é aquilo que nos retira do limbo do mundo, do limbo de nós mesmos, e nos estende novos horizontes, possibilidades, visões, encontros. A tal da espiritualidade. Por isso difícil pensá-la e mais tranquilo senti-la. Ou consenti-la.

Freud considerava a religião uma neurose coletiva, uma projeção do complexo pai/mãe num "Pai maior". Uma forma também de evitar psicoses: a neurose ilude, mas permite que se viva. Do ruim, o menos pior, ou algo assim. Os mistérios religiosos são por definição caminhos grupais delimitados por códigos de conduta restritos e precisos, conjuntos de rituais e crenças estabelecidos dentro de instituições e organizações. Igrejas, religiões: sobre a espiritualidade não sei o que Freud pensava e arrisco errar, mas creio que foi Jung quem lhe dedicou tempo e pensamento, quem descortinou por trás da existência humana essa sobre-existência, essa transcendência a que chamou (erro de novo, talvez) espiritualidade. Coisa do espírito, dessa nossa parcela que é a que nos confere o estado de humano, e por isso dizia eu ali em cima que as palavras precisam do nosso mais humano: porque elas são puro exercício de espiritualidade, são o próprio espírito em ação. Quando deixamos, claro e óbvio como vidraça recém lavada.

Mas isso sou eu, que gosto delas e com elas me entendo. Para outros será a espiritualidade outra coisa, porque é momento e caminho individual e pessoal, uma jornada que é um estado, e não um modo de vida. Esse fio condutor que une tudo a tudo reconhece-se assim que uma mudança interna e profunda acontece. O que a prepara, à nossa mudança, é o nosso movimento, o nosso exercício de relação e reconhecimento disso que é mais que nós mesmos e que somos nós ao mesmo tempo. O novo rumo, o novo sentido são os atributos visíveis da espiritualidade.

O que pressupõe o exercício da busca, e por isso nessa conversa surgia esse atributo: espiritualidade é exercício. Sem dúvida. São passos que se dão, com um norte intuído, que a alma percebe e persegue. Às vezes, o norte não leva a canto algum. E perde-se tempo. Ou não. Porque cada caminho é caminho e cada ser é ser. E por isso é mais fácil consentir, e aproximar-se do outro pelas forças que vivem no outro lado do lobo frontal, e que ganha o nome de coração. A geografia humana não obedece aos olhos da razão.

Leio num site que atribui a Lucas, 10, 25-37 palavras que não saíram de sua pena. Mas faz sentido: "Espiritualidade é tudo que é capaz de produzir em mim uma mudança de pensamento, atitudes e conceitos, que me colocam num novo rumo e me oferecem um novo sentido para a vida". Por isso, e outra vez consentindo: como, pela graça de deus, poderia alguém dizer a um outro alguém que a sua escolha de caminho está errada? Que a sua vivência espiritual está equivocada? Que seu caminho a nada conduzirá? O exercício da dúvida, outro atributo da espiritualidade humana, freia-nos a língua, impede-nos de dizer o indizível, de julgar o injulgável. Nos caminhos do espírito, a liberdade precisa imperar serena.

E, assim como nos céus, na terra.


19/02/2014

Marwan, Philomena, Hilda, Rosa e Chico

Devo ter visto em sonhos esse menino de só 4 anos chamado Marwan. Acompanho as notícias da crise no mundo árabe a distância segura, por detrás dessa tela onde é preciso filtrar e decodificar com constância. Desconfio de manchetes. Provavelmente porque prefira as coisas e as pessoas que não se constroem para chamar a minha atenção, mas a chamam por serem o que são. Quanto menos filtros, quanto menos encenações, melhor. Descubro, agora cedo, que Marwan não estava perdido e solitário em meio a um deserto do tamanho do mundo. A revoltante imagem do garotinho vagando pelo deserto com uma sacola na mão rodou o mundo inteiro, e sabê-lo afinal a poucos metros da família, perdido apenas na desordem do momento de atravessar a fronteira entre a Síria e Jordânia, quase parece querer retirar-lhe força. Marwan agora vive em Zaatari, um dos maiores campos de refugiados sírios. Aberto em 2012, cresceu a uma média de 1500 a 2000 pessoas por dia. Em julho de 2013, eram 144.000 refugiados. Marwan integra essa que é hoje uma das maiores cidades do país. A sua tragédia pessoal, longe de diminuir, aumenta. Catastroficamente.

Enquanto Marwan descobre sua nova morada, eu me sento confortável numa poltrona de cinema. Não sei como juntar as injustiças do mundo dentro do meu coração. Assisto Philomena. A saga de uma irlandesa atrás de seu filho, dado por adoção pelas freiras do orfanato em que vivia. Triste, hilário e emocionante, daquela forma que (acho) apenas os ingleses conseguem. Philomena é uma mulher de verdade, de 80 anos, que está neste momento engajada em forçar o governo irlandês a abrir os registros das adoções feitas no país. A sua tragédia pessoal, imortalizada como a de Marwan através de imagens e palavras, vem juntar-se às do resto do dia.

Hilda e Rosa trabalham há mais de 30 anos no mesmo salão de cabeleireiro. Nesta luta insana que travo comigo mesma para eliminar a onicofagia (palavra muito mais fina do que "roer as unhas"), encontro pérolas dentro desses lugares. Assim que sei que trabalham ali há tantos anos, e que esse salão em pleno Santo Amaro tem mais de 50 anos de idade, imagino um sem fim de histórias dos áureos tempos, as modas passando na minha vitrine pessoal num entusiasmo ululante. "Ah, Rosa, você deve ter atendido pessoas bem diferentes...". Resposta lacônica: "Que nada, gente é tudo igual". E mesmo que aos poucos Hilda comece a contar uma coisa daqui, outra dali, até chegar ao sobrinho que morreu com 4 anos, e que ela não perdoa a cunhada, porque foi ela quem o matou (a barbárie à solta por todos os lados, dois meninos de 4 anos submetidos a elas todas), eu fico com essa da Hilda. Gente é tudo igual.

Como o Chico, morador de rua do bairro de Santo Amaro, como se apresenta assim que paro o carro na padaria e ele me pede uns trocados. Convido-o para tomar um café e não damos tempo ao entregador de comanda, que procura com os olhos o gerente e não sabe o que fazer com a visita incômoda. Fico me perguntando se as pessoas que olham de lado terão se emocionado com Philomena e se desesperado com a foto de Marwan logo cedo ao ler o jornal. E penso em Hilda, e na assustadora lucidez do seu "gente é tudo igual".

E agora, quando já não sabia mais como juntar tudo isso em algo que me faça por os pés pra andar e fazer algo de útil na vida, uma amiga querida e combativa oferece-me de bandeja a frase de Simone de Beauvoir: "O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos". E eu penso, e respondo-lhe: quem, dentre nós, poderá jogar a primeira pedra? Quem, dentre nós, poderá dizer-se inocente do destino de todos os Marwans, de todas as Philomenas, todas as Hildas, todas as Rosas, todos os Chicos?


Imagem: Zaatari Camp, Jordânia. afp/getty images

Últimas notícias sobre o menino encontrado no seu peregrinar:
http://www.dailymail.co.uk/news/article-2562183/The-truth-heartbreaking-photograph-Syrian-boy-cross-border-separated-family-desert.html?ico=worldnews%5Eheadlines

Sobre o campo de Zaatari:
http://en.wikipedia.org/wiki/Zaatari_refugee_camp

Sobre Philomena, a pessoa
http://www.theguardian.com/film/2014/feb/05/pope-francis-philomena-lee-steve-coogan

14/02/2014

Com as estrelas

Eu, como várias outras dezenas de mortais, leio meu horóscopo todos os dias. Na maioria deles, o que o pequeno parágrafo faz por mim é oferecer-me uma nova luz que ilumine um detalhe ensombrecido do meu dia, ou da minha vida. Parece-me que o fato de se olhar com tamanho grau de atenção, minúcia e detalhe para um ponto luminoso no céu, e para seu encontro com outros, concede qualidades raras e importantes. E é isso que fazem astrônomos e astrólogos, figuras que aliás em sua origem eram a mesma coisa. 

Babilônicos e egípcios observavam o céu com uma sistemática absoluta, o que os fez perceber a influência que tem o movimento dos astros sobre a terra, inclusive sobre as internalidades dos seres bípedes que lá vivem, que no caso somos nós. Estrelas são coisas que brilham, e a sua observação faz outras coisas brilharem também. Por isso gosto de ler meu horóscopo: porque parte de uma região do universo em que as coisas brilham. Sweid, a raiz indo-europeia de estrela, significa isso mesmo: brilhar. Ao longo do tempo, sweid deu à luz sidus-sideris, a maneira sonora como os latinos falavam das estruturas brilhantes sobre suas cabeças. De forma entranhada, o sidério amalgamou-se a outros lugares da nossa vida, de tal forma que nem o percebemos mais. E por não saber que está ali, deixamos que passe batido.

É o que acontece com a palavra considerar. Deriva, como se percebe logo, de sidério. Portanto, da observação dos pontos luminosos. Na sua origem, considerare significava consultar em seu conjunto a posição dos astros, para comparar com algum fato acontecido ou vaticinar algum a acontecer, o que corrobora aquela teoria de que astrônomos e astrólogos tenham desenvolvido, ao longo de gerações de observação atenta, a possibilidade de encontrar relações entre os corpos celestes e as nossas vidas. Para nós, nos dias de hoje e de forma comum, considerar é observar algo atentamente: é levar algo em conta, dar atenção, pesar, examinar, apreciar, meditar em.

Ou seja: quando se considera algo ou alguém é porque se lhe presta atenção: observa-se fato ou indivíduo com a mesma sistemática e o mesmo grau de concentração que um astrônomo dedica a uma supernova. Por considerar-se, passa-se a saber mais do seu movimento particular, das partículas que emite, daquilo que lhe provoca nebulosidade e desconforto e das condições que fazem com que brilhe com mais intensidade. Considerar demanda dedicação e tempo, vontade e ação, curiosidade e interesse: sem o olho que encosta na luneta e se detém naquilo que a princípio parece distante e incompreensível, não há como saber nada sobre nada.

Levar alguém em consideração é carregá-lo dentro de si com esse grau de atenção. Desconsiderar é esquecer. Desconsiderar é deixar de prestar atenção. Desconsiderar é fechar a cúpula do observatório particular porque a vida às vezes incomoda, porque se ficou cansado. As estrelas, pensamos, amanhã continuarão no céu. E vamos dormir o sono dos justos. Mas as estrelas morrem longe de nós, embora o seu brilho demore muitos, muitos anos para apagar-se do nosso próprio céu. Só o olhar atento, cuidadoso, amoroso, o olhar tão gentil quanto o toque de um indicador sobre a pele virgem de um recém nascido, saberá dizer se o brilho que vemos no céu é de uma estrela que ainda vive, ou de uma estrela que já se tornou poeira cósmica, e da qual perdemos o tempo, o brilho, a entrega e a vida. 

Por isso, penso eu com meu horóscopo de hoje, quem tem tempo a perder, que o perca. Quando nasce em meu céu uma estrela, faço o que devo: dedico-lhe o olhar amoroso do astrônomo, dedico-lhe tempo e cuidado, pensamento e ação. E aguardo o tempo dessa nova luz cruzar seu olhar comigo, e desse encontro brilhante nascer algo a que podemos chamar o que quisermos, porque pertence a nós dois, e a ninguém mais diz respeito. E quando o tempo for passado, que o cosmos nos absorva.


Imagem: aquarelogravura de Ivani Ranieri

12/02/2014

Sensações, Sentimentos e Disposições

Dizem que no tempo em que o mundo se formava, existiam no universo três qualidades distintas: as Sensações, os Sentimentos e as Disposições.

As Sensações situavam-se à superfície da pele dos seres: delas derivam, em nós, a sensação de frio ou calor, de lisura ou aspereza, de delicadeza ou brutalidade. Naquele tempo longínquo, as Sensações respiravam livremente, sem os constrangimentos e as dificuldades que nós, seres humanos, trouxemos para a parcela de universo que nos foi reservada.

Os Sentimentos situavam-se poucos centímetros abaixo da pele dos seres. Talvez seja importante saber que a pele, nos seres dos tempos antigos, era a sua mais poderosa força, seu órgão mais sensível, mais perceptível e completo. Por isso, e não por outros motivos, as qualidades dos seres podiam ser observadas e sentidas através da pele. Coisa que nós, seres de hoje, também conseguimos, mas logo calamos em nós essas percepções tão profundas, porque a Obrigação, a Responsabilidade e a Culpa são qualidades que sobrepusemos aos Sentimentos.

Os Sentimentos, assim, viviam logo sob a pele, reino das Sensações. Nutriam-se daquilo que atravessava a então lisa e flexível membrana, recebiam as emanações das Sensações, e irradiavam-nas em forma de luz e algo que entretanto perdeu o nome, por todas as partes de dentro dos seres. Eram alimento da mais pura qualidade, e rebrilhavam na pele em seu caminho de volta. Aquilo que os olhos deixam transbordar são derivações atuais da qualidade Sentimentos. E por isso, quando o Poeta disse, "Esse seu olhar/quando encontra o meu/fala de umas coisas/que eu não posso acreditar", está realmente acessando essa memória ancestral daquilo que foram os Sentimentos na origem dos seres.

As Disposições vivem em regiões mais profundas. São, sabemos pelos antigos escritos, Sensações e Sentimentos transmutados. Tendem a ser mais lentas, mais firmes, menos abertas, mais silenciosas, talvez menos alegres. Se fosse preciso comparar, poder-se-ia dizer que as Sensações são as mais voláteis, os Sentimentos os mais plásticos e as Disposições as mais persistentes.

As Disposições gostam particularmente de tudo o que já foi esgotado e dissolvido. Desse fim a que tudo chega, resgatam a vida que a tudo subjaz. Observam-na, reviram-na, deglutem-na, amalgamam-na a sua própria matéria, e fazem-na reviver. Queimam como fênix. São os brotos nos campos requeimados. Resgatam do grande caldo amornecido que as Sensações e os Sentimentos produzem, as partículas de pura luz. Às vezes, são infinitamente pequenas, mas não importa, porque em sua evolução as Disposições aprenderam a sobreviver de quase nada. Dentro delas, quase nada é um mundo que não termina.

E as Disposições alegram-se, porque a sua tarefa é a transcendência da morte, e só elas sabem que por trás de tudo está tudo o que há. As Disposições são camaleônicas: tingem-se, vestem-se, despem-se. Reviram todos os seus avessos e ressurgem da maneira que for precisa. Só as Disposições não desistem. E só as Disposições reconhecem a mão do destino. Tem razão aquele que diz delas serem concretas: são pura concretude num mundo que tende à dissolução dos seres.




Lemniscata de luz, símbolo do amor infinito, 

06/02/2014

Insular, verbo feminino




Há palavras que dá gosto fazer passear por dentro da boca. Repare nesta, uma das minhas preferidas. Tão grande que precisa de um parágrafo só para ela.

Insular.

Gosto de pensá-la verbo, e de pensá-la em ação dentro da minha vida. Insulam-se as coisas à minha volta, agora que escrevo. Insulam-se os meus pensamentos: rodeio-os dessa substância chamada Palavra que, além de alimento, é aquilo que não me trai. Insulam-se os meus dias, e torno-me ilha.

Paro um instante, antes de prosseguir, para dizer a palavra em voz alta. Insular: sai-me por entre os dentes, sibilante como um braço de água virgem. Demoro-me nas vogais, para que o vento dessa água possa transportar-se para dentro das palavras escritas. Tenho cada vez mais a impressão de que as palavras nascem de dentro do vento. Tenho um amigo que ouve vozes-vento. Eu insulo vozes nascidas no vento.

As ilhas não são apenas palavras de género feminino: as ilhas são seres femininos. Veem-se ao longe antes de serem tidas de perto. Um assombro, estar-se embarcado durante dias e de repente, em meio ao espelho azul que é o mar, ver surgir a Ilha como que num encantamento. Todo mar é masculino, assim como toda ilha é feminina. 

As ilhas permanecem em meio a vagas e serenos, mares de todos os tipos lambem as suas praias, nuvens de espuma marítima alçam-se na direção dos penhascos mais altos das suas encostas. Nelas, abrem-se grutas secretas, onde só os primeiros olhos conseguem chegar e ver. Há ilhas lisas e calmas: toda a sua extensão se desdobra diante dos olhos sem cautela alguma. Há ilhas escarpadas, arredias, como cervos assustados ao ouvirem o tiro distante. Há ilhas que se dobram sobre si mesmas, reinventam-se a cada estação para não sucumbirem.

E há ilhas que se reconstroem, após a invasão das ondas. Choram as suas dores internas em lugares que ser algum conhece. Curam-se em silêncios de grito engolido. Há ilhas tenazes, persistentes, teimosas. O mar cobre-as inteiramente, quase parecem desaparecer. Mas os mares sempre, sempre refluem, mais dia menos dia. Vão-se em busca do seu tamanho, conscientes da ferida que é a sua natureza aquática. As ilhas reaparecem no lugar onde sempre estiveram. São novas, e são as mesmas.

Há ilhas cheias de remansos e lugares bons para os homens aportarem nas embarcações que usam como cavalos do mar. Baías e enseadas protegidas, o sol a pino a secar os corpos que nadam através das águas salgadas, do barco à praia. Estas são as ilhas lugares de acolhimento. Abrem-se sem conhecerem o que é o pudor. Permitem a entrada àquele que deseja entrar. As suas árvores, os seus arbustos, ainda que precisem de facas que os deitem ao chão, não sabem opor resistência que os homens não possam vencer. E por isso as ilhas são às vezes tomadas, às vezes saqueadas, às vezes roubadas, às vezes invadidas, às vezes magoadas.

Mas há um território inconquistável em cada ilha. A esse território, ninguém subjuga, permanece escondido e protegido e inviolável. Está por baixo dela, na escuridão do mar, espaço único onde ilha e mar são coisa única e se misturam e convivem como se fossem cada um sozinho o mesmo lugar do outro.

Gosto de pensar nesse lado de baixo das ilhas, braços de rocha a estenderem-se numerosos até o fim absoluto da terra. Imaginá-lo cheio de reentrâncias, por onde a água do mar caminha com delicadeza e suavidade, os dedos cuidadosos estendidos na direção dos lugares mais vulneráveis, e proibidos, e sensíveis. Pode haver tempestades à tona d'água: nesse lugar do embaixo, a vida corre em outro tempo, em outro mundo, de outras formas. 

Talvez seja esse o lado mais feminino da ilha: um lado que não é lado mas absoluto todo, um lado iridiscente, a luz própria de toda ilha a iluminar o mundo sem luz do fundo do mar. E o mar, então, azula-se em tons nunca vistos, um passeio do negro mais escuro aos cerúleos, aos cianos, aos marinhos, aos cobaltos, aos cárdeos, aos safiras mais faiscantes. Surgem seres vermelhos, pequenos camarões de grandes olhos, que sorriem para esse mar transfigurado. 

A ilha revela as cores do mar. Amalgama-se às suas pernas, ao seu tronco, a cada uma das partes sem nome que o mar não nos diz ter, para que achemos que ele é apenas uma massa compacta de água, e sal. Mas não: o mar, quando descoberto dentro da luz do lado escuro da ilha, cresce em tamanho e poder, e é verdadeiramente o mar que nasceu para ser. À ilha, basta-lhe insular.


Publicado originalmente em

30/01/2014

As mil palavras

Foi Confúcio quem disse, 470 anos antes de Cristo nascer, que uma imagem vale por mil palavras. Não consigo, em lugar algum, encontrar o contexto em que ele chegou a essa conclusão. Talvez quisesse alertar seus discípulos do silêncio que deveriam manter ao observar uma imagem, para que as suas mil palavras não atrapalhassem as do colega ao lado. Ou talvez o mestre chinês discorresse num dia ensolarado sobre a volatilidade da palavra falada, e da necessidade da sua contraparte-ação se tornar visível - algo assim como "promessas, só quando fatos". Ou talvez nada disso, e apenas seus olhos estivessem em contemplação profunda do entardecer de sua janela, e ele não conseguisse encontrar palavras que descrevessem o que via.

O fato é que essas suas palavras atravessaram os quilômetros e os séculos que nos separam da China e do ano 470. Estão aqui, vibrando diante de duas imagens que vejo, veiculadas no facebook. Fiquei tentando perceber que conjuntos de mais de mil palavras poderiam elas representar para quem as observasse.

Dentre todas as mil palavras pelas quais pode (ou não) valer a imagem aí ao lado, o recorte está estabelecido na diferença que existe entre o mundo emocional do homem e da mulher. O que só contribui para aprofundar o abismo sexista entre todos nós, superficializando o nosso entendimento sobre o masculino e o feminino. Concluí que, das duas, uma: ou o machismo nosso de todo dia é realmente implacável e impede o mundo masculino de sentir o seu ao-redor e o seu em-dentro, ou o mundo feminino tem a capacidade de integrar, em 24 horas, 18 vezes mais emoções do que o mundo masculino. A maioria dos comentários à imagem, no entanto (as tais mais de mil palavras pelas que a imagem deve valer) reportam o entendimento de que as mulheres são instáveis, complicadas e exageradas, e que os homens, em comparação, são poços de equilíbrio e equanimidade. Embora ambos coincidam no fim: dormem. Todos nos rimos, e vamos em frente. E a imagem fica, porque, já sabemos, vale mais do que mil palavras. Só que as palavras, os fotógrafos que me desculpem, são o reino do humano, e não só valem quanto pesam, mas ficam.

Porém, a imagem que mais me suscitou incômodos foi essa à sua esquerda. Que vale, realmente, por mais de mil palavras, que deveriam levar-nos à constatação do grau descivilizatório a que chegamos, nessa precoce, abusiva e incensada alcoolização de nós mesmos. Os comentários-mais-de-mil-palavras sobre a imagem riem-se, e tornam a rir-se. Não sei se de constrangimento ou iniquidade: os rsrsrs e os kkkk são dúbios demais para saber, mas eu fico-me com a impressão da inconsciência meio boçal pairando leve, solta e lisa.

No meio desses comentários, um chama a minha atenção: "Deve ser pros professores chegarem no 'grau', pra suportarem o 'rojão' que os espera!!!".

Com as aulas começadas esta semana, fico me perguntando qual o desastre maior. Se a imagem, se as palavras. Vejo os novos professores dos meus filhos, e nenhum deles me parece precisar "chegar em grau" algum, porque consigo reconhecer o brilho do entusiasmo de um ano que começa. Mesmo com as previsões mais terríveis e catastróficas que queiram fazer-se, ser professor é adquirir o "grau" no exercício da sua paixão, que é estar em sala de aula com as pequenas e grandes pessoas com quem irão conviver pelo menos ao longo de um ano. Com todos os desafios que isso comporta, e ainda bem, que sem desafios ninguém se torna o que vai se tornar. Vejo os funcionários das escolas, e a dedicação no abrilhantar, no limpar e no organizar os espaços, para que acolham e recebam essas pessoas especiais que vão ser a sua convivência diária. Vejo os novos colegas dos meus filhos, e o que sobressai é o brilho do reencontro com os amigos e a expectativa do que o ano reservará. Nenhum rojão, a não ser de festa por mais um ano começado.

O preconceito múltiplo dessas menos-de-mil-palavras atinge-nos como professores, como alunos, como pais, como educadores, mas principalmente como seres humanos. Ainda assim, e apesar disso, continuamos na efervescência volátil e aparentemente inócua dos rsrsrsrs e dos kkkkk. O que equivale a abdicar dessa capacidade nossa chamada pensar, e a forçar-nos a entrada num universo de falência dos valores que tanto queremos prezar, da solidariedade à inteireza, da honestidade ao respeito, da lisura à inteligência. 

Salve Confúcio, salve o novo ano, e salve todas as escolas que temos ao redor e dentro. E salve Millor Fernandes também, que completou o mestre acrescentando: vá dizer isso com uma imagem. 

28/01/2014

Alheiras, Miranda do Douro e Oxóssi

Se há uma coisa que me espanta, é a maneira como as ideias se espalham e se reencontram no exercício do pensar. Agora à noite, um instante antes de tentar adormecer, pensei que escrever sobre alguma coisa haveria de fazer-me bem. Para aquietar o coração. Pus-me, por isso, a pensar em qualquer coisa que quisesse insinuar-se. A ideia de precisar escrever tornou-se imperiosa, e logo percebi que, sem escrever, não conseguiria mesmo dormir. Era de se esperar.

Mudei de lugar. Fui àquele onde a inspiração se tem notado mais presente nos últimos dias. Ando com a ideia de que a inspiração é também um fator regido pelas microgeografias de uma casa. E vem-me, sem querer, a imagem de um arco e uma flecha. Lembro-me da imagem aí ao lado, guardada há tanto tempo e à espera de ser precisa. É hoje que a uso: penso no orixá que se acabou de comemorar dia 20. Dia de Oxóssi. É ele que se aproxima quando se pinta, se escreve, se modela, se borda, se tece, se esculpe, se dança, se canta, se toca. Onde há arte, há a mão, o arco e a flecha de Oxóssi, qualidade divina da sustentação da vida. Oxóssi é o caçador arquetípico, aquele que se celebra ao redor da mesa, é a alegria, a independência. Expande-se e fortalece-se nas matas, nos ambientes virgens onde pode avançar sem constrangimentos. Os animais e as plantas são parte do seu ser, e neles a sua qualidade se reanima. Oxóssi aproxima-se de mim, invariavelmente, sob a luz de um novo aspecto do que já conheço. A partir da sua presença em mim, adquiro a capacidade de olhar com novos olhos esse terreno que se revirginou, e ressignificar a vida à minha volta. A flecha rápida e certeira de seu arco atinge-me a meio do corpo.

Essa nossa capacidade humana de ressignificar a vida é uma forma de encantamento. Ressignificamos sofrimentos e mágoas amparados na premissa de que tudo necessita transformar-se. E mesmo que muitas vezes esperemos a transformação do outro, os nossos passos fazem-nos inexoravelmente transformar a nós mesmos. Esse movimento de transformação aproxima Iansã de Oxóssi. E a alegria de Oxóssi alegra-se mais no encontro com a força direcionadora de Iansã - toda essa força criadora encontra no vento e nas tempestades de Iansã o lugar de seu direcionamento. É de se aproveitar.

Nessa minha intenção de observar os caminhos do meu pensamento sem interferir muito neles, nem sei bem como, de Oxóssi, cheguei às alheiras. Tá certo que um amigo querido publicou na internet uma fotografia saborosa de uma dupla de alheiras na brasa. Mas há algo mais.

Esse algo mais é justamente a capacidade ressignificadora. Alheiras são um tipo de enchido comum em Portugal. Parece-se com o chouriço português (que é mais uma linguiça do que um chouriço feito de sangue, lá em Portugal aliás chamado morcela), mas não é. A marca da sua nascença foi querer-se parecido com o parente. Ressignificou-se o alimento para que um povo pudesse permanecer vivo.

Da seguinte forma. Nos tempos em que os judeus precisavam converter-se ao cristianismo, uma das formas de conferir a verdade dessa conversão era aferir a existência ou não de chouriços nos fumeiros das casas dessas pessoas. Já se sabe que judeus não comem carne de porco, e que chouriços são feitos de carne de porco. Portanto, difícil um judeu comer um chouriço. E porque a fé de um povo não se remove por decreto, foi preciso ressignificar o dia a dia. Em algum momento, alguém teve a ideia de produzir um enchido que pudesse pendurar-se no fumeiro e que pudesse ser comido por quem não comia carne de porco. Nascia a alheira: um chouriço que não era chouriço, feito de carnes de frango, ou peru, ou codorna ou perdiz ou o que se encontrasse e não fosse ser chafurdante na lama. Estamos ao norte de Portugal, e muito especialmente numa região resistente, de onde brotou não só a alheira, mas também uma cidade chamada Miranda do Douro, berço da segunda língua oficial portuguesa.

(Aproveite para ressignificar o seu conceito sobre a Lusitânia: duvido, e muito, que você soubesse da existência de uma segunda língua oficial nesse país que tem menos habitantes que a cidade de São Paulo!)

Para ressignificarem a vida, e ressignificarem a sua relação com esse mundo-cão que tudo engole, os 15.000 falantes de mirandês realizaram uma série de proezas oficiais. Entre elas, a publicação de dois livros de Astérix em mirandês: uma espécie de afirmação contundente do caráter revolucionário de resistência desse pequeno grupo. Uma pequena ilha em meio à barbárie europeia. 

Existe também uma wikipedia em mirandês, a Biquipédia: http://mwl.wikipedia.org/wiki/P%C3%A1igina_Percipal, e existem placas bilingues por toda a cidade de Miranda. 

Quer um exemplo de mirandês? Segue um, mas com o aviso de que vale a pena surfar um pouco pela net e descobrir a quantidade de sites nessa língua. 

Durante ls seclos XV i XVI, Pertual fui ua poténcia mundial eiquenómica, social i cultural, custituindo-se l purmeiro i l mais duradouro ampério quelonial de amplitude global. Zde la cunquista de Ceuta an 1415 até a la cessaçon de la admenistraçon de Macau, an 1999. 

Sabendo-se que Pertual significa Portugal, não será difícil entender o que está escrito. E é lá, nessa região mirandesa, que nascem as tais alheiras, as mesmas que o amigo Claret celebra na sua publicação. De uma tacada só, ressignifica-se a língua que falamos, a comida que comemos, a história que sabemos e a vida que vivemos. 

Encerrar este dia cheio de demandas com tanta ressignificação faz-me olhar para a noite que se apresenta com outros olhos, e, mais além, o dia de amanhã, com outros também renovados olhos. E meu último pensamento do dia assume a forma  a força de um desejo: que, a cada dia, a energia irresistível do vento da mudança nos atinja, permitindo que ressignifiquemos eternamente a nossa permanência amorosa uns junto aos outros.

26/01/2014

Do México à Cantareira

Hoje, acordo na Mooca: como deixar passar em brancas nuvens os 460 anos da cidade de São Paulo? Primeiro, de véspera e em boa e especialíssima companhia, jantou-se um caprichado nachos y queso y chili. Preparação para a festa. Hoje, almoça-se um temperado falafel no Mercado da Cantareira. Tudo junto e misturado a esse calor insano a sol pleno. Fosse o Rei, diria quantas inumeráveis emoções.

De tudo um pouco, e quase sem se perceber. Tem pernambucano guardador de carros observando de dentro da sua camisa o povo que vai, o povo que vem. Abre-me uma vaga que vai logo logo estar na sombra. "Bem vestido porque é dia de aniversário", diz ele em seu sorriso de poucos dentes, quando lhe pergunto se não está assando de tanto calor dentro da camisa escura de manga comprida, abotoada até o pescoço. Os olhos miúdos quase se escondem por trás da pele curtida e grossa de anos de labuta sem fim nessa selva tão de pedra quanto o sertão. Tem dois argentinos parados na frente do Mercado, querendo saber de museus, e tem a Cida, maquiadora de Jundiaí, que decidiu mostrar-lhes São Paulo. Vem me perguntar se sei onde que tem museu: diz ela que tenho cara de quem gosta de arte, e ela quer agradar os novos amigos que fez no metrô com isso mesmo, arte. Gosto, digo-lhe, até quando não devo. E ela ri. Bonita vitrine do seu trabalho, elogio-lhe a maquiagem caprichada. A artista, afinal, é ela. E ela ri, agora sem jeito, piscando os olhos de cílios compridos.

Passeio pelo povo que dança ouvindo os Demônios da Garoa. A mais paulistana música no mais paulistano dos mercados. Vem a homenagem ao Wando, que gravou com eles. E o povo aplaude. Vem a homenagem ao Herbert Vianna, que gravou com eles. E o povo aplaude. E qualquer coisa que tocassem o povo aplaudiria, e riria, e dançaria pra cá e pra lá numa felicidade só, porque logo, não demora, virá o Trem das Onze tocando todo mundo embora. Tem a Sandra, ao meu lado, que não sossega, e só diz querer mesmo é um bebedouro, pra poder refrescar esse suor todo de tanto sambar. E ri. Aponta para o casal à nossa frente que dança desconjuntado: "aposta quanto que são gringos?". E ri. E ri de novo. Mesmo sorriso largo da senhora mulata mais adiante, sambando agarradinho a um sujeito tatuado que olha pra ela apaixonado, como se nada houvesse em volta dos dois. E quando seus olhos cruzam os meus, ela descobre-me uma fiada de dentes grandes desencontrados, cada um mais radiante que o outro nessa boca que logo corre pra beijar o parceiro. Todo mundo ri, e eu rio de volta, nessa cidade de concreto cheia de recantos de humanidade: parecemos todos velhos amigos que na saída marcarão encontro amanhã, mesmo horário, mesmo lugar, despedidas efusivas de quem conseguiu criar, contra qualquer expectativa, um minuto eterno de alegria feliz.

Percorro com o pensamento vestido de memória o dia preenchido nessa cidade estranha, onde me sinto tão em casa. Vejo as todas cores e as todas coisas, as ruas e as avenidas cortadas de um lado ao outro, um zootrópio inesperado ensinando cinema de animação, piscinas de sesc lotadas com corpos cada vez mais redondos, banheiros públicos encharcados de gente que quis ir pra rua nesse feriado tão mas tão paulistano: todas as lojas abertas, uma 25 de março que esqueceram de avisar pra fechar, sacolas de todos os dias mesmo em dia feriado. A cidade que não pára entra no seu 461º ano de vida fazendo juz à fama que tem. Só rindo, e voltando pra casa sem sentir os quilômetros espaçosos que passam por baixo do carro.

Foto: a Mooca, por Ilundi