26/02/2012

Reciprocidade


Uma amiga querida, daquelas que levamos anos para encontrar e depois não esquecemos jamais, pede-me, à distância de uma dor que só adivinho, que lhe escreva algo sobre reciprocidade. O caminho etimológico dessa palavra é tão complexo que merece um gráfico, coisa que não sei fazer, motivo que me leva a tentar uma explicação linear:

  1. "Recíproco alcança-nos diretamente de reciprocus: uma palavra latina que significava ir para trás e para diante, ida e volta. Usa o sufixo re-: de novo, outra vez. E deriva de procus – pretendente (isto é: alguém que pretende, ou quer, alguma coisa; um angariador; usava-se também para referir-se a gigolô). Procus, por sua vez, derivou do prefixo grego pro, que responde por “antes”. Que, a seu tempo, derivou de prex – oração, pedido."

Maravilhas da etimologia! Ora vejamos: essa palavra que atormenta minha amiga remete-a sem ela saber à falta de oração (ato de pedir ou implorar); à falta do que vem antes; à falta de alguém que pretenda, que queira, alguma coisa (que ela pode dar?); à falta de poder ir e vir e aposentar as certezas, as verdades, as singelas capacidades que construímos para nos adaptarmos tolamente àquilo que os outros esperam de nós. Imaginando que assim seremos felizes e que deixaremos de avançar e recuar na vida, e que esta então será um lago de tranquilidade, sem nuvens, sem tempestades, uma linha direta que nos conduza diretamente ao paraíso.

E de repente acordamos uma manhã e pensamos: “Mas que raio de solidão! Onde está quem devia estar aqui ao lado? E que disse que estaria?”. E lá vamos nós em busca da reciprocidade, do manter-se em movimento, do ir adiante e atrasar-se logo depois (o que equivale a ter um próprio ritmo). Difícil é quando falta algo de antes, falta esse alguém que pretenda também, porque a reciprocidade a dois demanda passadas equilibradas e sincrônicas, nem sempre fáceis, nem sempre reais, nem sempre juntas.

O caminho da reciprocidade atravessa de vez em quando o da retribuição. Como se um se nutrisse do outro. No entanto, há uma diferença básica: retribuir ainda nos liga à ideia (e ao fato) de tribo, que nos acompanha há milênios, e que faz com que entendamos que há laços que nos ligam, visíveis, e que têm a ver com a nossa relação de sangue, de etnia, de grupo – de tribo. A re-tribu-ição indica que algo deve ser dividido, compartilhado entre vários, aqueles que, numa perspectiva ou em outra, são nossos iguais. A reciprocidade é apenas movimento, um pêndulo no espaço que faz com que, de madrugada até agora, eu queira ser recíproca, eu queira avançar e recuar junto ao pensamento da minha amiga, preso na redoma de si mesmo lá longe, onde meus olhos não alcançam mas a minha alma sente. E, ao mesmo tempo, que não queira que nada seja retribuído, porque não é preciso que sejamos do mesmo lado, da mesma rua, da mesma família, da mesma ideologia, da mesma presença. Até porque a graça desse pêndulo que, recíproco, se estica e oscila entre nós é, justamente, poder refazer-se dia a dia, indo e voltando como um gesto imenso, sereno e solene, nessa dimensão que é a das relações entre dois seres humanos, e que não se norteia pela sua origem, mas pela sua capacidade de entrega.

Essa amiga, ao longo dos nossos anos de amizade, cheios de mesas postas para incontáveis chás e cafés, mostrou-me o ser discreta sem deixar de ser contundente. Longe de ter aprendido, sobretudo a parte da discrição, observo-a aqui de longe, tal qual se materializa diante de mim como exercício de memória, e admiro-lhe a seriedade e a forma categórica como se move para diante e para trás, ela recíproca em tudo, à espera de que o mundo também o seja. Sou-lhe recíproca daqui de longe, mas nada posso retribuir-lhe: como ela, oscilo entre polos que muitas vezes não entendo, feliz e aflita de que eles existam. E prefiro mil vezes ser-lhe fiel na reciprocidade que prometo, indo e vindo num abandonar de certezas que me abram as portas do que está por vir, sabendo que também ela estará recíproca ao meu lado quando alguma delas se fechar e me deixar inconsolável.

24/02/2012

Coisas de obra


Há algumas pessoas na vida com quem é difícil perder a paciência. Na minha, Valdete é uma delas. Conheço o Valdete há uns 20 anos. Nem eu nem ele nos lembramos de como começou, mas já tem isso: duas décadas.

Valdete é pedreiro, construtor de casas, materializador de sonhos. Depois de ter construído a nossa casa, tornou-se nosso afilhado de casamento. Vivemos dividindo a mesma obra durante meses; compartilhamos feijoadas, moquecas, bolos e xícaras e xícaras de café. E viramos amigos. Ao contrário de outras histórias, fazer reforma em casa era uma alegria: Valdete vinha e era uma conversa só, um bom humor só. Seus auxiliares, sempre gente que precisava de ajuda. O Luizinho enganou a todos meses a fio, com a sua garrafinha térmica com um café que não dividia com ninguém e que um dia descobrimos que vinha era cheia de pinga. E Valdete, aquela paciência, dizia: “Luizinho, cê não vê que essa maldita tá acabando com você, meu filho?”. E Luizinho sorria com seu sorriso desdentado e dizia: “Saber eu sei, Valdé, mas fazer o que?”. Já se foi, o Luizinho; no meio de um porre caiu na represa e só apareceu três dias depois, já comido pelos peixes. Os olhos do Valdete enchem-se de água quando me conta a história: “era como um filho, sabe?”. Valdete coleciona filhos dessa forma.

Nasceu na Paraíba, o Valdete. Tem uma natureza mansa. Tranquila. Justa. Trabalho mal feito ele resolve de um jeito só: faz de novo. Sem perder o bom humor. A paciência às vezes escapa, mas só se percebe nos olhos. Nessas horas, acho que o Valdete sabe que é melhor manter a boca fechada. Eu já aprendi um tanto de coisas com ele, e ele nem desconfia.

Quando nossa filha Gaia nasceu, Valdete estava trabalhando em casa, fazendo um muro lá na frente. Vim avisar que logo ia ter bebê por ali, e ele aflito, sem saber se subia se descia do andaime, se me levava pra maternidade, se me carregava no colo... Quando ela nasceu, e ele entrou em casa pra vê-la, Luizinho e os demais atrás dele, era a reverência em pessoa, o visitante de um presépio acabado de descer do céu. Se usasse chapéu, certamente o traria entre as mãos, amarrotado pela emoção e pelo nervoso. Quando Gaia partiu, Valdete passou longas horas no velório, desconcertado, os olhos vermelhos e inchados, e me deu um abraço que disse mais do que as palavras diriam.

Valdete morava numa chácara, naquela época. Perto do Natal, decidiu engordar uns porquinhos. Veio um amigo e pediu-lhe um pernil: “pago depois, pode confiar”. Nunca mais. E Valdete, avesso à cobrança que sugeríamos, filosofava: “Sabe o que acontece, Ana? Desse aí eu já sei o preço, que é só de um pernil. Se não me paga, tem a vantagem de nunca mais me procurar mesmo, e amigos desses eu quero todos é bem longe”. 

Às vezes o santo do Valdete não bate com o de quem o contratou – e sofre, porque deu sua palavra e não pode deixar a obra, e o mal estar envenena-lha os dias. Com tudo isso e por causa de outra obra, abandonou-me várias semanas. A obra parada, o entulho fora da caçamba, o monte de areia se esparramando por baixo das patas dos cachorros, entrando em casa por todas as frestas, pilhas de tijolos na expectativa, o reboco que ainda existe caindo paredes abaixo... Faço o que posso, que é pouco, e me deixa deveras descontente. E Valdete sumido. Ligo pra ele e ele responde: “Ô Ana, saudade docê! E aí? Te abandonei não, viu? É que tá complicado pro meu lado.” E promete aparecer no finzinho da semana.

Apareceu ainda agora. Promete que vem semana que vem. E me oferece aquele sorriso de sempre, de gente de verdade, que vive de verdade e gosta dos outros de verdade. Minha irritação desaparece como num passe de mágica: impossível brigar com pessoas assim, que nem o Valdete, sequer discutir. Sorte é tê-las por perto, da maneira como puder ser. Sorrio de volta e respondo: “Ô Valdete, some não. Segunda feira tem café prontinho a hora que você chegar.”.

23/02/2012

Personagens

Em toda narrativa, sobretudo nas mais longas, há um momento em que se tem a certeza da falta. Falta alguma coisa, e não se sabe o que. Há várias saídas: pode ser uma questão de foco (tenta-se outro), pode ser uma questão de excesso de descrição (diminui-se), pode ser uma questão de diálogos mal construídos (típico, e fatal). E por aí vai.

Mas às vezes é o tempo. A sua passagem. E a consequente espera. Muito parecido àquilo que amadurece dentro de um fruto, ou dentro de um útero, ou dentro de um coração que estava assim, à espera.

Aprendi que essa espera é traduzida pelo ato de engavetar um texto. Literalmente. Tiro uma cópia papel, coloco-a dentro de um envelope, e guardo-o dentro de uma gaveta. Onde, aliás, há já outros envelopes guardados. Por um lado, é um desespero, sobretudo quando se está em pleno processo, quase que dependente dessa história que se materializou. Por outro, é um alívio, porque no fundo não é difícil se desfazer da própria imaginação. E, desta vez, ao desengavetar o envelope, descubro a falta: um personagem. Estava ali, presente e claro. Tinha nome (embora não fosse o correto), tinha os gestos, tinha a fisionomia, até uma história anterior à ação do romance, aspirações, gostos, uma forma peculiar de olhar. Mas ao mesmo tempo não estava, porque faltava uma espécie de concretude que só se revela de repente, quando é hora. E percebo que, ao que já estava ali, tão nítido, juntam-se detalhes que fazem com que a ação dos outros personagens mude, porque a entrada do que é novo inevitavelmente provoca mudanças. E ainda bem.

Pois a esse romance (porque é de um romance que se trata) já se dedicaram alguns leitores - e agora, quando lhes conto o que acontece, quando lhes prometo que agora sai, que agora termino - digo-lhes também que foi assim, de repente, com a surpresa de um personagem que, além de assumir seu verdadeiro nome, mudou também de configuração, de importância, de relevo, e deixa uma marca clara e firme onde era só areia molhada.

E, como do interior de um útero em sombras, nascem páginas e páginas, num fluxo contínuo que preciso segmentar e organizar para que esse personagem, que agora é novo, vivo, forte, irresistível, possa se entremear aos demais, fazer-lhes parte, pertencer-lhes. Demora, cansa os olhos, as costas, às vezes até falta o ar - mas vale muito, muito a pena, porque maleável ele se acomoda, gentil ele se aproxima, generoso ele se oferece.


Foto: Gaya Rachel Neves

20/02/2012

Esquinas


Acordei plural, hoje. Sete janelas de texto abertas à minha frente: a primeira, uma série de poemas vazantes a meio da noite, um turbilhão de palavras tentando explicar-me na madrugada; depois, um artigo com destino certo, sério e relativamente denso, que confesso hoje me cansa (mas tem prazo...); uma tradução, instigante graças a deus; uma revisão curta, mas dura; um romance a caminho do fim, trabalho redobrado; outro livro, surpresa com a qual ainda não sei andar ao lado; e uma carta, que não sei como terminar. Pulo de uma para outra, sem saber por onde continuar, tudo em estágio de pensamento que sei é preciso respeitar. Por isso, abro mais uma, esta, como se fosse um refúgio, um sopro de ar sem compromisso, um encontro inesperado.

Andei de manhã cedo pela cidade, nesta nova opção urbana de vida que não me retirou a insônia do caminho. Tem seus atrativos, a cidade. Descubro que se compram esquinas: paro e rio, como é que pode uma coisa dessas? Ainda assim, penso, talvez essa seja a solução: uma esquina na encruzilhada, para que possam haver dois horizontes, duas calçadas, duas vias de chegada e partida. Uma forma plural de vida, que consiga saber atravessar a rua sem atropelos, venham carros de um lado e do outro; passa-se de uma calçada à outra sem tumulto, suavemente, como um estado de amor a tudo. Demanda o triplo de atenção, provavelmente, qualquer deslize pode ser fatal. Há mais barulho, nas esquinas, e por isso se preferem às vezes casas a meio de quarteirão. Onde a vida corre mais calma, há vizinhos a ambos os lados. E os carros só passam na frente, sem surpresas.

Ruas convergem inevitavelmente para esquinas. E as esquinas tendem a deixá-las passar, livres, em seu caminho reto; às vezes as ruas sequer olham para ver quem vem do outro lado. Mas há as que param nas esquinas e olham de um lado e do outro, sobretudo antes de atravessar e seguir caminho. Exercitam mais a atenção, estas. O estado de presença. Às vezes demoram-se, vontade de serem lentas. São ruas presentes, de olhos abertos e sorrisos silenciosos. E algumas ficam, e deve ser bom tê-las na própria esquina.

Pergunto-me o que levará um sujeito a vender a sua esquina. Cansou-se do mundo? Desiludiu-se? Caçaram-lhe a vontade de atravessar para o outro lado? Ou talvez tenha atravessado. E tenha se mudado de esquina. Não é preciso viver a vida toda na mesma calçada de sempre. Os caminhos estão abertos ao querer dos passos: basta querer andar e atravessar a calçada. Ou comprar uma esquina e viver nela com a tranquilidade possível, dois endereços diferentes à escolha, duas direções que não se anulam nem se impedem. Nada de singular nelas: tudo plural, como eu hoje, aqui diante da tela.

17/02/2012

Vida virtual

A noite ofereceu-me bons papos, daqueles que nos mantêm acordados sabendo que o lógico seria um deixa-disso-vai-dormir. Quando a distância impede que os olhos se vejam, as letras que surgem aos poucos nas janelas de conversa parecem fios tecidos com a presença cheia de afeto do outro. 


Como é que se interrompe uma coisa assim? A saudade se atenua. As dores se dividem. As alegrias se espelham. E o bem que um faz tranquiliza o coração do outro.

Prestes a uma cirurgia em pleno carnaval, um amigo antigo, daqueles sem data, nem de produção nem de validade, embarca numa conversa que parece falha de sentido – mas há um senso por trás, e eu sinto-o enquanto primo as teclas que desenham o que escrevo na tela. De repente a vida virtual tão real, as palavras querendo ser, não há vazios, mas excessos de sentido. Um exagero concreto de tudos. 

Uma outra presença flutua pelos mesmos céus por onde eu mesma flutuo, e encontramo-nos lá, assim como nos encontramos neste canto de tela. E de repente a presença se concretiza, frágil e convicta ao mesmo tempo. Leem-se as entrelinhas, o que deixa de ser respondido, não se insiste, e aprende-se o tempo, o senhor de tudo, o tempo, o tempo.

Tenho recuperado, graças aos recursos virtuais, amizades que o tempo fez questão de iludir. Da primeira infância, pessoas que demoro a reencontrar na memória, as fotos ajudam mas não parecem da minha vida. Já outras são reencontros tão alegres, tão pouco comedidos, que parecem ser de fato de pele e osso, sangue e músculos que se reencontrassem num abraço caloroso. E ainda assim, mesmo sem o corpo a corpo que valeria um beliscão, é tão bom saber que estão lá, que não nos perdemos achando que não nos encontraríamos.

Amigos que só existem aqui inspiram-me um tanto de pensamentos. Alguns conhecem tão bem a minha escrita que a saudação já os faz perceber o meu estado de espírito. Vejo o que me dizem, com a liberdade que confere o nunca nos encontrarmos frente a frente, uma intimidade que se pode mais forte, e tanto se me dá que seja ilusão ou invenção o que contam, o que dizem, o que respondem. É alimento da mesma forma, e eu seleciono e aproveito tudo o que aos meus olhos posso aproveitar. E é muita coisa - são muitas, muitas palavras, que se juntam às que já vivem em mim e me fazem desaguar em forma de escritura no mar de papel que me rodeia. Só me resta agradecer.

16/02/2012

Calmante de ânimo


Nada como um dia após o outro, sobretudo quando os que se vivem parecem ter 48 horas - parece até que o dia é o mesmo, mas na verdade verdade não: já é outro, dentro do mesmo. O texto anterior deixou muitos incomodados. Uns me aconselham ao longo deste dia que são dois a arrumar gavetas, receita infalível da avó do missivista, que via na atitude uma predisposição a arrumar a própria vida. Outros se espantam e soltam um “Como assim, você muda e tá desse jeito?! Volte, corra!”. E tem os otimistas: “Relaxa, Ana, é claro que você vai se adaptar!”.

E tudo isso me cria uma orelha na frente da pulga. Melhor escutá-la (à pulga).

Adaptar tem a sua origem lá atrás – lá onde a raiz vivia sozinha, solta no espaço, pronta e adequada ao uso. Uma palavra apta. A ela juntou-se esse sufixozinho tão pequeno e simples,um ad que parece uma brisa de verão, leve e tão fina que mal se sente já se foi. E que se apresenta em outras palavras, que vêm até ao caso.

Como admirar. Lá está o sufixo a introduzir uma das palavras mais bonitas e evocativas do latim clássico: mirari. Surpreender-se, encantar-se, aturdir-se.  Se recuamos um pouco mais, chegamos a mirus, aquilo que é maravilhoso, estranho e digno de nota; nem sempre agrupamos essas três palavras numa mesma intenção, mas pensando bem... quantas coisas que nos rodeiam são maravilhosas, notáveis... e tão, tão estranhas. Tanto que quase as deixamos de lado, ou olhamos para outro lado fazendo de conta que elas não estão ali, tentadoramente maravilhosas e notáveis. (Os falantes de castelhano têm sorte: quando olham alguma coisa, siempre la miran!)

E, assim que a tudo isso se junta o ad, junta-se um “além disso”, um “para”. Admirar é por isso um "para se surpreender", "para se encantar", "para se aturdir" com tudo o que é maravilhoso, estranho e digno de nota. Esse olhar com encantamento é justamente o que se precisa quando o assunto volta – ou seja, quando é preciso ficar apto e pronto outra vez. Explica-se essa necessidade insana de se adaptar, o tempo inteiro, a tanta coisa. Tanto que até inventamos um "readaptar", para que fique claro que é preciso lembrar de se aturdir de novo com aquilo que já nos aturdiu antes. Ufa!

Para tornar-se apto mais uma vez (seja lá ao que for, à vida, ao cotidiano, ao amor, a si próprio) é preciso ajustar, modificar, encaixar e fazer caber. Movimentar a alma e o corpo na direção nova que se manifesta; sair da zona de conforto; penetrar no desconhecido; aceitar as mãos estendidas sem saber o que é mesmo que elas contêm; aprender novos números de telefone; conhecer as outras pessoas que fazem parte do próximo futuro. Tanta coisa. Mas sobretudo admirar e admirar e admirar. Pra que fique mais fácil o adaptar.

E é assim que as palavras nos salvam. J

Nuvens


Nem adianta o céu azul lá fora, menos ainda o calor que se anuncia para perto do meio dia: há muito pra fazer e quase nada daquele ímpeto necessário ao cumprimento das coisas. Passeio pela casa como se não me dissesse respeito tudo o que precisa acontecer. Faço listas que posso imaginar cumprir, mas só até o momento de terminá-las. Rasgo-as. E começo outras.

Ao menos comprarei o que falta. Embora disso dependa sair, andar e escolher. Não quero nenhum dos três: quero o estado de parada atenção interna, e mais nada. Há um vulcão dentro de mim em processo de doma, e eu quero perceber o exato momento em que o que é não basta e o vulcão consegue galgar-me a superfície. Para que aprenda qual é o momento, e o momento não me surpreenda ao abrir a porta.

Alguns dos filhos aparecem a intervalos regulares. Não posso ajudá-los, cada um de nós numa solidão de compartilhamento difícil.

Há experiências de vida assim; descem lentas como orvalho a meio da madrugada, escorrem como luzidios fios de cristal quando a alvorada se anuncia, e se transformam em mil cores boiando num lago em que mergulho a minha sede, mas sem conseguir saciá-la. Porque o lago é um espelho, e deste lado só vejo o reflexo. Sem mergulho. 

Só nuvens num dia cor de azul celeste.

14/02/2012

Cratera de caixas


Consegui encontrar um espaço no meio desta casa-em-mudança-e-obra para escrever. Parece uma cratera brotada no meio das caixas – olho em volta e só há caixas e caixas, uma certa penumbra e um silêncio que (descubro) só o papelão provê. Um silêncio de base sepulcral, naquilo que de sagrado e eterno tem um sepulcro. Sinto-me em casa, rodeada das coisas que a constituem.

As montanhas de caixas não obedecem ordem alguma, é mais um caos criado por todos os que descarregamos o caminhão e precisávamos andar rápido sem saber qual a direção – servem-me de apoio para todos os papeis, diagramas, listas, desenhos, folhetos que me acompanham nos últimos meses. Mantêm-me ancorada à história que escrevo, que se desenrola diante de mim de formas surpreendentes e que aguardava pacientemente por um pouco de espaço qualquer que lhe permitisse permanecer em estado de desdobramento. Um lugar em que pudesse deitar-se ao meu lado e continuar o seu andar. Estou feliz por termos nos reencontrado.

De vez em quando alguém vem me visitar – espreita por cima das caixas e ri. Ainda não acredita que, de fato, seja possível que eu esteja trabalhando. Estou. E quando saio preciso esgueirar-me por entre duas caixas, apertadas e sinalizando que a vida é provisória o tempo inteiro. É de tal forma apertada esta cratera de escrita que ninguém me acompanha, porque não cabe. Como diz minha amiga Suzana, porque não tem cabimento mesmo. Estão estreitos os meus lugares.

Gosto de ficar aqui, e perco-me olhando as caixas, todas da mesma cor, todas paradas esperando o tempo voltar e olhar para elas. Gosto da ideia de criar uma margem de tempo que me faça esquecer o que contêm, para que a cada uma aberta eu sorria e me divirta com a infinita e proverbial capacidade da minha família de guardar todos os inúteis e ricos detalhes da vida. Mas para isso é preciso que o tempo faça seu caminho de forma ampla, e enquanto isso eu vivo dentro do mundo que se criou dentro de mim, esta história paralela, onde me dou ao luxo de ser vários, que absorvem de mim partículas esparsas, personagens a quem as contradições nem criam problemas nem afligem. Aparecem-me como fantasmas amigáveis, têm nomes e biografias, e apresentam-me as suas dores e os seus sonhos para que, de formas que desconheço, os converta em meus próprios.

As caixas à minha volta permitem que pense o passado uma e outra vez, que reveja na sua opacidade baça as cores dos milagres cotidianos. Encosto-me a elas um pouco como se fossem a salvação dos pedaços que em mim vou desencaixotando aos poucos, ainda surpreendida pelos rumos que a vida toma sem nos perguntar quase nada. É um alívio ter onde me apoiar sem sentir perigo.

10/02/2012

Dia de casamento



À Mainara e ao Thadeo

Dois amigos queridos casam-se neste sábado à tarde em Botucatu. Espero que o sol sorria de manhã, menos inclemente talvez do que nos últimos dias, e que quem sabe à tarde a brisa da serra nos alcance, e possamos refrescar os pensamentos para melhor acompanhá-los.

Convidam-me para madrinha, e ao Ricardo, meu companheiro de vida, para padrinho. E automaticamente penso em nosso próprio casamento. Não no dia em si, mas no seu processo, no seu deambular pelos anos, nas idas e vindas, voltas e contravoltas. Se me perguntam se é difícil manter um encontro de tantos anos, encolho-me para ver mais de perto o que são esses anos - sou pequena perto deles. Não sou mais a mesma, nem ele é mais o mesmo. Parece-me que ele se transformou mais do que eu, à medida do que foi preciso, à medida do que as urgências pediram, do que as dores exigiram. Mas dizem-me que não, aqueles que nos conhecem, balançando a cabeça como se eu dissesse alguma bobagem – mudamos os dois, em consonância conosco mesmos.

Casamento é processo de mudança a tempo inteiro. De conquista de controle dos próprios fantasmas, para que a existência do outro possa ser a que deve, a que precisa; um interregno em que espaço e tempo abrem-se para a compreensão de que o caminho mútuo é composto de dois caminhos em separado. E que os caminhos em separado estão abertos, mas precisam de proteção, para que os tropeços não provoquem dores desnecessárias.

Porque casamento dói. Claro que dói. O tempo às vezes não é um uníssono, nem sempre a sinfonia é harmônica. Mas é música, o tempo inteiro, é Palavra e som entrelaçados em dois corpos que dançam sempre, de frente ou de costas, e seus ouvidos precisam acolher as músicas de cada um sem julgamento. Tem um quê grande de entrega, e pouco espaço para tudo o que é raso. Aqueles que se aproximam devem saber disso, porque ao chegarem à anteporta estacam e pensam de novo se vale a pena fazer-se presente. Quando o fazem, sabem o que arriscam, porque o reino da intensidade vive do lado de dentro, compromisso de vida que se quer acima de aparências e convenções.

Penso no que poderei ofertar a esses dois amigos, qual das minhas mãos devo aproximar para que o peso do tempo ao passar se torne mais leve, para que o coração sossegue quando o descompasso for a regra, quando o que parece falta alheia seja a grandeza daquele que se reconstrói todos os dias. Porque tudo isso será, e é bom que o seja, porque depois de cada tempestade a bonança é cada vez mais gloriosa. A mão que aproximo é a que previne o sentimento de posse desmedida, a que alerta a vontade diferente inevitável – uma mão que acolhe e diz que tudo faz parte. E que às vezes é preciso deixar o tempo passar, respirando até o âmago de si próprio para que o outro possa ter oxigênio. E, nunca, jamais, aquietar o próprio coração na dor do coração do outro.

Enquanto preparo a roupa que vestirei no dia de seu casamento, penso em meus dois amigos, no seu encontro, nas voltas que a vida deu, bem à minha frente, para que o avistar-se mútuo fosse possível. Testemunha ocular da história, posso dizer-lhes que a predestinação que sei sentirem está exposta em muitos momentos partilhados – o universo conspirou enquanto respiravam as próprias vidas. Que a vida que escolhem neste sábado seja amparada pelos universos da luz e que, enquanto dure, pese o quase lugar comum da poesia, seja eterno e chama o amor que sentem.

09/02/2012

3 tempos


Anteontem

Lição de casa de filosofia: mãe, preciso saber o que você pensa: como você prova que existe? Descartes aflora rápido mas os lábios se controlam. Descartes não sabia de tudo, e filho quer saber o que eu penso. Portanto, ele sabe que penso, não adianta apelar para máximas abstratas. E não é só essa pergunta, mas uma série delas: como você prova que o que você vive agora não é só uma lembrança? Como você prova que isso que você vive é real?

Olho para dentro de mim mesma, e não consigo provar-me que existo. Procuro-me por todos os lados, perdida que fiquei dentro de um outro, e aí respondo-lhe: é o outro que prova a minha existência, que sou eu sem o olhar do outro? Quase lhe falo de alteridade, mas não vem ao caso mais um conceito jogado no espaço.

Ontem

Os sons do mundo ficaram mais fracos – apesar dos dois ouvidos congestionados pelo excesso de água dos últimos dias, piscina, chuveiro, piscina, tentando driblar o calor que assola por poros e veias, descubro que são todos os sons do mundo que ficaram mais fracos, e não apenas aqueles que dependem dos ouvidos para se fazerem ouvir. Os sons do mundo ficam mais fracos e eu mais fraca diante deles.

Hoje

Conceitos desfeitos como pó. Um estado de desconceituação. A mente não gosta, sai em passeio de buscar respostas. Porque eu não as tenho, e aviso-a: deixei-as dentro do outro. Desfiz-me de mim mesma, e meus olhos não dizem tristeza, só dizem que não estou. Não estou nada.

Porque durmo e acordo com a certeza de estar, mas um vento áspero vem e me derruba a alma, um hálito acre atravessa-me a pele e me desconcerta, me desalinha. E me diz que é perfeito. Mesmo sem ser. Porque a perfeição só existe a caminho. E as palavras tornam-se estátuas de pedra entre os meus dentes, salitre queimando o céu escuro da minha boca, vazio das estrelas-palavras que o povoam. As palavras secaram-se. Calaram-se. E eu com elas. Eu com elas num limbo, o silêncio pesado, angústia por trás das hélices de um ventilador ligado.O lugar de onde nascem fechou-se, inerte, à espera não sei de que: morte, torpor, agonia? Há um voo de pássaros sem sentido defronte da minha janela, um sem razão repentino, tempo e espaço escoados de repente para fora da minha pele. Desrevisto-me com uma sensação de peso que não conforta. Estou sozinha dentro de mim.

06/02/2012

Vulnerável


Diziam-me hoje (falava-se sobre procedimentos cirúrgicos, talvez) que há cortes que parecem pedir não só precisão, mas também leveza, uma espécie de ternura na sua forma mais lenta, que deixe o sangue escorrer sem violência e sem trauma. Uma forma de dor que mais fortaleça do que determine o princípio do fim. Não sei – cortes são cortes. 

Questão de vulnerabilidade, parece – no caso da conversa, até mais a percepção da vulnerabilidade do outro, ali à flor da pele tão pronta ao corte, do que a consciência da própria. Talvez seja um cheiro diferente, um certo tom que se torna visível assim que os focos da mesa de operação se acendem. Um repentino abrir-se de portais que a mente não explica, e na maioria das vezes nem a medicina. E quem consegue percebe e, além de preciso, é leve e terno e lento. Talvez demore mais tempo, talvez acaricie ao de leve a pele antes de a cortar, para alertá-la, prepará-la, fazê-la saber que a mão que corta é a mão que afaga. Para que o corpo que não é carne deixe de estar vulnerável e se torne pronto. Cortes são cortes, mas há mãos que sabem cortar e mãos que ainda não aprenderam.

Tudo aqui em casa está, esta noite, vulnerável – tudo atento ao amanhã mais que ao hoje, a começar por mim. Quantas perguntas, daquelas que encobrem mal a ansiedade que se instala, pequenos corpos para grandes almas de repente em suspenso sobre a própria vida. Ou nem tão de repente, se pensarmos que estamos todos em suspenso, levitando sobre as razões de cada coisa, às vezes apoiando um pé, uma mão, e percebendo o infinito. Todos vulneráveis, perceptíveis, atentos, como nos quer essa lua quase cheia aqui fora. O mesmo céu que a todos cobre, noite fechada, ruídos ao longe, a esperança equilibrada na aurora que vem chegando. Afago-os nessa escuridão que se formou, minha mão querendo ter aprendido o corte, mas eu mesma sem saber exatamente onde e como estou, sem saber até onde e quando e onde e como ir, para que a vulnerabilidade não se torne insuportável e me faça tropeçar no que não existe.

04/02/2012

Mudanças

Em trânsito. Entre um lugar e outro, o coração entre o batimento e o descompasso, sem lugar certo ainda, oscilando como um pêndulo sem haste. Mudanças são bons momentos para se vislumbrar o que acontece quando se vai e ainda não se chegou. Nada que seja desagradável - muito pelo contrário. A vida no fundo fica mais simples, mais clara, como se se carregassem menos coisas dentro da mala - ainda que a mudança pese toneladas e precise de um caminhão do tamanho do mundo pra carregar o que se parece com uma vida, mas não é a vida. Porque a vida é o que fica do lado de fora, lá e aqui. A vida não cabe. A vida não sobe no caminhão. A vida fica ao nosso lado, este de dentro, respirando em surdina.

As coisas que valem não cabem no caminhão, nem sequer dentro da palma da mão. São instantes fugazes, imperceptíveis, minúsculos, quases nadas que se perderiam não fosse um estado de comoção repentino. A mão não os colhe, são avessos a caixas, têm horror a cadeados, fogem se os tentamos fazer durar além da sua própria natureza. Mas de repente o estado de comoção se anuncia, e aí sim um instante entra dentro de nós, torna-se nossas entranhas, nossas vísceras mais escondidas, essas que poucos veem, poucos ouvem, quase ninguém colhe por entre os dedos sem deixar que caiam e se diluam no cotidiano apagado.

E nesse de repente a casa esvaziada de mim enche-se do mundo do outro, das coisas do outro, das lembranças do outro. Não sei se pedem licença para entrar, mas eu concedo-a, se me compete. E peço, a quem possa competir a licença, a permissão necessária. Em silêncio, de olhos fechados, sem que ninguém ouça ou sequer responda - é o pedir que importa, nem é preciso se ocupar da resposta. Pedir para que a despedida não o seja, mas presença. Para que a ida seja mais chegada que partida. Seja mais encontro que distância medida em quilômetros - desses que se estendem pelas estradas afora, cada uma numa direção, cada uma numa intenção, e o pensamento em uníssono acima do que separa e parte.

31/01/2012

Despedidas VII


 porque pessoa
é coisa que entrelaça



Aprendi que, às pessoas, é preciso deixar-lhes a mesa posta, a casa aberta, para encontrarem o espaço como precisam, quando chegam e nos tomam inteiros, num instante que não se retém nem repete. A minha mesa aprendeu a estar posta para a aflição alheia, seu destempero, o olhar em busca, a partilha, a precisão de fala, o silêncio cúmplice. Com o passar dos anos, aprendi a estar à espera e a levantar-me quando a vida chama, sem medir o quanto, sem perguntar o como, sem me atormentar de porquês, sem levitar acima do que me é estendido, sem perder tempo em querer agora saber o depois. E não me arrependo: levo comigo, como num baú de herança, uma coleção de olhares entrelaçados, o outro impresso em mim de tal maneira que só por ele sou mais eu mesma do que seria sem ele. Escolho deixar os desencontros para trás, todas as pequenas traições, os desgostos, as mazelas tão pequenas vistas assim de longe - prefiro o outro assim, entrelaçado em mim, e para ele a mesa posta e a porta aberta. Porque o outro é coisa séria.

Com os anos, a minha mesa aprendeu a pôr-se com chá amigo, sopa terna, pessoas inteiras em vez de pedaços, migalhas. Enfeito-a com flores e acendo-lhe velas, quando escurece. Cuido do fogo da lenha, às vezes fogueira ao seu lado, para que aqueça em volta quando o sol deixou de fazer morada. E mantenho-a posta e atenta, a toalha limpa, a cadeira pronta, para que ninguém me procure e desista porque a fome dure. Aqui estão todas as mesas postas nesta casa; a alma em calma, encho-me de lágrimas por todos os olhos que me ensinaram a ver, todos os olhos da minha memória que agradecem por existir. As pessoas entrelaçadas dentro de cada um deles.

As dores transformam os músculos em força e o sangue em espírito. Transformam-se em capacidade renovada de manter o passo, de erguer-se e ser maior para o outro. Em vez de olhar para trás depois de puxar a porta, fecho os olhos e olho para dentro; em mim, entrelaçados e coesos, estão todos os que pertencem a este pedaço de passado, na luz de seus melhores dias, seus lugares mais nítidos e precisos, ao longo destes anos e anos de amor. Dentro de mim, os que já se foram e os que ainda estão, os que se tornaram antigos nas minhas fibras e os que de repente se fizeram frequentes. O quanto avance, estarão a meu lado, porque de todas as proezas com que os deuses nos contemplaram, a memória é a mais fiel e perdurável, e me fará reeditar cada um, entrelaçado às mesas que porei e às portas que se abrirão nesse futuro que nesta manhã já se anuncia presente.

28/01/2012

Despedidas VI


porque  a vida
é um parto


E de repente, no meio deste vendaval que se alevantou, descubro que a Lua está em trânsito pela sexta casa do meu mapa astral, formando um ângulo harmonioso com o meu Sol. Ou seja: uma boa fase para organizar as coisas da minha vida, avaliar as questões pendentes e tentar solucioná-las. Daqueles dias em que olhamos para o espelho e dizemos: putz, ainda bem!

Embora haja quem pense o contrário, eu vivo tentando encontrar certezas. As dúvidas atormentam-me (se é que isso é uma forma de tormento), são elas que me procuram e não eu a elas. Assim que me aparece um trânsito astral que me sugere mais tranquilidade do que a que tenho normalmente, dou pulos de alegria. Quando abro as cartas e me aparecem a Sacerdotisa, o Julgamento, idem: serenidade, visão clara, separação de joio e trigo sem demora. Mas nem sempre é assim – a Torre aparece aqui e ali, soçobrando a minha vida, arrancando pedaços do que achei fosse um alicerce seguro. O naipe de espadas coloca-me em movimento em direção ao próximo estágio, o de copas alimenta-me o mundo do sentir, que é o que movimenta todo o resto. As cartas converteram-se, com o tempo, em refúgio e caminho de busca, um espelho fiel que retrata o que eu própria sei sem ver. Quando tenho a sorte de me tornarem útil aos outros, apaziguam-me.

As cartas do tarot estão presentes na minha vida há muitos anos. A primeira carta que tirei na vida foi a Imperatriz, a carta da maternidade por excelência. Não devia ter mais de 6 ou 7 anos de idade, mas lembro de ter ficado emocionada com a imagem, e por isso mesmo não a esqueci. As cartas andaram à minha volta aqui e ali, e finalmente ganhei o primeiro baralho e me diverti de brincar. As cartas ligadas à gestação, à gravidez, aos nascimentos continuaram pulando de dentro do baralho sem que eu as chamasse. E eu entendi que haveria filhos no meu futuro. Acertei, parece.

Porém, ligando os pontos, como o fez Steve Jobs naquele discurso que circulou à exaustão pela internet, percebo que não foram apenas os meus filhos, as minhas gestações, os meus nascimentos que as cartas mostraram. Essas cartas continuam presentes e ativas, mas multiplicadas nas crianças que tenho a honra e o privilégio de assistir entrando na nossa vida terrestre.

Esta semana, marquei uma consulta com a doutora/amiga Irene. Em parte porque era preciso mesmo, em parte porque está no rol das pessoas de quem quero despedir-me. Gosto da serenidade de Irene, e da maneira como chama todas as mulheres de “filhota”; gosto do carinho compreensivo que emana por todos e como é ao mesmo tempo irreverente e pragmática e decidida, às vezes impaciente, até. Irene formou-se há 43 anos. Aos poucos, pensa deixar o consultório, e eu ouço a Márcia, sua secretária de anos, recusar novos clientes, porque “a doutora está diminuindo o ritmo”. Olho-a enquanto ela preenche a minha ficha, e me pergunto se conseguirá diminuir a toada, e ir fazer outras coisas que talvez lhe deem menos prazer do que atender as necessidades das mulheres que batem à sua porta. E penso nas mulheres que não a conhecerão e que não terão à beira a sua força e a sua compreensão do que acontece, de fato, de fato, de fato, na hora de parir. Coisas que vão muito além das técnicas, quaisquer que sejam.

Irene apareceu na minha vida ia já a gravidez do Cândido adiantada. Achei estranho seu consultório, aqueles roxos por todo canto, das poltronas ao carpete, passando pelas paredes; pensei em levantar-me e ir embora, mas alguma coisa me fez esperar. O livro que levava na mão, introdução básica que inventei para qualquer médico com quem pensasse ter um filho, foi parar dentro da bolsa. Mas Irene viu uma pontinha assomando e perguntou o que era. E eu dei-lho, e ela sorriu ao pensar em fazer um parto em casa, novidade numa vida de tantos anos de obstetrícia. E sorriu mais uma vez, desta vez para o Ricardo, e disse: “Ricardo, havia uma música... uma música que era assim:”, e de repente começa a cantar a mesma música que a mãe de Ricardo lhe cantava quando era pequeno. Assim se iniciou uma parceria de carinho e respeito; uma parceria que não precisa ver-se para acontecer. Não é apenas uma parceria firmada nos partos em casa do Cândido, da Ilundi, do Tiago, da Lina, do Silas, queridas crianças nascidas todas de dentro de mim, de uma forma ou de outra, eternas estrelas do caminho, mas uma parceria que se estenderá quer nos vejamos, quer não, quer nos encontremos, quer não.

Pessoas assim, como a Irene, invadem-me nestes últimos dias de Botucatu. Deixo-as que me percorram. A minha memória resgata-as dos lugares onde as deixei esperando, uma memória comovida pelo assombro de que sejam tantas, e tão fortes, e tão poderosas, e tão marcantes no meu nascer cotidiano.

26/01/2012

Despedidas V

porque
a palavra é

foto: Samuel Athias


“A palavra me excita”. Quem diz não sou eu, mas Manoel de Barros, poeta em seus 90 anos, o que torna a afirmação altamente respeitável. No saboroso documentário “só 10% é mentira”, que deverei ao Daniel  dos Santos por toda a eternidade, o poeta fala e esparrama poesia por todos os poros. Há trechos de grande poder sonoro, de imensa força evocativa, mas para chegar até eles precisei assistir várias vezes, até conseguir passar além dessa frase tão simples, tão forte, tão verdade: a palavra me excita. Tomo-a emprestada, porque também a mim a palavra excita. Como ele, sou procurada pelas palavras, excitada por elas até o fundo da alma. A diferença reside no que faço com elas, no que elas desabrocham: o que nele é maestria, em mim mera tentativa.

Palavras como “precariedade” (que deriva de prex, a mesma raiz de prece, o que nos leva diretamente à necessidade de prece para deixarmos de ser precários), ou “acaso” (do latim casus, por sua vez derivação de cadere, que significa cair; quase que literalmente “aquilo que cai na nossa frente”), levam-me às alturas. Levam-me aos dicionários, às perguntas, aos outros que sabem tanto, e me surpreendem com a sua capacidade de procriação absoluta. São revelações em forma de letra, que é a única forma que as coisas têm de me revelarem o mundo, acho. Reviro-as por todos os lados e, como acontece ao poeta, percebo que se procuram pelo cheiro, umas às outras, como se pressentissem quem está à porta antes de abri-la.

Há palavras que chegam em grupos. Estão dentro dos textos, e pulam diante de mim como se ganhassem vida própria, tivessem outro colorido, brilho particular. No poema (ou oração?) que os alunos waldorf mais velhos declamam todos os dias de manhã, há duas palavras com um poder de catapultar excitação. “Na amplidão do espaço”.

Pare de ler. Feche os olhos e repita em voz alta: “na amplidão do espaço”.

Eu não sei se as vogais, se as consoantes, se o encontro do todo, mas “amplidão” e “espaço” chamam-se irresistíveis uma à outra e fundem-se num aspecto único do tamanho do céu sem fim. Se precisasse eleger um momento do qual sinto saudade, daquela saudade de doer dentro do peito, de tão funda e potente, aquela saudade em que os dias passam e o coração não cessa de evocar - seria aquele momento em que essas duas palavras, “amplidão” e “espaço”, abandonam o interior dos jovens para se fazerem companhia no espaço aéreo de uma sala de aula. Nessas horas, se não estivesse atenta, perder-me-ia no mar de verdes espalhados do alto da janela, e confundiria o verso seguinte, e me atrapalharia tanto que qualquer um perceberia. E eles ririam, os jovens, que rir é coisa que quem é jovem sabe fazer sem ter vergonha, nem própria, nem alheia. Um alívio.

Pode ser que a ouvidos desatentos algumas palavras pareçam quase nada. Porque são do dia a dia, talvez, palavras simples. Como “praça”. Ou “dentro”. Parecem tão pouco, e no entanto induzem-me o estado de excitação. Quando as encontro, e me apodero delas (ou elas de mim, que vem sendo o mais comum), perseguem-me dia e noite; povoam meus sonhos e só sossegam quando lhes dou atenção e procuro as suas raízes, os seus prolongamentos, seus espaços únicos onde podem possuir-me através do papel onde as registro, agrestes e ácidas e doces e ternas.

As palavras que me excitam podem chegar escritas ou faladas, engasgadas, sussurradas, esboçadas. No exercício de seu poder, escavam-me profundezas repentinas e abruptas. Atingem-me no que me veste mais indefesa e frágil, uma surpresa a meio da multidão desatenta. Demandam, como eu mesma, antes cuidado que contenção. O meu ouvido insiste em reverberar frases teimosas, uma espécie de passado em conluio com o futuro, uma  perseguição mascada nas entrelinhas. É ele quem ouve dentro de mim os espaços de alma em aberto, e porque me avisa corro a protegê-los com um véu de palavras, daquelas com propriedades anti-sépticas e cicatrizantes.

“Não me subestime: às vezes me faço de cego para ver mais longe”. Quem diz não sou eu, nem Manoel de Barros, mas Cazuza. E hoje eu também não me faço de cega. Durmo com os olhos abertos, guardiã das  presenças estacionadas a meu lado.

Despedidas IV

porque o equilíbrio
é precário


Nada como uma mudança para perceber a quantidade de coisas que se juntam, por dentro e por fora da alma, e não é possível carregar. Por não conseguir que seja de outra forma, muito ficará nos sótãos, aguardando o tempo e a coragem de mexer em guardados mais antigos, ou escondidos. Já há bastante com o que as prateleiras seguram, os armários guardam, as gavetas escondem.

Começo pela cozinha. E logo me pergunto por que por aqui, pelas panelas. A cada uma que espano, a lembrança do que conteve. Histórias que não tenho tempo pra parar e pensar, sequer escrever, porque o tempo ruge, e a tentação de ficar-se no passado por mais tempo pode atrasar-me o futuro.

Vêm ver o que me acontece – achei que estava rindo por dentro, mas não: é por fora também. Nesta casa vazia de crianças que viajam, filho grande que já se foi, até meu pensamento se torna audível. Divirto-me dando nome a cada panela, ligado à sua memória mais marcante. E assim todas recebem nomes de amigos que aqui ficam – “aqui”, note-se, sendo o espaço do meu coração, que amigos não precisam de casas, nem de cidades, nem de distâncias que se materializam só nos mapas rodoviários.

Panelas são seres intrigantes, como os amigos. Umas, entregam-se sem medidas; cozinham qualquer coisa, sorriem para qualquer ingrediente, gostam de qualquer colher, não quebram e raramente trincam. E, mesmo quando o fazem, descobrem-se úteis de outras maneiras, ou apenas enfeitam a vida da gente, guardando a história numa prateleira para onde se olha de quando em quando em busca de conforto. Outras, têm seus caprichos: não falam com este ou aquele tempero, discutem com a colher, deixam cair a tampa. Há as que sempre queimam as coisas no fundo, deixando aquela crosta esturricada que dá trabalho depois a quem a lava. As que derramam com incrível facilidade. As que sujam tudo em volta. As que resistem a sair do armário, ficam escondidas lá no fundo, quietas mas (eu sei) atentas. Não as quero trazer pra fora antes do tempo. Uma coisa aprendi (espero): a respeitar o Tempo.

Decidi, anos atrás, pendurar algumas do teto, para desocupar os espaços e livrá-las de estar por baixo da pia, escondidas atrás da cortina de chita. Naquela altura, logo percebi que esse lugar se destina apenas a algumas, especialmente às que têm cabos longos porque gostam que as peguem de longe, sem muita proximidade com as mãos. Tudo bem. Abaixo delas, sob a bancada, uma pilha de panelas grandes e bojudas, umas de pedra, outras de barro. Acomodam-se umas às outras, uma irmandade serena que insiste em ir inteira para cima do fogão: em dia de seu uso, são quatro, cinco, seis coisas diferentes, tudo borbulhando sob o fogo, numa conversa gostosa de comadres que por fim se encontraram no seu lugar preferido. Quando olham para cima, para as distantes panelas de cabo, riem e cochicham umas com as outras, numa alegria simples de gente que gosta de se divertir e aproveitar o que tem a seu lado. São, por excelência, as panelas das sopas.

As frigideiras são um caso à parte. Rasas, mas surpreendentes. Cheias de matizes. Aqui em casa, as preferências dirigem-se mais às frigideiras do que às panelas. Talvez porque a receita familiar que se aprende primeiro seja a das panquecas. Eu gosto da que me queima as mãos se esqueço do pano que lhe cubra o cabo. Mais ninguém gosta, e ela e eu olhamo-nos cúmplices.

Fogo é coisa que as panelas sentem de forma diferente. Estas daqui, à minha direita, gostam do fogão de lenha aberto, o fogo esperto de lenha seca, o calor repentino, que atordoa, que atiça o cheiro do tempero sem perder tempo. Outras, preferem a chapa do fogão, o calor que se espalha queimando quem se aproxima, o chiado que provocam ao saírem molhadas da pia e irem direto pro fogo. Já as da esquerda preferem a serenidade azulada da chama do gás, não gostam da sujeira do carvão, nem dessa overdose de cheiros que eu insisto em criar na cozinha quando acendo a lenha e espalho alecrim na chapa. São panelas comportadas e ordeiras, das que se usam no dia a dia.

Olho a pilha de panelas que formei diante de mim, todas expectantes. Sinto-lhes a agonia do saber estarem sendo escolhidas ou preteridas. Estou parada e quieta diante desse grupo de amigos e percebo que não há nenhum que eu possa deixar para trás. Num suspiro aliviado, começo a embrulhá-las  a todas em jornal do dia de ontem.

24/01/2012

Despedidas III

porque
a memória guarda o que quer
onde quer
como quer


Dentre os muitos prefixos linguísticos, essas pequenas partículas capazes de subverter, reforçar ou reencaminhar as raízes a que se ligam, há dois que prefiro: re e co. Coisas que gregos e latinos inventaram para nos fazerem pensar. Neste caso, ambos têm a sua origem em Roma. E vêm em meu socorro para entender coisas simples que de repente se tornam complexas - porque só as palavras têm esse dom.

Re responde usualmente pelo fazer de novo, pelo ir para trás e re-petir (pedir outra vez, no original), re-gredir, re-iterar, re-começar, re-cordar, re-gurgitar... Ações que, teimosas dentro delas mesmas, se necessitam re-visitadas, re-avaliadas. Ações que demandam que o pensamento re-flexivo se apresente e ajude a re-tomar situações. Não é necessária a ação concreta de duas ou mais partes, embora todas existam, e possam até ser levadas em conta. Co, por outro lado, atende por tudo o que pede concomitância, ação conjunta, companhia: lá estão as ações de co-mando, os movimentos de co-operação, a necessidade de co-rroborar, de co-ordenar, de co-laborar. Tudo junto, numa ideia de co-rrespondência entre as partes, entre os lados, entre os cenários. Difícil usar essas duas letras que parecem tão pequenas para alguma coisa que se queira isolada, separada, segregada, contida e alheia. 

Os anos fartos e generosos de Demétria preencheram-me de inúmeros aprendizados que começam com essas duas pequenas sílabas. Re-aprendi e re-descobri a cantar, a tecer, a tocar, a fazer, a amar, a falar, a gesticular, a calar, a escrever, a compartilhar, a ser franca; co-munguei de tanto e co-rrespondi e fui co-rrespondida em tantos sorrisos e afetos, que quase me sinto grávida de tão plena: tão grávida quanto da última vez, a que fez nascer minha sétima filha.

Chegada imprevista, a meio de uma noite que se tornou insônia inquieta e não descansou a não ser quando quatro diferentes testes de gravidez foram comprados. Todos positivos em poucos segundos. Não havia lugar para dúvida. Por muitos re que tentássemos, uma nova vida se insinuava pela fresta da porta, impreterível, inalienável. E, durante uns dias, impronunciável. Demorou a transformar-se em co.

Não é tão fácil apresentar-se a si mesma, e depois aos outros, numa sétima gestação. Por muito que se goste do estado interessante (e eu gosto), é como diz a amiga Marina: saímos fora de qualquer estatística, difícil conviver com o próprio lugar sem angústias. Sem ter o que re-pensar nem o que re-avaliar, um pouco de re-planejar talvez mas não ainda, fiquei aliviada quando o início das aulas se aproximou, e com ele o planejamento escolar, o re-encontro com o co-legiado de professores da Aitiara, a volta à vida com sentido, nesse sem sentido que pareceu essa de repente nova vida a caminho.

Atividade da primeira hora: um pouco da biografia de cada um, porque a história faz-nos, e o ato de nos fazermos história faz com que nos aproximemos uns dos outros. Ana Paula, hoje em terras catarinenses, termina seu relato contando da chegada dos filhos, o como marcou indelével a nova face da sua vida. Sem grandes planejamentos, algo me impele a que emende ao seu final o meu começo, adiantando dentro desse círculo mágico a gravidez invisível, numa necessidade súbita de que se tornasse real ali, o ventre cheio, e não apenas dentro de mim e da minha casa, grupos dividindo espaços imensos em meu coração.

Entre os muitos co que nasceram na minha vida dentro desse ser chamado co-legiado de professores, figura a aceitação plena dessa gravidez, a alegria de dividir a minha própria alegria latente com quem está ao meu lado e com quem com um apenas olhar me diz aceitar o desafio de se fazer junto na vida. Claro que não para sempre, já diz a música que o pra sempre sempre acaba, mas por muitos e muitos meses, nas mais variadas e desafiantes configurações, esse ser formado em círculo foi manancial de confiança e alegria, um amor destemido daqueles que se querem raros para que não nos acostumemos muito e achemos que são fáceis, banais e que podem re-fazer-se a qualquer tempo.

21/01/2012

Despedidas II


porque 
"amar o perdido
deixa confundido
o próprio coração"*



Por entre o nascer deste dia, amanheço na lagoa. As mãos do homem pintor puxam-me a memória para trás, as árvores refletidas na superfície parada da água, sentinelas do umbral que preciso reconhecer para voltar a mim mesma sem me perder na memória alheia. Sei que sou puxada para o interior de um fruto, habitado por quem já amadureceu semente e brotou futuro. Deixo-me conduzir de olhos fechados, à espera da primeira visita.

Subitamente a meu lado, entre os canteiros das pistas de uma Fernão Dias ainda em obras, Richard, Rodrigo e eu colhemos sementes de crotalária, esperança brilhante de sol em viagem de reconhecimento, levando o quase-menino Clóvis numa tentativa de salvação. Seu riso límpido, desconcertado por ser tratado como anjo sem que ninguém o tivesse avisado de que essa foi um dia a sua natureza, levanta-se das águas escuras da lagoa. Faz-me olhar em outra direção, na direção da estrada por onde desce um Rubens desvelado em Antonio, dois sorrisos no mesmo rosto amplo e claro e manso, na mesma crença absoluta na bondade do mundo. Atrás dele, numa repentina procissão, cada uma das fitas coloridas do mundo de Marielza, a leveza recusando ser peso, o peso admitindo a leveza. E no meio de tudo isso, do outro lado da estrada em que as crotalárias florescem e germinam sem ação do homem, por trás desse tempo sem tempo em que amanhece a lagoa, vejo uma silhueta de mulher fortaleza no seu acordar de manhã, o caramanchão da varanda trocado pelo muro libertador do prédio em frente, o vaso de flores maduras à janela, numa lembrança fortalecida do horizonte antigo.

Se desconcerto o sol que nasce e apago a luz, há muitos pares de olhos que se recolhem para dentro das águas desta lagoa, uns antigos como os de Laurinha, numa saudação do outro lado da vida, outros nem tanto como os de Karin, do outro lado da mesma vida redescoberta, e me pergunto quem se exilou e quem simplesmente partiu. Aqueles que se aglutinam em mim e me lembram de que sou muitos para constituir-me eu própria, saúdam a minha também agora partida. E não há peso. E não há dor. E não há sequer o que umedeça os olhos, apesar da imensidão que me invade. O sol que dispensa a treva, sem lhe perguntar se é hora, curva-se e dobra-se até o assoalho verde, uma relva molhada que se agarra a meus pés e me diz que espere ainda, que não me atrapalhe num reconhecer confuso de cada centímetro de percepção do que ainda foi.

E, simples e sorrateiro, aproxima-se o sentimento que persigo, diante dos meus olhos como névoa que uma garrafa de gênio começasse a desprender, uma garrafa de gênio em minhas mãos que esfreguei sem saber que esfregava. Nem quase ainda tem nome, mas acompanha-me todas as horas, acorda quando acordo e sabe que o faço a seu lado. À sua morada, dou o nome de gratidão.


* Memória, Carlos Drummond de Andrade
Foto: Samuel Balsalobre Athias

20/01/2012

Despedidas - I


porque
“as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão”*


(I - porque a vida demanda tempo e palavra para qualquer verdadeira despedida)

Foi agora mesmo, fim de madrugada. Levantou-se um vento diante da minha janela, um vento que pareceu nascer nas profundezas do chão e içar-se pelos troncos das árvores, agitar-se nas folhas e estender-se por sobre o teto da minha casa. Como uma mão que acenasse um adeus ainda prematuro, um presságio em forma de anúncio, um sinal de advertência; uma mão que duvidasse entre a separação e o distanciamento e o manter-se linha de pesca que suporte os quilos da distância, a pressão da saudade, o cimento preciso para alicerçar a continuação do caminho.

As madrugadas costumam colher-me grávida de palavras que descem sorrateiras pelo meio dos meus sonhos. Nos últimos anos, tenho me levantado a meio delas, para aprender que correr à escrita é o alívio de alma que me inicia. Perco horas de sono para ganhar horas de vida. Uma vida que reconheço, com a ajuda dos leitores do que resulta de tudo isso, na palavra que escoa de dentro de mim e se transformou, num pouco a pouco perseverante, na maior razão e tarefa de ser o tempo que sou.

O vento desta madrugada acorda-me feito um sacramento. Faz-me levantar, escrever e fechar os olhos. Ouvir no silêncio entrecortado pelos primeiros galos e pelas últimas cigarras um mundo que se liquefaz perante meus olhos, enquanto dinâmico e vivo se solidifica para outros. E eu preciso acreditar que é assim, a vida, as idas e as vindas como sempre dizemos, especialmente quando precisamos mudar em direções para as quais temos mais certezas que dúvidas. Não sei qual dos pratos da minha balança pesa ou se torna mais leve. Assim que acho que é o da direita, percebo que é o da esquerda, e em pouco tempo me dou conta de que a minha balança tem muitos, muitos pratos, e por todos eles dou graças e sorrio, ainda que me doam, e porque seu peso e leveza permanecerá por muito tempo em mim, ainda e porque tantas coisas.

Vários anos atrás, poucas horas depois do nascimento de um dos filhos que respirou pela primeira vez dentro das paredes desta casa, um coral de vozes surgiu do meio do escuro para cantar o recém chegado, como uma brisa que chegasse de mansinho e se instalasse à entrada da vida. Abri a porta devagarinho, sequer pude articular palavra. Agora que o dia começa a raiar lá fora, fecho a porta uma última vez; devagar, como naquela outra noite; ainda ouço em meus ouvidos a música de louvor aos que chegam de novo, a cada dia. Que este seja um bom dia.


* "Memória", Carlos Drummond de Andrade

19/01/2012

Atos


Vez por outra gosto de reler um texto de Paulo Freire, um texto curto, fruto de uma palestra dada em 1981 e incluída anos depois pela Cortez num pequeno livro: “A importância do ato de ler”. Dos três artigos que compõem o volume, é o primeiro que gosto de ler e ler outra vez.

Volto a ele pelo significado profundo que teve em diversos momentos da minha vida, da minha própria leitura do mundo que me cerca, de mim mesma dentro desse mundo, desse mundo que se avoluma e de repente me toma inteira por dentro. Paulo volta, nesse texto, à leitura dos primeiros signos da sua vida, a casa em que nasceu no Recife, as avencas de sua mãe, as grandes árvores no quintal que o viram pôr-se de pé, andar e aprender a ler – assim, nessa sequência singela e simples. Uma infância permeada pelos signos que ele, como ninguém, soube entender conectados a todos os outros que constroem a nossa vida, representações da realidade onde inclui com especial reverência as linguísticos – a “palavramundo”. Textos encarnados no “canto dos pássaros, na dança das copas das árvores anunciando tempestade, na cor das folhagens, na forma das folhas, no cheiro das flores”. E numa transição terna, numa saudade que apelida de “mansa”, Paulo absorve e multiplica, junto a esses signos, o da leitura dos livros que inspiraram, ampliaram e modificaram a sua representação do que é o mundo.

Guiada pelas suas mãos, passeio mais uma vez pelos signos da leitura do meu próprio lugar e tempo; os que me rodeiam agora e os que já me deixaram, deixando-me impressa com a sua forma passada, sem saber então o que viria a ser de mim sob a sua marca. Anos atrás, num dos momentos de releitura desse texto, decidi lê-lo com um grupo de alunos – jovens que pensaram não entender o que dizia, que relação teria tudo aquilo com eles próprios, sua própria vida, a sua necessidade de leitura construindo-se ainda tão diáfana. Há dias, um deles me escreve, e me diz que de repente se lembrou de tudo aquilo, do que Paulo Freire dizia, e se surpreendeu de não ter percebido então o que no fundo já tinha feito sentido. Só que ele não percebera. Mas guardara.

A verdade é que passamos a vida lendo, às vezes sem consciência disso, e essa leitura acomoda-se dentro de nós à espera que demos por ela. Com sorte, mais tarde ou mais cedo é isso que nos acontece. A alguns a tarefa de ler como comumente se entende a leitura é custosa, doída: livros, textos compridos, que demandam concentração que às vezes falha, numa obrigação que nenhuma leitura comporta, porque ler é condição libertária, ave bala cabralina exigindo o oxigênio da sua sobrevivência. Em todos os outros momentos, seguimos vida afora lendo, sem saber que lemos – lemos as indicações da vida no que é óbvio e no que nem tanto, lemos os signos e as contas, os búzios, as estrelas, as cartas, os olhares, o toque do outro fundo em nossa carne. Lemos de cabeça inclinada e coração em sangue, a pele exposta vulnerável, as carícias e as palavras da vida numa aragem que não se esgota nem mesmo quando já passou. Gosto de pensar que, no dia de hoje, conseguirei ocupar-me por inteiro com a leitura do que me rodeia; uma leitura leve, correta, consciente, consequente, daquele tipo que me liberta, disponibiliza e autentica, num passeio que me leve aos mesmos bons caminhos que Paulo Freire consagrou sob seus pés.

13/01/2012

Perturbação


A pergunta veio insuspeita, assim como quem não quer saber nada mas pergunta; recebeu um silêncio espesso como resposta, um ”aguarda” que logo se resolveu numa só palavra, saída repentina da minha boca, como se minhas gengivas decidissem sentir enquanto o coração espera. Uma resposta em forma de parto, um expulsar tântrico de palavra resumo. Perguntam-me o que me faz escrever hoje, e eu só consigo ver diante de mim essa palavra: perturbação.

Uma perturbação provocada pelo exercício das palavras, do diálogo entre elas, de uma espécie de movimento longínquo que não se afasta nem no espaço nem no tempo: passadas horas, está aqui sem que se veja, sentada ao meu lado, palpitante nos veios da memória recente.  É o estado de perturbação que me provoca a escrita, respondo.

Decido investigar, para entender-me melhor e aprender a dar respostas que se comportem. Ir ao dicionário, aqui, pouco ajuda: perturbação é coisa ruim, parece, à primeira vista. Coisa de tumulto, distúrbio, mal estar passageiro, desordem, confusão. A minha perturbação não se alinha nesse verbete. E lá na última linha, quando acho que nada faz sentido, um sinônimo acomoda-se ao que sinto - ali escondido quase no fim da página, como se talvez pensasse pertencer a outro lugar. Perturbação sinônimo de comoção, emoção profunda que acorda, provoca, move e faz mover. Perturbação sinônima de motim, revolta do tempo, de um ser que se altera sem que o faça a sua estrutura. Um tempo de costas viradas aos relógios concretos, endurecidos, ponteiros amarrados ao aço frio dos mecanismos exatos.

Esta minha perturbação é filha do inesperado, um espanto que dispensa explicações. As palavras que faz nascer escapam por entre os espaços dos meus dedos - seja verso, seja prosa, um tropel incontido que eu só observo deste meu posto de escrevente. Não, não as psicografo. Sinto-as nascer e tomarem forma, buscarem seu espaço preciso no papel. Não sei se nascem dentro, ou se sou eu que nasço dentro delas. É mais provável que seja a segunda opção. Permito-lhes a ida e a vinda, o retorno, a variação, a dúvida, o olho fechado, a espera, a mão que se apoia para aconselhar ao coração que vibre mais baixo. Sou toda sua, numa entrega que se diz destino, que se esgueira e me desarma as indecisões, as manias, os pensamentos fossilizados, as inconvenientes esquinas em que estacionamos a alma de vez em quando. Vou-me ao papel e à tinta e retorno fortalecida, alma e coração e corpo em calma, em alívio, à espera da próxima perturbação feita palavra. Enquanto isso, volto ao domínio da ficção, palavra que chega com mais vagar e trabalho, de onde saio ultimamente só e apenas para pensar na gênese que a torna fartura à minha porta. Ou para responder aos bons amigos, que inspiram e perturbam os meus caminhos.

11/01/2012

Fado


Há coisas que exercem um fascínio peculiar. Parecem pertencer a outro momento de nós próprios, um outro lugar de outro tempo em que éramos outras pessoas. O fado é isso, na minha vida. Reconheço a minha infância inteira nas letras que ouço, nas melodias que entram por mim adentro, sem respeitar as portas que fui instalando ao longo da vida. As novas paredes com que decorei o meu interior sucumbem ao arremesso do dedilhado da guitarra e, quando dou por mim, já estou a cantar baixinho. Nem sei se quero, mas os olhos fecham-se sem que eu os comande, e em dois segundos tenho diante de mim as águas do Tejo, o poente, as curvas da estrada de Cascais, a noite estendida pelas vielas estreitas dos bairros populares de Lisboa. Porções generosas de melancolia acompanhadas de sardinhas e vinho da casa numa tasca qualquer da Estrela. O ponto mais ocidental da Europa a bater nas janelas da casa que alicercei em terras brasileiras.

Nos últimos anos reaproximei-me do fado graças aos amigos que me puxaram de volta a ele. Com eles, creio que sem que o saibam, repaginei a figura do meu pai, a penumbra avermelhada das casas de fados que o fascinavam (e a mim como consequência), as noites que pareciam não ter fim, os olhos marejados a meio delas, os discos a ocuparem o espaço da casa em que não havia livros.  Com ele, o fado, despedi-me finalmente dessa figura paterna que, como tantas em tantos, desperta emoções e lembranças tão contraditórias. Ficaram-me, assim espero, os bons momentos; aboli os demais como se abolem os vincos da roupa quando a passamos a ferro. O calor, a atenção e o cuidado para que nada se perca, nada se queime e a vida se apresente inteira como se fosse nova. Dobro-os com cuidado, engomados e brancos como as camisas alentejanas que se mandam bordar a vermelho, dentro de uma gaveta que possa levar comigo e abrir quando e se for preciso. Mas nem quero que seja, para não precisar repetir gestos antigos no futuro que está tão próximo.

Devo, a esses amigos, a conciliação com a melancolia que me corre por dentro mas não chego a reconhecer como minha, porque me cansa, porque faz tempo, porque pertence a alguém que se encontrou no meio do caminho e decidiu-se por outras paisagens; concilio-me porque a deposito toda dentro do fado, dentro dessa forma de destino que assume voz e música como protagonistas e me livra, a mim, de transportá-la para a vida de todos os dias. Como se abrisse um interregno na vida de quem reconheço ao espelho, e pudesse voltar atrás, como quem pisa nas próprias pegadas sem olhar para trás.

(Imagem: "Fado", de José Malhoa)

02/01/2012

Livros dentro dos livros


Escrever uma história faz desaguar uma imensidão de outras histórias. Estou tentando chegar a qualquer estágio que possa chamar de “finalizado” de uma história longa, mas a cada dia infiltram-se dentro de mim novas histórias, ligadas àquela, e com elas a necessidade de saber algo que não sei – portanto, lá vou pesquisar, e assim o final cada vez se desaproxima mais de mim. Ainda não sei se é uma vantagem ou um inconveniente.

Procurar informações é coisa que gosto realmente de fazer. Em tempos de internet é uma alegria só, tudo a quase só um clique – dois ou três, na verdade, porque é preciso checar e rechecar as informações conseguidas. Mas é uma diversão só do mesmo jeito, até porque eu me pego rindo o tempo inteiro, feliz de ver o tamanho do quanto o ser humano é capaz de interessar-se por coisas tão variadas, e compartilhar o que sabe com os demais.

Dentro da história que me tem em mãos (porque já passei do ponto em que eu (achava que) a tinha nas minhas próprias), aparece-me de repente um livro antigo, com data de impressão de 1888, um espécime daqueles que precisavam ser abertos pelos seus primeiros donos, com aquelas faquinhas que os avôs burgueses ofereciam de presente de aniversário a seus netos nos natais de meados do século XIX – o status da leitura alcançava cada vez mais pessoas à época, e as tais faquinhas (cabo de osso, cabo de madeira, cabo de pedraria trabalhada) foram um hit das compras naqueles tempos.

Os cortes dessas faquinhas deixavam uma peculiar textura no corte das folhas, irregular e manual, e é justamente para essa sensação concreta que eu preciso achar uma palavra, que a um só tempo descreva a textura, o sentimento, a tepidez desse tempo gasto em abrir folha a folha a história de uma história, e deixar essa marca inconfundível no corte de frente do livro.

Por isso a pesquisa: que terão dito outros sobre essa impressão, essa percepção tátil tão sutil e ao mesmo tempo tão potente? Eu mesma abri vários livros dessa forma, de Júlio Dinis a Vitorino Nemésio, mesmo tendo o século XIX beeeeem às minhas costas – mas não consigo evocar em uma palavra o sentimento nostálgico que me provoca lembrar o desejo de não antecipar o que vinha depois, abrindo mão de abrir tudo ao mesmo tempo.

Nessa pesquisa, descubro um alfarrabista dedicado aos livros raros: entre outras coisas, tem à venda um João Cabral, “O engenheiro”, autografado e dedicado (carinhosamente dedicado, diga-se de passagem) por R$2.900,; um Guimarães, um Mário de Andrade, todos eles autografados e a esses preços que só podem me fazer mesmo sorrir... Algumas dedicatórias mais entusiasmadas (mais caras); outras mais protocolares (entre as caras, as mais baratas). Descubro também uma pequena gráfica do norte do Rio de Janeiro que publica tiragens pequenas com o detalhe do “primor da perfeição”, pago conforme: uma luxúria de possibilidades de acabamento, de papeis, de dobraduras, de cortes, de aberturas, de fechos, de facas especiais que recortam silhuetas também especiais em qualquer tipo de papel.

O livro do meu livro aguarda pacientemente na janela aberta do editor de textos, piscando aqui embaixo, doido pra chamar a minha atenção para o que deve ser o centro inequívoco do meu interesse e trabalho – um piscar tranquilo, certo de que em algum momento desse prolixo divagar pelas informações do mundo virtual eu me lembrarei de que ele precisa de uma palavra para se tornar visível. Para ser real. Para permitir que eu feche os olhos e veja o onde, o como e o com quem. Para que eu possa tornar-me papel e deixar de ser sangue incandescente nas artérias.

(Termino sem a palavra... se houver quem queira colaborar, será uma alegria!)
(A foto é de um projeto do blog 3 R's :