24/01/2014

Nós, os seres cordiais

Descubro, agorinha cedo, que uma amiga querida está internada, lá do outro lado do mar. Sente-se sozinha, claro, passará o fim de semana ali mesmo, entre quatro paredes brancas, mas ainda assim me diz: "Ah, mas eu até prefiro ficar aqui, sou bem cuidada, não preciso cozinhar e as pessoas, no hospital, vêm me visitar. Semana que vem, em casa, vai ser bem diferente".

Da vontade que me deu de nadar todas essas milhas náuticas que nos separam para estar à porta da casa dela na segunda, e impedi-la de cozinhar e de ficar sozinha, fui-me rápida ao Sérgio Buarque de Hollanda. Ao seu cordial homem brasileiro. Aquele que age e reage pelo coração, passional, avesso a toda convenção ou formalismo social. A minha reação interna acho que nasce dessa cordialidade que transplantei lá das terras lusitanas para estas brasileiras, e que só fez crescer, regada e adubada prolixamente.

Exemplos há por todo lado, dessa cordialidade que nada tem de bondade, concórdia ou subserviência, como bem nos esclarece Buarque de Hollanda. O ser cordial não é bonzinho, não aperta as mãos de ninguém se a vontade é de esmurrar. O ser cordial esmurra quando seu coração diz esmurra. E beija quando o coração diz beija. E ama quando o coração diz ama. E odeia quando... e assim vai. Minha amiga, se aqui estivesse doente, internada ou não internada, seria visitada. Com arroubos efusivos de preocupação e desejos transformados em bombons e flores, teria a sua casa invadida por amigos e nem tanto, uma mão cheia de seres cordiais, com o coração batendo inflamado do lado de fora da pele. Poderia durar alguns dias. Ou mais. Ou nem tanto. Não se sabe, porque o coração tem razões que a razão desconhece, e assim fica difícil saber qual será a reação do próximo momento. Lá, de certa forma e pelo menos, ela tem a certeza de que ficará sozinha. Não serve de alento, minha amiga querida, mas serve para se ocupar filosofando - coisa que, já disse Caetano, parece fazer-se melhor nessa língua que você fala aí do que em outra. Sabe-se mais com o que se pode contar, porque a ação do outro está mais regida pela razão e menos pelo sentimento, e por isso oscila e se entrega menos. Há vantagens nisso, embora a minha cordialidade tenda ao querer esmurrar ao pensar assim.

Entre as vantagens, o próprio pensar. A dissecação do sentimento pela fria lente do pensar. A transformação do sentimento desordenado em sequência ordenada através da palavra. Seja escrita, seja falada: que a palavra possa nos salvar dos solavancos das relações abertas pelo tumulto do sentir cordial. Essa tranquilidade fria que emana dos seres que pensam, ainda que eles mesmos se digam atormentados pelo fluxo de pensamentos que precisam organizar: é o descordializar. 

Essas coisas que nascem do coração pertencem, diz Buarque de Hollanda, à esfera do íntimo, do familiar, do privado. O que me faz pensar no tanto que as redes sociais, esses lugares onde o público e o privado se misturam e confundem promíscuos, fazem sucesso entre nós, seres cordiais, e nos tomam horas e neurônios e sobretudo células coronárias: afundamos e emergimos de estados ora melancólicos, ora eufóricos a partir de indícios da importância que temos na vida dos outros: curtiu? não curtiu? comentou? não comentou? Uma gangorra de cordialidades mil, dificultando que pensemos na nossa própria e humana capacidade disso mesmo: pensar.

Salve o hospital com suas visitas, e salve a semana que vem sem presenças: que a vida, a todo momento, seja plena e cheia de tudo o que faz com que o coração fique onde o queria o Mestre: ao alto.


O Chico, filho do Sérgio, fala sobre o homem cordial aqui:
http://www.youtube.com/watch?v=xAVRGvoy2Sk

Foto de Clara Rocha - obrigada!

21/01/2014

O espaço brilhante

Decidi oferecer-me uma aula de fisiologia das membranas celulares. Porque às vezes é tão difícil entender o mundo de fora que o melhor é olhar para dentro. E como eu quero chegar às menores partes, aventuro-me por elas, as células. E porque pessoas, a seu modo, são como células. 

Há células, como há pessoas, que possuem paredes celulares. Nem todas, veja bem. Entenda-se por parede algo rígido, construído e assentado, o que nos dificulta aqueles dias em que células e pessoas desejam mudar de forma. Desconstruir paredes é trabalho árduo, e nem sempre vale a pena. Valendo ou não, meus olhos querem ver mais, e avançam para a próxima camada...

...que é um envoltório menos denso, mas que efetivamente dá suporte físico à célula. Imprescindível, tanto que todas as células a têm - e, assim, todas as pessoas também. Poderíamos dizer que é a pele, mas meus olhos estão voltados para outros lados. Não é a pele do corpo que me interessa, mas a da alma. Esse envoltório funciona como proteção contra agentes infecciosos. Indispensável, porque em todo lugar existem agentes que desestruturam, que inflamam, que adoecem. Há pessoas cujo envoltório é espesso demais, e veem perigo em todo canto, e há pessoas com esse manto tão diáfano que faz com que se envolvam onde não devem quase que todo dia. É um indício da necessidade de equilíbrio, única condição para que não se veja perigo e ofensa onde ela não existe.

Próxima camada. A que mais me interessa: a membrana plasmática. Quem consegue chegar à membrana plasmática do outro, conseguiu já atravessar uma ou duas grandes camadas de separação. Às vezes, esquecemo-nos disso. Chegamos a ela sem perceber que antes já fomos aceites como seres não infectantes, e já atravessamos paredes que mantêm o outro de pé. Ainda que imóvel, mas de pé. E já se sabe que a condição humana é a condição de estar de pé. Uma felicidade, chegar à membrana plasmática.

A membrana plasmática permite-nos duas coisas: proteção e seleção. Mais uma camada dessa paranoia biológica chamada proteção. Garante que o núcleo e todas as demais estruturas e órgãos vivam uma vida calma. Sem sustos nem sobressaltos. O que raramente acontece, mas enfim. E carrega em si ainda o poder de selecionar o que entra e o que sai. E como raios fazem as células para selecionar o que deve entrar e excluir o que deve sair?

Ora bem. Fazem uso de quatro recursos que, olhando bem, nós pessoas também fazemos.

Podemos desenvolver em nós a capacidade de absorver o que está ao nosso redor, como esses outros que vivem ao nosso redor. Discriminando mais ou menos, interferimos nessa capacidade. Ou aumenta, ou diminui, e são as microvilosidades que fazem esse trabalho. Absorvendo mais do que menos, permitimos um contato maior.

Desejando um contato maior, podemos também fazer crescer em nós reentrâncias e saliências, pequenos apoios para que as células, perdão pessoas, que estão em volta, consigam melhor do que pior fixar-se em nós, e assim podermos observar-nos melhor uns aos outros. Mais de perto. Com mais tempo e proximidade. O que leva, claro, à intimidade. As interdigitações (veja: dedos!) são nossas aliadas nessa criação de encontro - são elas essas reentrâncias e saliências que nos permitem enxergar o outro e dar-nos a enxergar.

A intimidade, e o encontro, geram fluidos. E da consistência, da fluidez e da existência de movimento nesses fluidos encarregam-se os cílios e os flagelos. Às vezes, é capaz que doa. Cílios e flagelos às vezes provocam dores. Porque o movimento gera dor, e desconforto, e é preciso passar por ele - no sentido de atravessá-lo e sair do outro lado. Esse outro lado, é essa consistência fluida e terna de elementos, que a intimidade gerou e a nossa disposição aberta alicerçou. Através de cílios e flagelos nasce uma nova estrutura, fantástica, revolucionária, curadora. Os plasmodesmos.

Que merecem um parágrafo só deles.

De repente, eis que essas membranas, perdão pessoas, de tão próximas e em contato, tão em conexão fluídica, promovem um pequeno milagre: as suas membranas, subitamente, se interrompem. Abrem-se espaços em tudo aquilo que mantém o um separado do outro. Acontece nas duas células/pessoas, e imagino que, se não ao mesmo tempo, em tempos muito muito próximos. E, como se abrem espaços, estabelecem-se pontes, porque o intuito de tudo isso era permitir que o que está em um permeie o outro e vice-versa. E ambos sejam mais porque se contêm. São as pontes protoplasmáticas. Esse momento em que os espaços se abrem, essas pontes se criam e as células, assim como as pessoas, têm livre trânsito umas por dentro das outras.

E aí tudo pode inflamar-se, porque há segurança. Tudo pode procurar-se, porque há encontro. Muito melhor do que quando, como células, nos fechamos ao mundo oferecido e nos voltamos para nossos buracos negros, para esses lados escuros da lua que escolhemos, porque não olhamos de frente e de olhos abertos, e não vemos a luz que vinha na nossa direção. 

Às paredes, galgá-las. Às membranas, atravessá-las. Às pontes, caminhá-las. E que juntos possamos ser mais do que menos.

09/01/2014

Liturgia das horas 2

Lia eu outro dia, num artigo sobre não sei bem o que, que o fotógrafo que não sai às ruas não tem assunto sobre o que fotografar. Acho que o mesmo, muitas vezes, se aplica à escrita. Depende do dia, porque depende da disposição interna, mas há dias em que os olhos estão mais abertos para as coisas que não se veem. Esses dias são a glória, e andar pelas ruas formigadas de gente do centro de São Paulo é quase uma dádiva. Hoje, foi um desses, regado a surpresas.

A liturgia das horas, que me acompanhou desde manhã e desde o post anterior, é a oração pública comunitária da igreja católica. Consiste numa série de orações para serem feitas ao longo do dia, um ritmo de oito momentos que Bento estabeleceu lá no século quinto da era cristã e se tornou um pilar na formação da cultura ocidental, ganhando o nome de "Regra de São Bento". Efetivamente, criou pausas estratégicas dentro da agitação mundana para que nos lembremos de que o mundo do espírito vive dentro da matéria. Assim sinto, ao menos: acho que não há nada mais espiritual do que a matéria encarnada, por dentro da qual e através da qual o espírito se fez tão presente que se tornou visível. As horas, e a sua passagem, parecem-me provas irrefutáveis.

Deve ter sido por isso que pouco antes do meio dia, muito mas muito por acaso, entrei na igreja do mosteiro de São Bento. A tempo do ofício da Hora Média: as doze horas, momento de agradecer a manhã que se teve, o almoço que logo chega e a tarde que antecederá a noite. Os monges vestidos de escuro contra o fundo também escuro da igreja, a penumbra e o suave canto gregoriano sobrepuseram-se à azáfama lá de fora. Silenciaram todas as perguntas. Fecharam os olhos. Diminuíram as batidas do coração. E eu deixei-me ficar, sem pensar em quase nada, até que as doze badaladas anunciaram o começo da tarde e me catapultaram de volta ao mundo mortal.

Foi bom ter tido a pausa de agradecer a manhã. Bom e mais do que apropriado, porque esta babilônia paulicéica que é São Paulo oferece motivos de agradecimento a cada esquina. É tanta variedade, tanta cor, tanto brilho, tanta diferença, tanta semelhança, tanto som, tanto movimento que seriam precisos oito pares de olhos para conseguir ver tudo. Como só tenho dois, dou testemunho da parcela do que vi.


Emerson é pernambucano, e por isso aguenta 7 horas seguidas de prestidigitação ao sol de rachar destes dias. É ele quem diz. E é cobra dentro da mochila, é ovo e pinto dentro do saco, é óculos que desaparece e reaparece na cabeça da moça bonita, é brincadeira com um, brincadeira com outro, malícia de um lado, ingenuidade de outro. A roda forma-se em torno desse homem ágil, alto, sorriso falhado. Um respiro em forma de roda no meio do mar de sacolas da 25 de março. Emerson pede um aplauso para Jesus Cristo, sem ele não somos nada, povo de deus!, e depois volta com a mesma brincadeira, misturando macumba com evangelismo e mágica com safadeza. A hora que pede uns trocados e se vira pra um dos lados com a sacolinha na mão, o outro lado desaparece no meio do povo. E Emerson ri, e diz "ê povo... se eu fosse precisar de vocês pra comer não tava aqui pegando sol! Eu quero é divertir vocês!". E logo aparece uma nota de cinco reais e ele corre pra pegar e graceja de novo: "ainda bem que tu não acreditou, negão!". Quando passa por mim, dou-lhe um punhado de moedas que tenho na bolsa e ele pisca um olho e diz: "menina, assim eu vou é ficar rico!. Eu pisco meio sem graça de volta, a roda inteira racha o bico, e eu não sei, mas vou embora com a impressão de que tenho um segredo guardado.

Victor é ator. E Tânia também. E a companhia que formaram faz tudo a mesma coisa: gente estátua parada nas esquinas. Victor é um anjo barroco, de sorriso beatífico que faz sorrir de volta. Dá vontade de ficar ali, sentadinha debaixo do guarda-sol dele, esperando a hora de subir pra casa, quer dizer, pro céu. 

Ponho uma moeda na caixinha, acho que já estou há tanto tempo ali, tirando fotos. Ele dá-me um papelzinho desses com mensagens genéricas sobre ser melhor e tranquilo na vida, esperar as agruras passarem e etc. Quando vai retirar o papel da caixinha, deixa um outro cair. Eu pego do chão e proponho-lhe uma troca com aquele que ele me estende. Ele sorri diferente e quase sem querer pisca-me um olho, aceitando a troca. Eu pisco-lhe outro de volta, e lá vou, certa agora de que tenho não um, mas dois segredos a mais na bagagem.

E Vanessa vende pedrarias. Entro na loja dela, 4º andar do prédio da esquina da Ladeira Porto Geral, indicação certeira do amigo Ivan. Espreito pela porta e só entro, mas só entro mesmo, por causa do sorriso que ela abre, uma boca cheia de dentes brancos que parecem doidos pra conversar. E vou perguntando, puxando assunto, tem cascalho de granada, tem conta de cristal, tem firma de vidro, tem conta de quartzo rosa, tem pedra disso, tem pedra daquilo... E ela vem atrás de mim, enquanto eu vou passando a mão pelas cestinhas de contas, um tilintar quase inaudível entre o céu e a algazarra lá de baixo. Vanessa vai me mostrando as coisas e de repente pára. Ah, eu vou te mostrar o que vale a pena mesmo. E lá de baixo tira umas caixinhas com outras contas, mais transparentes e mais brilhantes, mais pesadas e mais de verdade. Segredos. E eu sorrio e ela sorri, e ela pisca-me o olho e eu pisco de volta. No elevador pra descer solto uma gargalhada. Ninguém entende: eu tenho mais um segredo na bagagem.

Liturgia das horas I



 Meio dia no pátio do mosteiro, sol a pino. Joana, 22 anos, porta da igreja. Pede-me um trocado, digo-lhe que na saída. Sento-me ao lado dela, na calçada mãe de todos. Interrompe a conversa toda hora que alguém entra ou sai da igreja. 10 centavos moço 10 centavos moça. Só responde quem dá de cara com os meus olhos que hoje querem ver tudo. Enquanto estive ao seu lado, nem uma moeda. A maioria não olha. Na verdade, não vê. Joana faz parte da parcela invisível que alumbra as ruas da cidade. Joana quer voltar pra casa. Consegue 10 reais por dia. Quem mais dá são as mulheres, porque  têm mais coração que os homens. Mas ninguém olha, ela fala mais pra ela que pra mim ao seu lado. Joana quer juntar dinheiro pra voltar casa. São José dos Campos. Quero saber desde quando está em São Paulo. Na verdade, quero saber tantas coisas, tornadas tão inúteis nesses minutos fora do tempo perfeito das pessoas atarefadas. Dezoito anos. Levanto-me para comprar uma água. O rapaz da água grita sem parar: água pra hidratar, água pra hidratar, água pra hidratar, ajuda eu, moça, minha sogra mora mais eu. Trago duas garrafas e dou uma à Joana. Ela não sabe como agradecer, acho que ela nem sabe que existe agradecer. Fico me perguntando se alguém já terá lhe agradecido alguma coisa. Joana tem olhos claros, arredios até passarmos 10 minutos sentadas lado a lado. Cabelo curto mal cortado, dedos longos todos cortados, pés descalços da cor do asfalto. Ficamos em silêncio. Porque na realidade o silêncio diz-lhe mais, e a mim o silêncio corta-me menos. A mulher em frente, num balanço infinito, repete sem cessar "um emprego pelo amor de deus". Joana grita "tchau ana" quando já estou nas escadas do metrô. Viro-me e aceno. Ela faz um gesto de brinde com a garrafa de água já quase vazia - meus olhos enchem-se de lágrimas. É seu agradecimento sob o sol a pino. Grito-lhe de volta "se cuida, Joana". E o rapaz que desce ao meu lado me pergunta, já dentro do metrô: aquela lá é sua amiga? e eu respondo: sim, do peito. E fecho os olhos para que não me pergunte mais nada.


05/01/2014

As coisas simples

Alcaparras, limão e sal. Grelha e manteiga. O peixe, filés quase rosados. Ela gostava de coisas simples. Ele também. As coisas simples são as que permanecem. Comida simples que não se mascara, assumida na leveza direta de dois ou três sabores, uns dentro dos outros como pertencimentos e não encontros. Ela gostava de pertencimentos. De entradas e saídas sem precisar pensar em desocupação. As coisas simples e as coisas perfeitas. Comida inclusive.

Perdera a conta das vezes da receita. Mas lembrança não se gasta, ganha vida em baixo relevo na parede da memória. A parede da memória era a pele da sua vida. O órgão mais extenso. O de maior e inescapável memória.

Ele não soube. Não da pele, matéria virgem diante de si mesmo, mas das mãos na carícia dos limões antes de arrancá-los do pé; dos olhos entreabertos filtrando o verde das alcaparras contra-luz; dos dedos na lavagem escorregadia e fria dos filés, do deixá-los escorregar por entre os dedos e depois sossegá-los na tigela. Em cada ação, o pensamento tornado metáfora. Era ele, e não o mundo, no transcorrer do dia.

Ele não soube do tempo de repouso na mesa, dos minutos de rede no espiar das nuvens, a sua mesma pressa. Faltou-lhe saber do calor dos olhos no derretimento da manteiga. Da hora à porta. Do cabelo molhado a secar no sereno. Da lua, da noite. Dos braços apoiados na cerca primitiva de arame, o olhar nas estrelas em assombro espalhado. Do mundo todo preparado para recebê-lo, num compasso de antecipação. Podia ter sido um dia como tantos.

Mas não. Porque o tempo inaugura espaços próprios, diminui os vãos e alimenta o que circula abaixo da superfície do lugar comum da vida. E esse é o lugar tão pouco comum das coisas, ela pensou.

Isso foi momentos antes de se permitir o sonho. E amá-lo.



04/01/2014

Ouvido de passarinho

Pode até ser, pensando bem, que eu tenha ficado atenta demais a tudo o que afeta os ouvidos. E isso porque, ontem de manhã, fiz a lavagem de ouvidos mais fantástica e bem feita de toda a minha vida. Estou ouvindo até o que não me diz respeito. E pode ser que me meta onde também não me diz respeito, mas assim como não consigo tampar os ouvidos, também não consigo calar a boca (ou, no caso, os dedos).

Por exemplo, ontem, começo de noite. Show-tributo a Elis Regina. Cantora boa, repertório bacana, assistência entusiasmada. Nesse calor que varre o Brasil de norte a sul, todo mundo quer é rua, é fresco, é brisa, é vento. E lá vamos todos, uns atrás dos outros, à procura da alegria desse ano novo já de três dias velho.

Estranho ver, no meio de tanta gente animada, dançando, cantando, aplaudindo, assobiando, tantos bebês de colo. Criaturas pequenas, de olhos abertos e cabeças quase implumes, sobrevivendo ao mundo adulto dos microfones, das guitarras, das baterias. Fiquei pensando no quanto eles prefeririam a conversa dos passarinhos de hoje à tarde nos galhos da acerola.

Eu sei, com bastante profundidade e experiência, o quanto é difícil criar filhos. O quanto é difícil atender a todas as solicitações da vida, moderna ou nem tanto, as que inventamos e as que nos inventam. (E ainda as da nossa própria alma, essa que vai se tornando mais densa e consciente de si conforme os anos passam.) Como é difícil sentir-se fazendo parte da vida quando ela assume esse novo contorno, invariavelmente improgramável e imponderável, e que parece afastar-nos da vida tal qual os outros a vivem. As certezas, nessa hora, esfumam-se, ou alojam-se em lugares tão estranhos, viscosos e escuros que certamente nada mais têm a ver conosco. É o que sentimos, pelo menos.

E é então que se começam a construir novas certezas. Ou pontos de vista. E como não somos nós o centro desses pontos, mas eles, os filhos, as coisas assumem outras premências, às vezes com o aspecto feroz da luta da leoa para manter seu filhote a salvo. Não são bem certezas, mas convicções de que a vida pode ser melhor do que parece, e nossos filhos merecem-na, e merecem que façamos levitar a nossa pequenez para consegui-lo.

Por isso as pessoas querem ter seus filhos da forma que acham correta, seja ela qual for. Por isso querem uma escola que respeite este e aquele valor, este e aquele ponto de vista e de formação sobre o mundo. Por isso procuram a alimentação melhor e mais de acordo com o que percebem e querem da vida. Por isso fazem as escolhas que fazem.

A questão é mantê-las e sustentá-las, e não se deixar abater por dragão algum: nem o lugar comum, nem a mídia, nem o "bom senso", nem a família, tradição e propriedade, nem as nossas fraquezas. Não é fácil.

Às vezes, falta informação. Outras, a informação vem, mas é tão difícil assimilá-la dentro da vida que já se tem, que deixa-se ir, esquece-se em cima de uma prateleira alta, dentro do armário entulhado... Às vezes, o imediatismo da vida moderna, a satisfação das vontades a qualquer preço, ataca-nos pelas costas, e quase não conseguimos desviar E às vezes não desviamos mesmo.

Mas o mais difícil é quando nos esquecemos de que é preciso pensar: pensar na coerência que as nossas escolhas, atitudes e movimentos precisam e devem assumir nessa coisa nova e transcendental que é ter uma criatura tão minúscula sob nosso cuidado e responsabilidade. E de mais ninguém, que essas coisas parecem ser divisíveis com avós, tios e primos, mas é mera ilusão: são as suas escolhas que vão pra balança, as escolhas eventuais dos outros são só bolhas de sabão. Ninguém precisa dar-lhes continuidade.

Ora bem. Se, em hipótese, eu decido que quero que meu filho nasça num ambiente humanizado, em que as suas necessidades de silêncio e penumbra sejam respeitadas, em que o tempo que corra seja o tempo dele e não o do mundo, e por isso o cordão umbilical só seja cortado quando já não pulsar; se, em hipótese, eu decido que a escola que eu quero para meu filho precisa respeitar as fases de seu desenvolvimento, o que inclui a imensa atenção e cuidado ao seu desenvolvimento físico especialmente nos primeiros sete anos de vida; se, em hipótese, eu procuro dar-lhe uma alimentação pura, seis meses de amamentação exclusiva pra começar, e depois o mínimo de agrotóxicos e processos industriais; se essas são as minhas hipóteses e é delas que parto para ir em direção ao horizonte: é preciso que também as demais escolhas sejam feitas, com os olhos no mesmo querer.

Por isso esses bebês imersos nesse ruído não podem ter espaço. A formação das suas capacidades auditivas em pleno processo de maturação torna-os permeáveis, a esses bebês, não só pelos ouvidos, mas pelo ar que os cerca como um todo. Ouvem com a pele, com os órgãos, com a água que forma 75% do seu corpo - e a pele, os órgãos e a água são plasmados pelo ambiente que lhes propiciamos.

Ao longo dos primeiros três anos (sobretudo) oferecemos às crianças a base rítmica para toda a sua vida. Sono e vigília, inspirar e expirar: a vida é feita de ritmos, a criança sabe disso e nós precisamos garantir que ela possa construí-los com saúde. Por isso horas certas de dormir e acordar, por isso atividades que conduzam de um estado a outro estado com suavidade. Também o ambiente auditivo, e os sons que formam um ouvido atento, sereno e compreensivo, precisa ser cuidado. Para que essa criança possa ser alguém permeável às paisagens sonoras da sua vida. Que possa ouvir o silêncio da mata. Discerni-lo do marulhar da água do mar no encontro com a areia. Do chilrear da passarada ao amanhecer. Do ronronar dos carros numa avenida ao longe. Do silêncio solene das estrelas numa noite de lua nova. Do companheiro que dorme ao seu lado. Do amigo que precisa de um ouvido. E do amor que segreda palavras doces - e verdadeiras.

E por isso valem a pena os sacrifícios - porque são ofícios sagrados no movimento etimológico mais exemplar. Valem a pena as concessões que precisamos fazer a nós mesmos e aos outros. Valem a pena o cuidado, a presença, o estar muito atento e o compartilhar de tudo isso. Porque o melhor todos queremos ser e fazer, mas é preciso o ouvido do outro para recebermos de volta o que nós mesmos precisamos ouvir.


Foto: Maíra Ventura

31/12/2013

Expectativas e esperanças


Termino o ano resolvendo um grande coágulo do meu 2013. Um coágulo, veja bem, é uma massa semi-sólida que se forma no sangue ou em qualquer outro fluido do corpo humano. Atrapalha muito o fluir dos elementos líquidos, aqueles seres que têm uma ligação forte com o tempo, como eu ouvia hoje à tarde ao telefone. Esses são os seres que transbordam, pingam, inundam, derramam, esparramam-se. Pois então: todo ano tem seus coágulos. O deste, de certa tortuosa forma, tem a ver com a tradução que se deu a um dos romances de Dickens, Great Expectations.

Pares de palavras são verdadeiros atratores. Desapegar e desprender, expectativas e esperanças: é como se alguém entreabrisse uma porta e ficasse me chamando, assim, só com um dedinho, uma tentação absurda me tirando daquilo que pareceria ser meu caminho, só que não: não é. Meu caminho é correr atrás dessas coisas pouco claras que parecem existir nas palavras mas existem mesmo é nas pessoas.

Na verdade, só me lembrei disso porque decidi hoje, último dia do ano, avançar numa tradução que veio se arrastando atrás de mim ao longo dos meses. Como se o dia nº 365 fosse fazer uma grande diferença. Tanto faz, pensei: sempre é tempo de começar. Mas a inspiração anda mesmo um tanto falha, e a mente insistiu outra vez em voar para outros cantos. Eu observo-a, e rio-me, e vou atrás dela. Para que resistir?

Para não chamar muito a minha atenção, a mente mantém-se no quesito "tradução", e lança-me de volta, como se fosse um disco de luta grega, esse Great Expectations. Na tradução para o português, transformou-se em "Grandes Esperanças", o que me incomoda há tempos, se penso que o natural seria "Grandes Expectativas". 

Os bascos dizem Itxaropenak quando querem falar de expectativas, e Espera quando querem falar de esperanças. Os alemães usam Erwartung e Hoffnung. Os franceses, Attente e Espoir. Os nigerianos que falam igbo, dizem Aturo-anya ou Nwere-olileanga. Parece tudo diferente uma coisa da outra. 

Mas é só impressão. Expectativa, leio, é a qualidade de quem tem esperança. E as esperanças são aquilo que tem quem espera. Quem tem esperança, tem possibilidades e vê perspectivas, e portanto tem expectativas. Porque espera, qual líquido, a ação do tempo. E por isso cria em torno de si um redil de expectativas: coisas pelas que espera. Os ingleses têm uma porção de palavras para ficar à espera: looking for, wait, awaiting, expecting...

O coágulo do meu ano chamou-se expectativas. Uma massa sólida atravancando-me o caminho, impedindo-me de fluir por dentro da minha vida com a leveza que prezo, que gosto, que sou. Não a expectativa em si, veja bem, mas a máxima do "bom-é-não-ter-expectativas". Como se eu pudesse viver sem ter expectativas. Como se a expectativa fosse em si mesma um pecado mortal, daqueles que nos condenam ao fogo eterno. Minou-me a esperança, andar à caça das expectativas para estripá-las nas minhas praças privadas. Dediquei-me a esfaqueá-la diuturnamente, engatinhando atrás dos meus atos para reduzi-los a cinzas assim que queimassem em vida. Extenuei-me, a meio tempo disso tudo.

Ora bem. Expectativa é uma coisa bacana. Consigo mesmo e com os outros. A expectativa faz com que entremos uns dentro dos outros, faz com que queiramos atender uns as expectativas do outro. Nada de errado, até onde eu percebo. A expectativa é fundamental na figura de Pigmaleão, aquele escultor e rei do Chipre a quem Vênus consentiu dar vida à estátua que ele tinha terminado, e por quem o escultor havia se apaixonado, tamanha a perfeição, tamanha a entrega. O sentimento do artista mudou a condição da estátua - e isso, eureka!, é o efeito que a expectativa tem no comportamento e no ser das pessoas. Freud, e depois dele Erich Fromm e Carl Rogers, e mais uma porção de gente, dedicaram-se a esse Pigmaleão  que Ovídio canta em seu livro X de "Metamorfoses", lá no ano 8, portanto há muito tempo.

Rosenthal e Jacobson, nos anos 60, falam do poder desse efeito na educação: aquilo que se projeta no outro é aquilo que o outro vai devolver de si mesmo. Porque somos todos um, acho eu, e todos maleáveis e sujeitos àquilo que o outro provoca em nós a partir do que pensa a nosso respeito e projeta em nossa direção. Professores que consideram o efeito das suas expectativas nos alunos, e sabem o quanto efetivamente isso participa do processo de construção do outro, serão professores inesquecíveis pelas marcas que deixam.

Portanto, essa tendência moderna de não ter expectativas é um tiro no pé que dói antes mesmo de ser disparado. Ter expectativas faz com que nós nos transformemos, faz com que o outro se transforme, faz com que o mundo se transforme. As profecias auto-realizantes de Merton fazem parte deste raciocínio, assim como a ideia de que mudanças marcantes apoiam-se no cruzamento de conversas verdadeiras, quando o diálogo permite que muitas coisas se cruzem e entrecruzem, e que novos olhares (isto é, novas realidades) emerjam e existam.

Nesse encontro, nessa conversa, nesse diálogo, é fundamental a paresia platônica, mais uma palavra deste ano que quase fica sem ser escrita!, e que se refere à coragem de dizer a verdade. Não a verdade do mundo, não a verdade consentida e reconhecida, mas a verdade de si mesmo. Aquele que pratica a paresia nos seus encontros, encontra dentro de si as forças de ser e dizer-se ele mesmo, criando-se sujeito a partir de seu discurso, ainda que provoque dissenso em vez de consenso. Dizer o que se pensa, aqui, não é ter certezas. É problematizar, é retirar o conforto ameno em que todos ficamos quando achamos que concordamos com o que aí está, e que os outros concordam com o que aí está. A paresia incomoda, e é difícil, é é uma luta. Para os gregos, lá no século V, era indispensável à vida social e política que existisse aquele que praticava a paresia - o paresiastas. Alguém que é e diz, independente do que os outros digam que é.

Não sei se isso me assusta, se me encanta. Reconheço-me pelos olhos dos outros aqui e ali, e quero mais é ser rio que corre para o mar, e que as rochas e as ilhas que encontre pelo caminho se transformem no meu transformar e me transformem no seu transformar. Quero absorver e deglutir todos os coágulos que congestionarem as minhas veias, liquidificá-los a partir da verdade que emerge de mim a partir do olhar e da expectativa do outro. E lançar de volta, com mãos amorosas e firmes, as minhas expectativas, que são a minha esperança de que a vida seja, antes de qualquer outra coisa, um ato de coragem.

A pele das paredes

O ano acaba com a raspagem da pele das paredes. Para que uma nova tinta possa fixar-se. Uso uma espátula, e vou deixando marcas no reboco antigo. Não é toda tinta que sai com facilidade: é preciso energia e determinação. Há trechos que se agarram com afinco, não se deixam retirar. Em outros, a pele de tinta descama-se, em longas tiras, como pele velha de fato, que não resistisse à ação do tempo e se desvestisse de si mesma. As minhas mãos sorriem, quando isso acontece.

As marcas no reboco olham-me através desse tempo longo de silêncio que se constrói entre as paredes que me cercam e eu. As minhas mãos estão ressecadas, o pó de tinta entranhado em cada poro. 

A pele da parede reveste a pele do meu corpo.

Paro para escrever uma palavra aqui, outra ali. Termino uma parede e vou à tinta. Cal de cores que crio sem pensar. As paredes não me dizem da tonalidade que querem. É um exercício de adivinhação e esperança. Vários tons, várias paredes. A pele é imprescindível, escrevo. Nosso ponto de contato com o universo mais interno da estrutura da casa. A pele é o mais profundo, escrevia Valéry. Seu sentido mais extenso. Sua percepção mais nítida. Gosto das marcas do tempo e da vida na minha pele. Pessoas tatuadas em alto e baixo relevo. A pele da parede não tem afrescos. A minha pele tem - não posso retirá-los, são pura obra de arte, recentes e antigos num tempo presente. Como os afrescos da casa de Portinari, escrevo. As estrelas no céu da capela. Acho que amanhã vou a Brodowski, escrevo. Gosto de projetos. Amanhã vou a Brodowski.

É uma responsabilidade e tanto, cuidar da pele-tinta de uma casa. Não sei se estou apta. Olho a tinta da minha própria pele e esboço a dúvida no gesto. Melhor que ocupe as mãos e desocupe o pensamento. Assim como escrever, raspar paredes é um ato de fé. Na própria capacidade de discernir o que é tinta, o que é reboco; o que é pele, o que é alma; o que é próprio, o que não pertence. Qual a medida das coisas. Qual o tamanho das almas. Qual a frequência do toque. Enquanto isso, e nos minutos que inauguro, os pingos de cal grudam o pó da parede à minha pele.

25/12/2013

Ofertas

É preciso que saibas: não existem duas coisas iguais. Podem parecer-te, às vezes, muito semelhantes. Podem parecer-te quase a mesma coisa. Podem lembrar-te fortemente algo que esqueceras. E tanto pode ser que exista de fato algo em comum, como é possível o contrário.

Ora repara nestas palavras, que me ofereceram hoje a meio de uma conversa, e que me fizeram pensar em ti e daí a vontade de escrever-te. (Escrever-te, repara, nesse duplo sentido que te ofereço intencional, de dirigir-te umas palavras assim quaisquer umas e de, com a minha mão nua, percorrer-te o corpo até preenchê-lo com as palavras que não ouves.) Ora repara, dizia eu, nas palavras que me ofereceram. Cerúleo. Ceroulas. Uma poderá parecer-te exótica e desconhecida, a outra antiquada e comum como a chuva. Ou não, porque poderás quem sabe conhecer as duas. Poderás até pensar: "de certa incontestável forma, têm estas palavras um parentesco que se perde na escuridão dos tempos..." Através do teu pensamento, podes chegar onde quiseres.

Assim é, também, com as pessoas que conheces. Um alguém que te apresentem pode levar-te imediatamente a pensar em outro alguém; o teu pensamento pode tecer-te a ti e a ele um cenário tão perfeito, que te convenças que entre essas pessoas, tu e ele, existe um fio que só tu vês e que as liga e as enfeita e as torna inseparáveis dentro do mundo do teu pensamento. Sendo tu uma dessas pessoas, poderás pensar que esse que vês à tua frente é aquilo que estava escrito nas páginas abertas do teu destino. Ou poderá ser como cerúleo e ceroulas, essas duas palavras que sem querer me ofereceram. Sem te deteres diante das pessoas como não te deténs diante das palavras, poderão parecer-te umas e outras tudo aquilo que queiras que te pareçam. Até o que não são. Corres, deixa que te alerte, um grande e terrível risco. E deixa-me ainda dizer-te que há três coisas de que precisas para escapares aos enganos.

Precisas, ouve bem, de cuidado, cautela e prudência. Podes pensar que sejam a mesma coisa dita de três formas diferentes, mas são três aspectos de uma mesma atitude, em si mesmos dessemelhantes - e se te lembrares de que não existem duas coisas iguais, saberás que não existem, nunca, duas palavras iguais. Nem duas maneiras iguais de se dizer uma mesma palavra.

O cuidado faz-te pensar no outro para que não o magoes; a cautela faz-te pensar em ti para que não te magoes; a prudência faz-te pensar no ser nascido do vosso encontro, para que também ele não se magoe. Já vês como as coisas precisam ser olhadas de três formas. Pelo menos.

Repara agora, outra vez, naquelas duas palavras. Cerúleo e ceroulas. Mastiga-as. Pronuncia-as em voz alta. Deixa que preencham os espaços vazios do teu cérebro (são tantos). Quando começares a pensar, e com isso perderes a conexão com o sabor e o vento que as palavras têm dentro de si, poderás incorrer no erro de imaginá-las aparentadas. Ou talvez não penses nada, porque te deixaste levar pela lenta suavidade desse rio que são as palavras. Tanto melhor. Mas, se pensaste, deixa-me que esclareça:

não são aparentadas, nem no tempo, nem na geografia, nem naqueles que as entoaram na vez primeira. Cerúleo é o que vês quando olhas para cima a campo aberto: cerúleo é o céu. Como esse que encabeça esta carta que te escrevo: a fotografia do céu do meu dia hoje. O teu olhar para cima vê tudo o que é cerúleo, vê caelum, vê céu. Não fossem os povos do Lácio, talvez tivéssemos uma palavra outra, menos bonita, para ex-clamar ao olhar o que está acima de nós.

Ceroulas são peças de roupa. Quase diríamos ninguém mais as usar, mas isso só se não estivermos em terras frias, que agradecem essas calças por baixo das calças. Ceroulas são indumentárias árabes, dos povos do deserto, que as usavam e usam por baixo de todo o resto da roupa que usam para se protegerem da areia, do sol inclemente, do frio gelado da noite. Saruil é a sua origem, tão distante do caelum da terra de Cícero quanto nós das formas de pensamento de ambos. (Também do árabe, para quem pensou nisso, vêm as cenouras, a quem os antigos chamavam sannarias.) Ainda assim, tão longe uns dos outros, o nosso pensamento imagina-lhes a proximidade, e sem a curiosidade e a cautela e o cuidado e a prudência, deixaria de saber o que agora sabe, ainda que pareça inútil. Nunca se sabe o que vai ser útil ou inútil na vida. Por isso é que é preciso deixar todas as portas abertas, até aquelas por onde costuma entrar a adaga, a mão sorrateira que rouba, o sorriso falso que engana. Tudo aberto, ouve e guarda: guarda com cuidado, com cautela e com prudência, olhos atentos aos movimentos cerúleos. Eles indicar-te-ão o caminho.