28/01/2012

Despedidas VI


porque  a vida
é um parto


E de repente, no meio deste vendaval que se alevantou, descubro que a Lua está em trânsito pela sexta casa do meu mapa astral, formando um ângulo harmonioso com o meu Sol. Ou seja: uma boa fase para organizar as coisas da minha vida, avaliar as questões pendentes e tentar solucioná-las. Daqueles dias em que olhamos para o espelho e dizemos: putz, ainda bem!

Embora haja quem pense o contrário, eu vivo tentando encontrar certezas. As dúvidas atormentam-me (se é que isso é uma forma de tormento), são elas que me procuram e não eu a elas. Assim que me aparece um trânsito astral que me sugere mais tranquilidade do que a que tenho normalmente, dou pulos de alegria. Quando abro as cartas e me aparecem a Sacerdotisa, o Julgamento, idem: serenidade, visão clara, separação de joio e trigo sem demora. Mas nem sempre é assim – a Torre aparece aqui e ali, soçobrando a minha vida, arrancando pedaços do que achei fosse um alicerce seguro. O naipe de espadas coloca-me em movimento em direção ao próximo estágio, o de copas alimenta-me o mundo do sentir, que é o que movimenta todo o resto. As cartas converteram-se, com o tempo, em refúgio e caminho de busca, um espelho fiel que retrata o que eu própria sei sem ver. Quando tenho a sorte de me tornarem útil aos outros, apaziguam-me.

As cartas do tarot estão presentes na minha vida há muitos anos. A primeira carta que tirei na vida foi a Imperatriz, a carta da maternidade por excelência. Não devia ter mais de 6 ou 7 anos de idade, mas lembro de ter ficado emocionada com a imagem, e por isso mesmo não a esqueci. As cartas andaram à minha volta aqui e ali, e finalmente ganhei o primeiro baralho e me diverti de brincar. As cartas ligadas à gestação, à gravidez, aos nascimentos continuaram pulando de dentro do baralho sem que eu as chamasse. E eu entendi que haveria filhos no meu futuro. Acertei, parece.

Porém, ligando os pontos, como o fez Steve Jobs naquele discurso que circulou à exaustão pela internet, percebo que não foram apenas os meus filhos, as minhas gestações, os meus nascimentos que as cartas mostraram. Essas cartas continuam presentes e ativas, mas multiplicadas nas crianças que tenho a honra e o privilégio de assistir entrando na nossa vida terrestre.

Esta semana, marquei uma consulta com a doutora/amiga Irene. Em parte porque era preciso mesmo, em parte porque está no rol das pessoas de quem quero despedir-me. Gosto da serenidade de Irene, e da maneira como chama todas as mulheres de “filhota”; gosto do carinho compreensivo que emana por todos e como é ao mesmo tempo irreverente e pragmática e decidida, às vezes impaciente, até. Irene formou-se há 43 anos. Aos poucos, pensa deixar o consultório, e eu ouço a Márcia, sua secretária de anos, recusar novos clientes, porque “a doutora está diminuindo o ritmo”. Olho-a enquanto ela preenche a minha ficha, e me pergunto se conseguirá diminuir a toada, e ir fazer outras coisas que talvez lhe deem menos prazer do que atender as necessidades das mulheres que batem à sua porta. E penso nas mulheres que não a conhecerão e que não terão à beira a sua força e a sua compreensão do que acontece, de fato, de fato, de fato, na hora de parir. Coisas que vão muito além das técnicas, quaisquer que sejam.

Irene apareceu na minha vida ia já a gravidez do Cândido adiantada. Achei estranho seu consultório, aqueles roxos por todo canto, das poltronas ao carpete, passando pelas paredes; pensei em levantar-me e ir embora, mas alguma coisa me fez esperar. O livro que levava na mão, introdução básica que inventei para qualquer médico com quem pensasse ter um filho, foi parar dentro da bolsa. Mas Irene viu uma pontinha assomando e perguntou o que era. E eu dei-lho, e ela sorriu ao pensar em fazer um parto em casa, novidade numa vida de tantos anos de obstetrícia. E sorriu mais uma vez, desta vez para o Ricardo, e disse: “Ricardo, havia uma música... uma música que era assim:”, e de repente começa a cantar a mesma música que a mãe de Ricardo lhe cantava quando era pequeno. Assim se iniciou uma parceria de carinho e respeito; uma parceria que não precisa ver-se para acontecer. Não é apenas uma parceria firmada nos partos em casa do Cândido, da Ilundi, do Tiago, da Lina, do Silas, queridas crianças nascidas todas de dentro de mim, de uma forma ou de outra, eternas estrelas do caminho, mas uma parceria que se estenderá quer nos vejamos, quer não, quer nos encontremos, quer não.

Pessoas assim, como a Irene, invadem-me nestes últimos dias de Botucatu. Deixo-as que me percorram. A minha memória resgata-as dos lugares onde as deixei esperando, uma memória comovida pelo assombro de que sejam tantas, e tão fortes, e tão poderosas, e tão marcantes no meu nascer cotidiano.

3 comentários:

  1. Leio e te re-leio, passo aos olhos da alma estes seis execícios teus de des-pedida e agradeço. Verdadeiras Ventanas abertas às palavras que, como doces visitantes ciganas me convidam a re-ver-te e mais uma vez res-peitar-te. Sim, amiga mestrAna, te ler antes de me entregar ao re-confortante des-canso dos sonhos é um presente que me re-nova e re-cupera a vontade de amanhã de novo re-buscar palavras brotadas desta amizade.
    Love U! Boa noite e obrigada,
    Neca Terra

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    1. Neca querida: que as madrugadas continuem te ins-pirando. Tou te esperando, viu?

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    2. kkkkkk... pirandoooooo!!!

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