20/04/2012

No avião, as poltronas



Braços de poltrona são terra de ninguém. Espaços de propriedade indefinida – ganha-os quem lhes chega antes com os próprios braços, quem é mais ousado e se atreve a deslocar o cotovelo alheio, quem tem a seu lado alguém que gentilmente cede esse estreito espaço. De vez em quando, há cotovelos que se permitem o toque, forma de permitir que ambos passageiros apoiem seus braços e viajem tranquilos. Cada vez mais raras, pessoas assim. Cada vez mais raro permitir o toque. Uma pena.

Indo e voltando de Porto Alegre, escolho sentar-me num assento do meio. Nem corredor, nem janela. Justa e sintomaticamente, são essas as poltronas que sobram para quem chega atrasado ao aeroporto, o que me oferece duas oportunidades de conhecer gente nova, e de perceber mais coisas a respeito de braços de poltrona, que é meu verdadeiro motivo aqui. Na escrita.


À minha esquerda, à janela, Sandra sentou-se armada de óculos escuros, revista e tablet. Armas contra intrusos, penso. Mas eu me levantei logo cedo com vontade de gente, essas barreiras não têm efeito qualquer sobre mim. Aliás, tornam-se mais é motivos. "O que você está lendo?", "faz tempo que usa tablet?", "lindos, esses seus óculos..." – levanto rapidamente uma série de formas de aproximação. Escolho a primeira, é a mais sincera.
Sandra lê “Os livros dos outros”, de Fernanda Young, que por sorte eu já li, e assim a conversa acontece de fato. Linguagem interessante a da Fernanda (assim mesmo, nessa intimidade de primeiro nome...), uma forma de angústia obsessiva bem trabalhada, as ideias entrelaçando-se aos poucos à nossa própria conversa. Sandra mora em Porto Alegre e vai passar o feriado a São Paulo. E pega o livro dela, e eu pego os meus “Contos italianos” de Górki, e ambas alisamos as capas antes de abrir os livros. No encontro de braços da poltrona, reparo que a pele de Sandra é morna e não refuga o contato. Sorrio para dentro do livro, antecipando o resto da conversa que virá.

Espio pelo canto do olho o homem sentado à minha direita. Marcelo veste terno, gravata, sapato social, cinto preto. Viaja compenetrado, deve ser um homem sério preocupado com o sucesso; a custo diz-me o seu nome e conta que é publicitário. Feriado? Não, viaja a trabalho, para ele não há feriados. Desliga o celular conforme pedem, fecha os olhos e dorme de forma instantânea, seu braço sequer percebendo que existe onde apoiar-se. Não vou saber mais nada de Marcelo. De Marcelo para o livro, e do livro para Sandra.

Conversamos sobre o impulso que é preciso para a decolagem, um esforço incrível de motores, tremor, barulho, excitação do voo que se aproxima e se torna êxtase recompensado: voa-se. Como se um orgasmo de nave, penso mas não digo. Conto até 10 assim que o trem de pouso larga a terra, porque alguém me disse um dia que é nesses segundos que o avião pode explodir. Bobagem, tenho quase certeza, mas ainda assim conto, e sorrio quando termino. Sandra voa muito, vai a cada quinze dias para São Paulo, onde vive sua namorada. Ela gosta, assim – talvez a relação não se desgaste, talvez a distância nos preserve, talvez a frequência não se intrometa entre a verdadeira vontade de sermos, e talvez assim prolonguemos a felicidade por mais tempo, quem sabe talvez nos amemos para sempre. Leio-lhe nas palavras uma melancolia urbana, que se parece com a de Young, numa contaminação gostosa da pessoa pelo que lê. Depreendo que sabe de fato ler, e bem; que se entrega às palavras e as deixa entrar dentro dela e fazer-lhe morada. Olha-me bem nos olhos, como se de repente se apercebesse de que era comigo que falava e diz-me que é isso mesmo, que é para isso que lê, para ser permeada pela palavra do outro.

Passa rápida, essa hora e pouco de voo. Conversamos pouco, depois dessa troca tão límpida. Porque nos debruçamos cada qual sobre as palavras dos outros, para nos contaminarmos e nos salvarmos de nós mesmas, das nossas prisões todas, nossos desgostos, nossos anseios, nossas dúvidas. Como se pudéssemos viver a vida alheia sem sair nem por em perigo a nossa. E ao fechar o livro sermos mais do que éramos, por contermos mais humanidade dentro dos olhos. É por isso, dizemo-nos em silêncio, que lemos. E à saída trocamos um olhar de despedida que ressurge aqui, no papel em branco, um sintoma do poder de criação dos livros e das pessoas que os leem.

19/04/2012

Sombras

Há muitos anos atrás, ouvi uma palestra de Leo Buscaglia. Tinha acabado de ler um de seus livros ("Vivendo amando e aprendendo", esse da capa original aí ao lado) e me sentia muito impactada pelo que ele tinha escrito, a maneira como olhava para as pessoas, para a demonstração de amor e afeto entre elas. Estava no meio de um momento difícil, o coração encharcado pela enormidade de um oceano inteiro que me separava de quem (me) amava. Foi difícil, viver aquela perda, e o livro de Buscaglia chegou às minhas mãos. Aliviou-me os olhos, acalmou-me o coração, fez-me chorar.

Hoje não são oceanos que me separam de nada; os aviões voam no meu céu e eu posso estar dentro deles. Estou segura (ou quase) de por onde meus pés de carne e osso devem ir. Mas há outras águas à minha volta, águas escuras, silenciosas, águas que se reconhecem e onde se quer mergulhar e não sair nunca mais - mas assim que o mergulho se esboça, as águas mudam de lugar, pouco afeitas ao serem mergulhadas. Ainda que sejam na realidade poças d'água e não oceanos, doem tanto quanto. Sufocam por dentro, sobem garganta acima impedindo o ar que precisa descer aos pulmões. E os meus pés de carne e osso se confundem, e acham não saber mais o caminho.

Não sei onde pus o livro do Buscaglia, não posso lê-lo agora de novo. Só posso lembrar-me das ondas de tristezas passadas, descobrindo que passaram, que foram avançando pela praia da minha alma, absorvidas a cada vai e vem pela areia que a preenche. Posso lembrar-me das dores que guardei, mesmo que não tenha aprendido a aceitar as coisas que passam, como os verões da infância. Coisas que parecem intermináveis, e terminam, e sem elas a vida volta ao que os outros dizem ser o normal. Que nunca parece o normal.

É difícil compartilhar os momentos de tristeza - as alegrias, as conquistas, as descobertas, o dia a dia do qual se extrai algum significado e aprendizado, é mais simples. Buscaglia insistia, de um jeito caloroso que só ele sabia ter, que os nossos afetos precisam ser abertos, entregues, completos. Que não se criem reservas nem expectativas. E que dentro dos afetos haja reconhecimento das tristezas, que se deixem transbordar tal qual fazem as alegrias, os êxtases, a felicidade pura. Mas o risco de contaminar o outro, de entrar-lhe pelos olhos e tumultuar-lhe o dia parece-me tão grande que sim, escrevo, transbordo-me - mas as coisas ficam por aqui, à espera de algo inusitado que as preencha de uma centelha que seja luz. Para que a sombra não impere absoluta.

Buscaglia é a minha finalmente centelha de hoje. E por causa dele consigo transformar este longo longo dia, porque aproximo o que sou de quem lê, num encontro de humanidade e transparência. Justamente as duas coisas que me afligem hoje, que me encharcam dessa tristeza que preciso deixar sair, vazar, escorrer de mim, como as águas dos oceanos todos que me cercam, embalam e dão sentido aos meus dias, mesmo os longos longos. Um paradoxo, sim - como tudo o que é amor.


14/04/2012

A cidade nova IX - a barbearia

Seu Devair está por aqui, nessa sua barbearia, desde 1958. Nos seus 77 anos bem vividos (diz), viu de tudo. Viu a cidade mudar em volta, viu a segurança ceder espaço às chaves, trancas, portões, cadeados. Viu a família minguar, as ruas crescerem, as modas mudarem. Já a barbearia, mudou pouco - mesma tesoura, mesma lâmina, mesma cadeira. Mesmas quatro paredes diante da porta única, aberta ao jardim da praça, a mesma pia, o mesmo espelho.

"Mas eu", diz ele, "eu mudei. Hoje eu sei que sou mais feliz do que era antes. E hoje eu sou mais vaidoso também, por isso comecei a tingir o cabelo, tá vendo?". E me mostra orgulhoso, num esgar de moleque que não some da vida por muito que ela avance, o cabelo bem preto emoldurando o rosto vincado pelo tempo. Seu Devair põe e tira a dentadura a todo instante. É quase um processo hipnótico, e eu preciso lembrar-me várias vezes de desviar o olhar que provavelmente está fixo nesses maxilares imparáveis, o lábio que pende e se recolhe de repente, sem parar sem parar sem parar.

Chegam dois outros clientes, um da idade de Seu Devair, outro parecendo décadas mais velho. Sentam-se ao meu lado, um à direita e outro à esquerda. Seu Ambrósio (invento-lhe um nome, porque não fala), chapéu surrado, camisa branca de botões desencontrados, tem um tique nervoso em volta dos olhos, deve ser parente da dentadura de Seu Devair; abrem e fecham sem parar, debaixo de umas sobrancelhas espessas, fartas, silenciosas. Mantém as mãos dentro dos bolsos da calça, mesmo sentado, e não diz uma palavra. Deve esperar pela sua vez. De vez em quando inclina-se para ver o que passa na rua. Das três cadeiras para quem espera, neste espaço de 14 metros quadrados, olhar para fora é quase uma necessidade. Em vez de lhe chamar Ambrósio, prefiro chamar-lhe Paciência.

Ao meu lado direito está Eustáquio. Só sei que se chama assim porque Seu Devair o cumprimenta, assim que a filha o deixa na porta da barbearia, avisando-o que o recolherá daqui a duas horas - como se fosse uma encomenda que o tempo leva e traz a todo instante. Seu Eustáquio parece vindo de outras eras. O rosto pendurou-se ao longo dos anos; o queixo vive agora muito lá embaixo, tão longe dos olhos encovados, de um azul que parece ter perdido a luz, a boca entreaberta porque o maxilar e a gravidade a puxam para baixo. Muito (mas muito) corcunda, parece um pequeno anão, embora não o seja. A calça, hoje larga, está presa por um cinto ao qual alguém foi acrescentando com o tempo vários furos. A cintura é fina fina fina, quase uma linha, se se olhar de lado. Seu Eustáquio olha para mim de tempos em tempos - quando me viro para sorrir-lhe, desvia o rosto rapidamente, o que não combina com a sua lentidão arrastada ao andar. Talvez Seu Eustáquio tenha desistido de se comunicar com o mundo, e prefira recolher tudo o que olha dentro de si, para quem sabe lembrar-se à noite, quando se deitar e não tiver no que pensar porque a vida se esvaiu.

Meu filho, enquanto isso, corta o cabelo. Foi isso afinal que nos trouxe aqui, e o preço em conta, que este meu filho pesquisa e persegue com maestria. Hoje, porém, não foi feliz na escolha: sai de lá torcendo para que o cabelo cresça rápido, passando o dedo no pequeno corte que os 77 anos de Seu Devair fizeram na sua nuca. Mas, como eu, reparou em tudo, e assim temos assunto enquanto subimos rua acima, pensando em quanto as cidades mudam, as pessoas mudam e nós próprios mudamos, sobrevivendo a nós mesmos. A idade é só um acidente, concluímos, que cada um ultrapassa a seu modo. Não há nada que, entretanto, não nos enriqueça.

09/04/2012

Páscoa de reforma

A Páscoa despede-se devagar, aqui por casa. As suas marcas estão por todo canto, pequenas cruzes de uma penitência a que se dispõem as paredes. Amarrações cruas. A vida que será nova, por trás delas, agarra-se com ferocidade, para não se deixar cair, para poder erguer-se em colunas e vigas e paredes e tetos.

Não se queixam, as paredes. Deixam-se furar, atravessar, arrancar, despedaçar. Sem um gemido. Apenas o estrondo quando chegam ao chão. E depois só silêncio novamente.

As caixas de madeira agarram-se a elas presas por arames, prestes a receber baldes e baldes de concreto - areia, terra, cimento e água numa amálgama que aos meus olhos concretiza uma espécie de futuro. De forma ainda distante. Sobe-se e desce-se por andaimes e escadas, baldes a tiracolo, num esforço quase desumano de fazer erguer a sustentação da vida.

É domingo pleno de Páscoa. A água escorre pelas paredes machucadas. O que era só vazio, ocas colunas de ferro na projeção do espaço, recebe capa da madeira e verter de recheio. Endurece e cria forma. Amanhã, ou depois, ou depois, serão colunas de concreto diante de mim. E as cruzes poderão desfazer-se, arrancadas da parede que deu cria.



07/04/2012

Exercício: a carta de amor

"Meu querido Armindo: 

Já a noite vai longa e a lua alta, e eu não consigo aplacar o sono. Escrevo-te, para que quem sabe contigo entre a caneta e os meus dedos eu possa conciliar o cansaço do dia com este sentimento que me agita as entranhas. Sim, as entranhas. Pensaste talvez fosse o coração, a respiração, o seu arfar - mas não, são as entranhas. Onde a vida vive em mim - no oscilar do estômago, nos ácidos que fluem do pâncreas, nas enzimas a decomporem no fígado, em cada tentativa de digestão e apreensão deste remédio amargo e doce que me dás a cada vez que nos vemos.

Sim, repito-te, para que não penses teres-te enganado: amargo e doce. Amargo porque não posso ter-te em mim todos os minutos de todos os dias de toda a minha vida, e ao saber disso, ao escrevê-lo, as mãos tremem-me, diante do inevitável monstro de saudade e perda que assoma no horizonte. E doce, porque posso ter-te quando te posso ter, quando as cortinas se abrem e o quotidiano se transveste de milagre, e as tuas mãos oferecem-se às minhas assim que os nossos olhos poisam uns nos do outro. E o tempo desaparece e somos. Torna-se o doce cada vez mais doce, porque ao seu lado caminha o amargo cada vez mais amargo.

Assim como é o querer dormir e não conseguir; sentir-te as mãos invisíveis a tatearem-me os braços, as pernas, a virar-me na cama para que o teu corpo inevitável e sem peso crave a sua marca no meu. Se me deixo flutuar nesse espaço entre eu mesma e o corpo que não trazes até mim mas eu sinto, desaparece o  quarto, a cama, a janela, a cadeira onde deixei a roupa ao tirá-la - e vai-se o sono. Preciso levantar-me, enfim, para não ser engolida nessa tortura de descobrir o doce que é sentir o gosto amargo de não te ter a escorrer entre os dentes.

E por isso sento-me à escrivaninha e escrevo-te. Tantas e tantas palavras quantas caibam dentro dos dedos que abro para que lambas, para que os impregnes com o teu hálito transparente, que não consigo reproduzir sem que estejas em mim. Por isso escrevo-te, para trazer-te para dentro a cada palavra que sai de mim, olhos fincados no que lerás quando abrires este envelope ainda em repouso na tua caixa de correio. 

Agarra-o, meu amor, e cheira-o antes de o abrires, para que comeces a lembrar-te primeiro pelo cheiro. Tateia depois o papel, conforme o tires de dentro do seu invólucro pardo, como se o despisses, com as gemas mornas dos teus dedos; percebe como em cada dobra estão depostas as curvas que beijas quando enlaças o teu corpo ao meu. E, por fim, entrega-te à leitura. Mas que estejas sozinho, à meia luz, em silêncio - para que nada se interponha entre os suspiros que deixo por entre as linhas azuladas de tinta e os teus olhos. Depois, deita-te à minha espera - e dorme.

A sempre tua,
Isaura"


(A foto da foto: exposição no Museu de Arte Contemporânea do RS, em março deste ano. Sem querer, perdi a referência: nem sequer o nome da autora da intervenção bordada. E não consigo achá-la na internet... se alguém souber, pf, diga!)

02/04/2012

A cidade nova VIII - a calçada

Eu não devia, mas lavei mais uma vez a calçada. Em parte, porque depois de remover os 4 metros cúbicos de terra e pedra que aterrissaram do caminhão bem na entrada do portão, merecia. A outra parte é Dona S., que faz dias não vejo.

Passei o domingo procurando assunto. Quente, o dia. Quente, eu. Quente, a casa. Achei que saindo pra lavar a calçada Dona S. daria as caras, e o assunto viria com ela. Dito e feito.

Bastou abrir o portão e sair com a mangueira pro sorriso de Dona S. aparecer por detrás das grades dela. Que estão sempre abertas, pra poder entrar e sair rápido, já me disse. "E seu pedreiro não veio de novo nesse sábado, né?". Dona S. vive atenta. Uma das filhas vem logo atrás, sorriso parecido, olhos tão juntos um do outro que me fazem inclinar a cabeça. E conta que o pai de Dona S. era pedreiro, mas que ela não aprendeu nada, coitada - uma das irmãs sabe pintar, dois irmãos são azulejistas (um bom, o outro um horror), mas ela... nada. E meneia a cabeça, não sei se com dó se com desesperança da figura da mãe. Mas Dona S. interrompe-a, agitando as mãos salpicadas das cores da idade, para me dizer que ela aprendeu direitinho o serviço de servente,  aquele que ninguém dá valor mesmo. Já carregou muitas e muitas carriolas de tijolo pra cá e pra lá, muita areia, muita pedra. A filha tenta continuar a conversa, mas Dona S. muda de assunto. Ri com gosto porque estou descalça e já bastante molhada. E ri mais ainda quando me pergunta porque é que eu não ponho o lixo todos os dias pro lixeiro levar, e nem espera que eu responda: "é que você veio da roça, e lá nem lixeiro tem, não é?". E ri ri ri ri até dizer chega. E não é com maldade, como alguns podem pensar - não. O que a faz rir é lembrar-se da própria história, e meu papel aqui é só recordá-la de que a vida são histórias muito parecidas, enfileiradas uma atrás da outra, esperando ser vividas com intensidade e entrega. Como ela provavelmente viveu a dela e eu tento viver a minha.

Lá do outro lado da rua, Dona M. espreita a rua da casa dela. Sozinha, viúva há 10 meses, Dona M. não sabe bem o que fazer da vida. Assim que Dona S. volta para sua casa, abre seu portão automático e atravessa a rua com a dificuldade de quem tem uma prótese num joelho e artrose em todas as articulações. Vem lentamente, olhando cada pedra em que pisa, toda arrumada, vestido de flores vermelhas pela altura do joelho, batom rosado e olhos vivos pintados de azul suave. Nem precisa dizer nada: convida-se a entrar e ver como que anda a reforma. Como outros, olha em volta um tanto estarrecida e pergunta como é mesmo que damos conta. Diz que não é de reparar nessas coisas, mas percebe que trocamos o piso daqui, que fechamos aquela porta dali, que levantamos uma parede acolá, que aquele móvel quando for reformado vai ficar uma beleza.

Sentada no que será um dia a sala, conta que, para driblar a solidão depois que o marido se foi, comprou um computador (coisa que em vida o falecido impedira), que usa para falar com as amigas (atividade que em vida o mesmo via apenas com meios olhos), algumas delas colegas de hidroginástica (que quando vivo o marido proibira). É sobretudo para não se sentir sozinha de madrugada, quando acorda e não há ninguém ao seu lado, aquele marido de quem ela tem uma saudade muito específica, e ela não consegue adormecer de novo. Digo-lhe que também eu às vezes não consigo dormir, e ela acena entusiasticamente a cabeça, e diz-me que sim, que ela sabe: "quando acordo, vou logo ver se a sua luzinha lá do meio das caixas tá acesa... fico mais aliviada quando vejo que tem luz, sabe?". E eu digo-lhe que me chame, que me dê um grito se tiver vontade de conversar - pularei a janela e virei conversar com você, Dona M.!! Seus olhinhos piscam e ela olha-me escandalizada e diz-me baixinho, para que até quem nem passa seja impedido de ouvir: "gritar?! mas eu não grito!". E me assusta com esse tom peremptório que tende a usar quem já gritou muito, muito na vida, e percebe de repente que talvez não valesse a pena ter exigido tamanho esforço às cordas vocais. E dá-me uma palmadinha no braço, para que eu me deixe de bobagens, e me faz prometer que irei visitá-la, ver os móveis que mandou reformar (depois que o falecido se foi), o exaustor que finalmente comprou (depois que o falecido se foi), o ar condicionado que refresca agora as suas noites (depois que o falecido se foi), os corrimões que finalmente foram instalados, e que o falecido dissera que jamais seriam colocados. Prometo-lhe uma tarde de conversa. Ou madrugada, logo se verá.

Olho para a calçada, enquanto espero que atravesse a rua até sua casa, e vejo que a sarjeta ficou cheia de restos de areia. Neste novo mundo de convenções urbanas, não sei se me cabe a tarefa de limpá-la, lavá-la, varrê-la, dar-lhe sumiço. Penso que sim. Entro em casa para buscar pá e vassoura, mas quando volto a filha de Dona S. (a outra, que mora ao lado esquerdo) já está de mangueira em punho, lavando a rua com uma forma de fúria e obstinação que me fazem recuar instintivamente. Não sei ainda como interpretar essa sanha das minhas vizinhas, até onde devo entender um tanto das suas ações. Melhor varrer e limpar tudo o que tenho dentro - e que não é pouco.

01/04/2012

Quijoteces


“Allá donde están los molinos del Quijote”: foi assim que ele se apresentou na roda em que estávamos, quando lhe perguntaram de onde vinha. E isso foi o bastante. O namoro, o meu primeiro, durou poucos dias; sequer me lembro do nome dele, nem consigo ver-lhe o rosto ao fechar os olhos. Só essa frase. Poucos dias, mas intensos; um acampamento, tudo novidades, a frequência diária. Quando o visitei, semanas depois, fugindo à vigilância paterna, nas suas terras de La Mancha, recebeu-me com aceitunas e queso manchego, que fomos comer debaixo das pás dos moinhos escolhidos como corpo da sua referência. A paisagem plana e lisa à nossa volta, como os sentimentos que amainavam. Inesquecível.

Cervantes acompanhou-me, de lá pra cá, aqui e ali; sofri com as Novelas Ejemplares na escola, pouco disposta a essas leituras na altura, querendo respirar só Lorca, só Rubén Darío, só Neruda. Não as li direito até hoje e, nesse meio tempo, Cervantes foi cedendo espaço a Camões.

“O homem de La Mancha” voltou anos atrás, quando Marco Antonio me pediu que revisasse a peça que seus alunos, entre eles meu filho mais velho, encenariam. Cervantes a la Broadway, numa apresentação bonita e simples na Casa das Meninas, em Botucatu, sob a batuta de Kim Marques. Hoje, precisando identificar um momento pessoal de revelação de personagens, escolho esse, achando que seja aleatoriamente e ao acaso. Não é.

Quem faz curso de letras inevitavelmente descobre em algum momento que as personagens da narrativa se dividem básica e simplesmente em personagens planas e redondas. Lembro de ter gostado demais dessa definição geométrica, metáfora perfeita para o que é preciso lembrar da história. Foi o ano de descoberta de Barthes, dos estruturalistas, das teorias da narratologia, de um Forster que dizia “Como posso saber o que eu penso, até um escutar o que eu digo?”, e isso fazia tanto sentido. O mesmo Forster que apelidou as personagens de Homo fictus, seres ficcionais no âmago de qualquer narrativa, e propôs a sua divisão nesses dois tipos, flat e round no original. Como qualquer teoria é dada às suas falhas, nem sempre consigo que as personagens que leio ou escrevo se encaixem com tanta perfeição em um ou outro lugar, mas há (lembro) exemplos lapidares, como o corajoso e bondoso Peri (plana) ou o denso e surpreendente Dom Casmurro (redonda). Personagens planas tendem ao tipo, à caricatura, à densidade nenhuma, às atitudes previsíveis, ao caminho reto e sem surpresas. Personagens redondas (ou personagens que se arredondam) são densas, imprevisíveis, nunca se sabe o que dirão, o que farão, o seu caminho é feito de transformação, e mantêm-nos num suspense que nos faz soltar ahs e ohs conforme a sua descoberta avança. Porque as personagens redondas precisam ser descobertas, conquistadas, não se oferecem de cara como as planas, que podem revelar-se numa frase apenas, que nos diz tudo e nos faz sentir que estamos satisfeitos.

Dos anos de faculdade até agora não se tornou mais fácil acoplar as ideias estruturalistas à minha prática. Não é que não goste; gosto, mas não me afino. Só isso. Por isso olho para esta minha escolha, Dom Quixote à minha esquerda, Sancho Panza à minha direita, e reluto em encaixotá-los em algum lado. Tendo a achar o Quixote até previsível – lembro-me de que, embora risse, porque não há como não rir, me cansavam as estripulias da Triste Figura, que começam a ficar previsíveis - mas sei que é geralmente considerada uma personagem redonda. E tendo a achar que Sancho é o mais imprevisível, na sua paciente e persistente decisão de acompanhar seu amo em todas as batalhas enlouquecidas – embora eu saiba que é por vezes exemplo de personagem que tende ao plano. Ambos parecem-me planas, às vezes. E ambos parecem-me redondas, logo depois. Porque há densidade e conteúdo em ambas, detalhes ricos que se descobrem aos poucos, a humanidade inesgotável de Sancho, a intrepidez alucinada de Quixote. No que preciso escrever, decido, direi que ambos são tipos alinhavados de dentro para fora, para que não seja óbvio e para que a identificação seja lenta e interna, e vou abster-me da geometria.

E, como se gostasse no minuto em que me decido por esse caminho, Sancho de repente ganha luminosidade, ao lado de um Quixote que cavalga a sombra da própria estampa. O Sancho que acompanha e vela e cuida da loucura alheia, esquecendo-se de si próprio a cada instante. Tão idealista quanto o cavaleiro, largando a vida no campo para ser o que a tradição lhe dizia que poderia ser: um escudeiro servindo a seu senhor. Carrega escudo, remédios, comida - e sobretudo equilíbrio. Gordo, analfabeto e pragmático, faz-nos rir ao longo do romance, num riso que espelha identificação das nossas mazelas humanidades cotidianas. Come demais, vomita, é mal criado - mas é ele quem cura as feridas, quem cozinha, quem leva e traz recados, quem vê rebanhos onde o outro vê exércitos, moinhos onde se levantam gigantes. As longas conversas entre os dois, pelos campos de La Mancha, são provavelmente os pontos altos do romance, talvez onde se torne mais claro o quanto um jamais sobreviveria sem o outro, o quanto um se realiza e se permite porque o outro está ao lado, vigilante ou louco.

São raras, mas há pessoas que medem o horizonte com os olhos do impossível e agem sabendo que o mundo pode acabar na próxima esquina, como se conscientes e mergulhados nos dias que se sucedem um ao outro. Como se amalgamassem sonhos quixotescos - irrealizáveis e fadados à derrota, mantendo-os vivos e pulsantes dentro de si mesmos, numa coragem que inspira e fascina – à ação impressa com pulso e decisão no cotidiano alheio, às vezes cinza, às vezes pleno de brilho. Pessoas que sonham ao estender a mão. Pessoas que estendem a mão e fazem sonhar uma vida melhor, ainda que seja impossível e tudo diga que não. Pessoas quase personagens, um risco no meio da vida, ao qual (escrevem-me lá de Porto Alegre) devemos nos dedicar, mas com cuidado, e sobretudo ao escrever.

28/03/2012

A cidade nova VII - o presente

Dona S. tem andado quietinha nos últimos dias. Quase não a vejo. Ontem saiu de casa com o genro, de carro. Arrumada e aposto que perfumada. Com pressa. Nem me viu aqui dentro da janela.

Hoje, como se a consciência lhe tivesse pesado, espreita pelo portão justamente quando chego de bicicleta. Dona S. tem uns olhos vivos que piscam sem parar, o cabelo grisalho cortado curto, jeito de andar de quem é despachado na vida. "Se eu soubesse andar de bicicleta e não tivesse vergonha de andar com as pernas de fora que nem você, também andava, sabia?". Rio, encolho os ombros e lembro de agradecer os pastéis de cebola que ela trouxe no sábado, pra mudar o rumo da conversa. Mas Dona S. é dura na queda: "Pois é, e de novo você não estava aqui, né? Tanto que você trabalha, pela mãe santíssima!". Se eu fosse me dar ao trabalho de ficar pensando que os outros querem dizer uma coisa dizendo outra, ficaria com uma pulga atrás de cada orelha. Mas é demais isso, prefiro convidá-la para entrar.

Não tem tempo, tem uma missão importante. E chega-se para perto, olhos cravados em nosso vizinho, Seu G., vindo da esquina de lá em passos hesitantes. Mesmo sem tempo, empurra-se pra dentro do portão. Seu G. não deve ser o problema: seus grandes olhos azuis esquecidos, cor de Alzheimer, perguntam-me todas as manhãs quem sou. Não se lembraria do que ouvisse.

Dona S. tem um presente pra me dar. Mas antes quer me perguntar se eu quero, que não é coisa que se dê a qualquer um, assim de qualquer jeito. Anos atrás, quando seu marido morreu, comprou um plano funerário. Desses que a gente paga a vida toda pra não dar trabalho pra quem fica quando a gente se for. O plano dela é dos melhores - não paga quase nada, um sistema que não entendo de "quando morre um tanto de gente que começa com S., que é a letra do meu nome, aí que eu pago, mas só um tantinho...". De vez em quando, tem uns sorteios, conta, assim como se fosse um consórcio. E Dona S. ganhou um dos últimos: 10 caixões para distribuir pela família. Decido sentar-me - a história vai longa e promete.

Como não tem família pra tanto caixão, quer oferecer-me um de presente. E prende entre as suas uma de minhas mãos, para garantir que não seria para qualquer um que faria esse agrado. Eu procuro, mas não encontro reação pra lhe dar. Conta-me detalhes do imóvel de vida eterna: não é coisa de luxo, mas também não é daqueles de pobre. Não que faça diferença, diz ela, mas não precisa esculhambar. Acrescenta que se eu quiser um plano desses, ela me leva lá, e ainda me consegue um desconto. Porque além do caixão, tem outros gastos, o transporte, as velas, as flores, o tapete... Ri-se de repente e diz que "de transporte nem precisamos, né? é só empurrar até o fim da rua!!" E ri com sua grande boca de risos incontidos. É que moramos na rua que morre no cemitério. Eu sorrio, aceno a cabeça, falo um "hmm" de vez em quando...

Não sei que lhe diga. Nunca me fizeram uma oferta dessas. Pergunto-lhe onde fica o caixão até ser usado: "filha, na funerária... vc queria ficar com ele em casa?!". Deve achar que eu não penso, penso. Mas penso, e estou até atônita. Não sei se quero um caixão e não sei como dizer-lhe isso. Estou quase prestes a aceitar, e a agradecer, tudo graças à boa educação que me deram, quando ela se levanta e me diz que pense, pense que isso é coisa séria, não é pro resto da vida mas é pro tempo todo da morte. E assim como veio, com pressa e dizendo que não podia entrar, foi-se, acenando pro Seu G. que entretanto nem saiu de onde estava, encostado à árvore da calçada com quem conversa todas as tardes.

27/03/2012

A cidade nova VI

Dizem-me que faz tempo desde o último "A cidade nova". Têm razão. Vou em busca das mudanças dos últimos dias, pra registro e satisfação de quem está longe e quer saber. Ora bem, aí vai!


O roteiro segue o curso do dia. Resgatado o costume civilizado de ter tomadas elétricas na cozinha, todo mundo quer cozinhar. Panquecas na hora do almoço?, pergunta um. Posso preparar um suco? diz o outro. E a todos respondo que sim, imersa num daqueles dias em que tudo é tão, tão relativo. Tudo o que querem fazer conecta-se à rede elétrica, todos felizes com a quantidade de possibilidades pela cozinha. Pena que lavar a louça não precise de eletricidade: teria 4 pares de mãos à disposição para o trabalho sem maiores discussões...




A sala, que não existia, ganhou espaço - a céu aberto, é verdade, mas o certo é que dois dos montes de entulho e terra foram substituídos  pelo chão da sala, contra piso grosseiro onde desenharam um "bem-vinda, Ana!" no fim de semana, ao lado de um "Valdete" que atesta o autor da obra. As colunas ainda lá estão, ferro sem preencher, fantasmas sob o sol do meio do dia. Sento-me a seu lado, disposta a me reconciliar com esse clima estranho desta cidade, que me faz zonzear pela rua se não ando pela sombra. Aliás, é o que me diz Luzia, que encontro de repente no meio da rua hoje cedo, mãe de amiga querida que se foi pra São Luís: "Ana, Ana... ande pela sombra, minha filha". É o que eu tento, respondo-lhe: mas no fundo eu gosto do arder do sol na pele. E me descaio da sombra de vez em quando, como se fingisse estar distraída.



E agorinha, a meio da tarde, fujo de dentro de casa, para dentro do quintal que há nas traseiras, e do qual nem quase falo. A luz que tremeluz por entre as folhas, os verdes que confraternizam no fundo desta casa de cidade fazem-me desapertar a espessura amarga da distância que se criou de repente hoje pela manhã, ao tentar desabotoar uma saudade que já se torna mordente. Não resolve, mas amaina, à espera que o tempo passe. Enquanto trabalho no que preciso.