14/02/2012

Cratera de caixas


Consegui encontrar um espaço no meio desta casa-em-mudança-e-obra para escrever. Parece uma cratera brotada no meio das caixas – olho em volta e só há caixas e caixas, uma certa penumbra e um silêncio que (descubro) só o papelão provê. Um silêncio de base sepulcral, naquilo que de sagrado e eterno tem um sepulcro. Sinto-me em casa, rodeada das coisas que a constituem.

As montanhas de caixas não obedecem ordem alguma, é mais um caos criado por todos os que descarregamos o caminhão e precisávamos andar rápido sem saber qual a direção – servem-me de apoio para todos os papeis, diagramas, listas, desenhos, folhetos que me acompanham nos últimos meses. Mantêm-me ancorada à história que escrevo, que se desenrola diante de mim de formas surpreendentes e que aguardava pacientemente por um pouco de espaço qualquer que lhe permitisse permanecer em estado de desdobramento. Um lugar em que pudesse deitar-se ao meu lado e continuar o seu andar. Estou feliz por termos nos reencontrado.

De vez em quando alguém vem me visitar – espreita por cima das caixas e ri. Ainda não acredita que, de fato, seja possível que eu esteja trabalhando. Estou. E quando saio preciso esgueirar-me por entre duas caixas, apertadas e sinalizando que a vida é provisória o tempo inteiro. É de tal forma apertada esta cratera de escrita que ninguém me acompanha, porque não cabe. Como diz minha amiga Suzana, porque não tem cabimento mesmo. Estão estreitos os meus lugares.

Gosto de ficar aqui, e perco-me olhando as caixas, todas da mesma cor, todas paradas esperando o tempo voltar e olhar para elas. Gosto da ideia de criar uma margem de tempo que me faça esquecer o que contêm, para que a cada uma aberta eu sorria e me divirta com a infinita e proverbial capacidade da minha família de guardar todos os inúteis e ricos detalhes da vida. Mas para isso é preciso que o tempo faça seu caminho de forma ampla, e enquanto isso eu vivo dentro do mundo que se criou dentro de mim, esta história paralela, onde me dou ao luxo de ser vários, que absorvem de mim partículas esparsas, personagens a quem as contradições nem criam problemas nem afligem. Aparecem-me como fantasmas amigáveis, têm nomes e biografias, e apresentam-me as suas dores e os seus sonhos para que, de formas que desconheço, os converta em meus próprios.

As caixas à minha volta permitem que pense o passado uma e outra vez, que reveja na sua opacidade baça as cores dos milagres cotidianos. Encosto-me a elas um pouco como se fossem a salvação dos pedaços que em mim vou desencaixotando aos poucos, ainda surpreendida pelos rumos que a vida toma sem nos perguntar quase nada. É um alívio ter onde me apoiar sem sentir perigo.

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